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Você tem fome de quê?

Os desafios da alimentação escolar para ir além do prato nosso de cada dia e prover alfabetização alimentar e nutricional para os estudantes. 

texto Lara Silbiger

O objetivo de erradicar a fome até 2030 parece estar cada vez mais distante. No Brasil, seis em cada dez lares convivem diariamente com algum grau de insegurança alimentar, que vai da preocupação com a possibilidade de não ter acesso à comida no futuro até a efetiva condição de fome. Esta última já é a realidade de 33 milhões de pessoas no país, de acordo com o 2o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. 

A pesquisa, realizada entre novembro de 2021 e abril de 2022 pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), também destaca que as famílias com crianças e adolescentes estão entre as mais vulneráveis. A fome bateu à porta de 18,1% das casas com filhos de até 10 anos — quase o dobro de dois anos atrás, quando a taxa era de 9,4%. Já nos lares com três ou mais pessoas de até 18 anos, o percentual bateu a marca de 25,7%.  

 “Nesse cenário, a alimentação escolar é essencial para que as crianças tenham acesso a alimentos de qualidade”, comenta Ariela Doctor, coordenadora-geral do Instituto Comida e Cultura. Em muitos casos, este chega a ser o maior atrativo para frequentarem a sala de aula.  

Desafio global 

Com a escalada da insegurança alimentar, o Brasil voltou para o Mapa da Fome. A ferramenta, que lista os países cuja população não tem acesso adequado aos alimentos, é usada pela ONU para acompanhar o avanço — ou retrocesso — rumo ao conjunto dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.  

Ter uma visão holística do problema é fundamental para entender o tamanho do desafio de acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar, melhorar a nutrição e promover a agricultura sustentável.  

“A fome não é um problema isolado. É fruto do mau uso dos recursos naturais, das mudanças climáticas, das recentes crises sanitária, econômica e social provocadas pela pandemia, entre outras causas que convergem — em última instância — para a desconexão do ser humano com a natureza”, afirma Ariela. “Chega a ser tão absurdo que há crianças que acham que o leite vem direto da caixinha.”  

Por isso, além de prover alimentação de qualidade, ela defende que é papel da escola promover a alfabetização alimentar e nutricional, incluindo-a no currículo tanto da rede pública quanto privada.  

“Desde pequenos, os estudantes precisam desenvolver bons hábitos alimentares, ter contato com a biodiversidade do território onde vivem, saber de onde vem o alimento e compreender a importância do seu aproveitamento integral. Só assim eles terão autonomia para decidir e poderão praticar o consumo consciente”, assegura ela.  

Formação e engajamento dos educadores  

Sensibilizar e capacitar os educadores é o primeiro passo para levar a alfabetização alimentar e nutricional para dentro das escolas. Muito além de oficinas de culinária, as formações devem ter o objetivo de aumentar a consciência e o repertório dos educadores sobre sua alimentação, o que pode incluir mudanças nos próprios hábitos.  

O segundo passo é manter a coerência e a consistência entre o projeto de educação da escola para uma alimentação saudável e o que é servido no refeitório e na cantina.  

“É muito fácil entrar no modo automático, uma vez que o mercado está cheio de soluções mais fáceis — por exemplo, comidas processadas e ultraprocessadas. Mas o alimento que vai à mesa na escola precisa ser objeto de reflexão — especialmente por parte dos gestores”, alerta Mariana. Ela recomenda que as refeições contenham sempre produtos frescos e o mínimo de processados.  

Outra boa prática é transformar a escola em um lugar de experimentação de sabores, cores e texturas, explorando a variedade de frutas da estação, legumes e verduras cultivados no entorno. Dessa forma, a criança que ainda não tem o hábito de comer esses alimentos em casa acaba tendo a oportunidade de prová-los na escola. 

“É claro que tudo isso tem reflexos diretos sobre a logística, a organização dos serviços de alimentação e até a preparação dos pratos”, reconhece a educadora ambiental. Será necessário, por exemplo, substituir alguns ingredientes por outros mais saudáveis e contratar fornecedores de produtos frescos. 

Práticas sustentáveis na escola 

Uma dieta mais saudável está intimamente ligada à visão de sustentabilidade da escola. “Quando incluímos produtos frescos, orgânicos ou menos processados no cardápio e travamos relações comerciais mais justas com pequenos produtores, estamos fomentando cadeias de produção melhores para o meio ambiente”, explica Mariana. 

Também vale envolver as famílias no processo. “Ultrapassando os muros da escola, temos a oportunidade de estender a reflexão sobre a dinâmica da alimentação também para dentro das casas dos estudantes”, recomenda a educadora ambiental.  

A seguir, conheça as experiências de três escolas que já adotam práticas sustentáveis no dia a dia.

Valorização da terra como sustento

{ Adriana Rebouças } educadora e coordenadora da Escola Pluricultural Odé Kayodê – Goiás (GO) 

“Não há um único modelo para gerar impacto na sociedade. Cada escola tem sua identidade e a nossa – comunitária e localizada em uma região com alto número de assentamos na cidade histórica de Goiás – privilegia projetos que nos façam pessoas alegres e felizes com nossas conquistas, com quem somos e com o que estamos construindo.  

Diariamente, estamos pensando em formas de estar juntos, respeitar o outro e o meio ambiente e promover transformações coletivas. Não por acaso, concebemos as festas como lugar de encontro, partida, compartilhamento de vivências e fechamento de um ciclo. Tudo isso, é claro, regado a muita comida gostosa. 

Uma das comemorações mais tradicionais da escola, fundada há 22 anos, é a Festa da Terra. Ela acontece em junho — época da colheita —, quando nos reunimos na rua com toda a comunidade para celebrar a terra como sustento e a valorização da agricultura familiar.  

Mas, diferentemente de escolas que trabalham só com a preparação da festa e a apresentação dos alunos para as famílias, aqui nós trabalhamos no projeto da festa. Tudo é feito com base nas pesquisas, nos estudos e nas reflexões dos 50 alunos de Educação Infantil e anos iniciais do Fundamental que a escola atende. 

Durante o ano, eles vivenciam os processos da terra em uma pequena roça que mantemos na região do cerrado, a 30 quilômetros da cidade. A cada semana, no ‘dia da roça’, as turmas se revezam nos cuidados com a plantação, a ordenha, a educação ambiental e o compartilhamento dos alimentos cultivados.  

A pesca predatória e o lixo depositado às margens do rio são alguns pontos críticos que os alunos identificaram nas visitas. Para enfrentar o problema, produziram placas de orientação e conscientização, conversaram com as pessoas que estavam ali pescando e entregaram sacos para facilitar a coleta do lixo. 

Mais que proporcionar experiências práticas, esse é um projeto que visa incentivar a criticidade dos estudantes sobre o impacto de suas ações sobre as próximas gerações. Dessa forma, reconhecemos e valorizamos o protagonismo e a força deles para provocar mudanças e se tornar corresponsáveis pelo lugar onde vivem.”

É no coletivo que se faz a transformação

{ Marcia Covelo Harmbach } diretora da Emei Dona Leopoldina, em São Paulo (SP) 

“Um dos maiores desafios da escola quanto à alimentação é incentivar a experimentação de alimentos in natura. A maioria das famílias não dá educação alimentar para os filhos, o que impõe à escola a difícil tarefa de mudar hábitos das crianças — muitas vezes, sem a parceria dos pais. 

Para educar os sentidos, fazemos atividades na nossa agrofloresta e na horta, que têm frutas, verduras, legumes, temperos, chás e flores comestíveis. Isso ajuda a reconectar nossos 240 alunos — com idades de 4 e 5 anos — com o ciclo da vida. 

De forma especial, procuramos trabalhar com os alimentos que as crianças rejeitam — por exemplo, a berinjela. Elas ajudam a plantar, regar, cuidar do canteiro e registrar o aparecimento das primeiras folhas e da ‘berinjela bebê’ até a colheita. Como disse um aluno nesta semana, ‘meu coração fica quentinho quando vejo a flor do maracujá abrir’. 

Ao final, convidamos um familiar ou educador para preparar com os alunos diferentes receitas usando o ingrediente cultivado. Durante as oficinas de culinária, também aproveitamos para conversar sobre a origem dos alimentos — principalmente os de raízes africana e indígena —,
a sazonalidade, a transformação pelo fogo e os sabores variados das comidas. 

Mas o principal é comer junto. Como diz Madalena Freire, ‘é comendo junto que os afetos são simbolizados’. E eu acrescentaria que também são transformados, pois a criança vê a outra comendo cenoura e quer experimentar também. É no coletivo que se faz a transformação. 

O trabalho inclui também a conscientização sobre o não desperdício de alimentos, orientando os alunos a se servir apenas com a quantidade que conseguem comer. Além disso, nosso resíduo é zero. As folhas, os talos e as cascas são utilizados no preparo dos pratos ou destinados para a composteira e minhocário. 

Para as famílias e os educadores, promovemos formações desde 2012. Precisamos do envolvimento de toda a comunidade escolar para mudar o pedaço de mundo que nos cabe.” 

Sustentabilidade na prática

{ Juliana Ferrari } gerente de Desenvolvimento Educacional da escola Camino School, em São Paulo (SP) 

“Existem diferentes vertentes para descrever os desafios da alimentação escolar, como acesso a alimentos de qualidade, tempo para preparo, conhecimento compartilhado sobre o que é uma boa alimentação e o incentivo a hábitos saudáveis de consumo. A batalha de comunicação dos ultraprocessados ainda é desleal em todos os ambientes — em casa, na escola e com os amigos. 

Para driblar obstáculos, percebemos que as pequenas ações fazem toda a diferença. Mostrar o cardápio para os alunos, estar abertos para tirar dúvidas e testar diferentes fluxos e processos para que eles possam se servir têm gerado efeitos positivos. 

Também investimos na conversa e conscientização constante sobre o desperdício zero. Ajudar os estudantes a reconhecerem os sinais do próprio corpo e o quanto precisam de alimento é fundamental para a tomada de decisões mais conscientes.  

Outro passo importante que a escola deu até aqui foi a criação de comitês, formados por pais e colaboradores. No de Alimentação, discutem-se formas de melhorar a relação das crianças com a comida. Já no de Sustentabilidade, o objetivo é incluir o tema, de forma transversal, em todas as práticas e escolhas da escola. No momento, o grupo atua em conjunto com uma escola da rede pública para construir uma horta urbana. 

A Camino School ainda investe na formação continuada. Acabamos de finalizar a capacitação da primeira turma de educadores no curso Comidas e Infâncias, do Instituto Comida e Cultura. A partir dessa iniciativa, estamos criando núcleos de formação de professores. 

Com esse conjunto de experiências, entendemos que não é necessário falar literalmente sobre o significado da sustentabilidade. Aos poucos, ela foi se tornando parte do nosso dia a dia.


Para saber mais

  • Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. Guia alimentar para a população brasileira. Disponível em: mod.lk/ed23te2. Acesso em: 14 set. 2022.  
  • Maluf, R. S. (2022). II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. Portal Olhe para a fome. Disponível em: mod.lk/ed23_ten. Acesso em: 14 set. 2022.
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