Matemática (pode ser) criativa
Conheça alguns recursos, digitais e analógicos, que podem ser aliados dos professores no dia a dia em sala de aula e desmistificar a ciência dos números.

Texto: Ricardo Prado
Matemática: ame-a ou odeie-a. Sem dúvida, das disciplinas do currículo escolar, a Matemática é a que mais divide opiniões. Um dos maiores dilemas dos professores ainda é atrair aquela parcela que, precocemente, enxerga a matemática como um bicho de sete cabeças, ou que gosta de afirmar que “detesta Matemática” ou que “não se dá bem com números”. Da mesma forma que o componente desperta uma série de preconceitos, a Matemática abre muitas possibilidades para um ensino mais criativo e atraente aos alunos.
Por ter como base uma linguagem lógica, surgiram infinidades de recursos digitais, como ambientes de aprendizagem possibilitados por softwares, jogos e aplicativos que impulsionam o ensino da Matemática a partir da ludicidade e que ajudam a criar bons momentos de engajamento. Nesse contexto, as ferramentas baseadas em Inteligência Artificial (IA) têm ganhado espaço nas aulas.
“A Inteligência Artificial tem um potencial incrível para os professores. Dentre as diversas vantagens, a economia de tempo é uma das mais importantes. O professor costuma ter um tempo muito reduzido de preparação de aulas e, geralmente, uma carga horária de trabalho excessiva”, afirma Cléber Ferreira Oliveira, matemático formado pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), com especialização em computação pelo Instituto Federal de Educação do Triângulo Mineiro (IFTM).
Com experiência de 23 anos com alunos do Ensino Fundamental e Médio e, mais recentemente, com futuros professores de Matemática na Licenciatura, Oliveira é defensor das tecnologias em sala de aula e no planejamento de tarefas. “Uso a IA como uma assistente para me ajudar, por exemplo, na elaboração de questões conceituais e na produção de slides”, explica o professor.
Formação analógica, alunos digitais
Apesar dos benefícios da tecnologia para o ensino de conceitos complexos, ainda há resistência entre boa parte dos docentes para o uso de inovações digitais – mesmo quando se trata de jovens professores. Segundo Cléber Oliveira, que atua como coordenador da área de tecnologia educacional do Centro de Formação de Professores, ligado à Secretaria de Educação de Uberlândia, “cerca de 60% dos professores mais novos têm dificuldades de usar recursos digitais”. O uso de tais recursos entre os professores mais antigos também é bastante limitado. “Esse número não deve passar de uns 10%”, estima o formador, creditando essa resistência ao próprio formato da graduação, ainda pouco integrada às tecnologias e com grades bastante tradicionais. “A grande maioria das aulas na graduação ainda está no modo ‘cuspe e giz’. E isso acaba refletindo na formação desse professor”, lamenta Oliveira.
Hoje, há muitos recursos digitais disponíveis e acessíveis a professores e alunos que podem potencializar o processo de aprendizagem matemática. O GeoGebra, por exemplo, é uma das indicações de Cléber para quem está iniciando o processo com tecnologias na educação. “É o melhor software de Matemática para a Educação Básica porque o aluno tem na frente dele dois mundos: o algébrico e o geométrico. O software faz esses dois mundos conversarem, e o aluno vê o resultado disso na tela. Para quem não sabe nada de tecnologia de ensino de Matemática, a minha dica é começar por aí. Possui conteúdo em português, além de vários canais no YouTube com bons tutoriais”, diz.
Outro programa benquisto por profissionais da área é o Scratch. Trata-se de um software criado pelo centro de pesquisa norte-americano MIT (Massachusetts Institute of Technology) e abrigado em uma plataforma em que se constroem “bloquinhos”, iguais ao Lego. “Se o professor quer ensinar a ideia do algoritmo da divisão, não tem que escrever código nem nada disso. É encaixar os blocos, montar, e aí você vê um resultado matemático. Com meus alunos, uma vez, propus a criação de um jogo em que o aluno tinha que desenhar o labirinto, e eu coloquei alguns desafios da geometria ali. Foi um sucesso”, exemplifica Oliveira.
É possível encontrar ferramentas e recursos digitais de ponta a ponta: desde o planejamento de aulas até a correção de atividades. “Tem a Magic School, com o qual se criam atividades para todas as áreas. Há o Quizizz, uma plataforma para criar questionários com atividades para os professores de Matemática, Linguagem, Arte, Educação Física, e que já incorporou recursos de IA”, acrescenta Oliveira. Para a correção de atividades, a indicação é o Claude. “Trata-se de uma plataforma em que se pode fazer o upload de imagens, de equações feitas pelos alunos, imediatamente reconhecidas pela Inteligência Artificial”, complementa.
Por meio de uma ferramenta de pesquisa com IA especialmente voltada à produção acadêmica, o programa Perplexity, é possível identificar centenas de artigos publicados em revistas indexadas no mundo, comprovando o uso crescente, e cada vez mais compartilhado, de experiências de ensino de Matemática usando softwares. De relatos de experiência envolvendo a gamificação por meio da plataforma Quizizz para turmas de Ensino Médio técnico ao uso do GeoGebra em uma turma de 7o ano de Ensino Fundamental, passando pela personalização de testes feita com IA, é possível mapear diversas experiências bem-sucedidas. A busca no Perplexity é especialmente indicada para quem está fazendo especialização ou pós-graduação, pois o filtro “focus” permite afunilar pesquisas em ambientes digitais específicos, como artigos publicados em revistas acadêmicas, na internet, em mídias sociais, em vídeos, além de um item específico para lidar com equações e operações matemáticas.
Eu tento investir em fazer o aluno colocar mais energia na interpretação do
que na álgebra em si. O que é da álgebra, tento trazer mais para a sala de aula
Tiago Bevilaqua, matemático e professor.
Bons e maus usos da IA
Tiago Bevilaqua, matemático formado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), é professor no Colégio Alef Peretz e responsável pela tecnologia educacional do Colégio Rainha da Paz, duas instituições de ensino particulares da capital paulista. O docente usa recursos digitais há bastante tempo em sua prática, bem antes da popularização da IA. Um exemplo é o Photomath, software que reconhece as equações e dá não só a resposta, mas o passo a passo.
Bevilaqua ensina aos seus alunos como usar a ferramenta para que a utilizem de uma maneira inteligente. O aluno está fazendo a lição sozinho em casa, tem uma dúvida e não tem como tirá-la com alguém. É aí que a ferramenta mostra o processo realizado para resolver o problema. “Essa é uma função que as versões novas, que ainda não estão distribuídas, terão. Eu vou apontar a câmera para uma equação e a ferramenta vai me dar a explicação com detalhes”, exemplifica o pesquisador, citando as IAs mais conhecidas, como ChatGPT e Gemini.
Se há um bom uso das IAs por parte dos alunos, qual seria o uso errado? Segundo Bevilaqua, a maior parte dos alunos não utiliza as ferramentas de Inteligência Artificial como ferramenta de estudo, mas como forma de cumprir a tarefa sem, de fato, fazer a tarefa. Então, para se precaver, passa as tarefas pelo Photomath para saber que tipo de resposta vai surgir, caso seja essa a estratégia do aluno. “No mínimo, vai ficar mais fácil reconhecer quando o aluno está utilizando o software. Esse é um primeiro passo de reconhecimento do quão difundidas são essas ferramentas”, responde. Para identificar quando há cola, Tiago recomenda analisar o tipo de linguagem e de estrutura da resposta, que costuma ser muito rebuscada para um estudante de Ensino Médio.
Bevilaqua explica ainda que, com a popularização entre os estudantes do uso das inteligências artificiais, os professores começaram a ter respostas muito mais padronizadas. “Eu tento investir em fazer o aluno colocar mais energia na interpretação do que na álgebra em si. O que é da álgebra, tento trazer mais para a sala de aula”, diz. Isso sem descuidar de ensinar aos seus alunos como fazer os prompts corretos, que são as perguntas motivadoras que geram as respostas dos chatbots, programas de computador que simulam interações com um ser humano.
Essa tecnologia estará em uso em todas as atividades humanas em poucos anos. E vale lembrar: como toda tecnologia em desenvolvimento, as IAs também estão sujeitas a erros, que na linguagem dos programadores são chamadas de “alucinações”, como as mãos com seis dedos que os mais atentos andam descobrindo em algumas imagens.

Bevilaqua conta com a IA antes e depois das aulas: utiliza com frequência a inteligência artificial no planejamento, inclusive na construção de rubricas de avaliação. “Esse recurso me auxilia no desenho do meu processo de avaliação.” Ao ensinar juros e progressões aritméticas, é possível descrever os objetivos de aprendizagem, definir os padrões e a excelência em avaliação, listar as atividades aplicadas e determinar as expectativas para cada objetivo de aprendizagem. “Se o principal seria resolver problemas de matemática financeira que envolvem juros simples utilizando as fórmulas de progressões aritméticas, esse é o meu máximo da rubrica”, conta. Segundo Bevilaqua, usando a IA, é possível elaborar também os níveis intermediários, trabalho que demandava muito tempo do professor.
Matemática lúdica
Luiz Márcio Imenes, professor e coautor (ao lado de Marcelo Lellis) da coleção Projeto Presente Matemática, publicada pela Santillana Educação e destinada aos Anos Iniciais do Fundamental, está atento a essa questão de como tornar a Matemática uma disciplina mais palatável há bastante tempo. Para ele, há inúmeras opções que vão desde as mais tradicionais, como jogos, até os mais criativos, como os origamis.
Os jogos, reconhecidos como o lado lúdico da matemática, são constantemente trabalhados como estratégia didática. Podemos destacar o Tangram, jogo de montar em que se criam seres e objetos a partir de um número definido de formas geométricas, ou a Torre de Hanói, uma base com três pinos e discos circulares. “Existe muita matemática no calendário, que é ótimo para se explorar a ideia de múltiplo, por exemplo. Pode-se também utilizar o material Montessori, conhecido como Material Dourado, para representar unidade, dezena e centena”, enumera Imenes.
O segredo para o sucesso das estratégias passa pelo envolvimento e pela preparação do professor à frente da turma. Mostrar-se entusiasmado pelo ensino da disciplina e propor desafios divertidos podem ser um caminho simples e viável para o trabalho com crianças menores. Imenes cita como exemplo o origami. “Há muita matemática oculta no origami. Com uma simples folha de papel dá para fazer muita coisa na sala de aula. No campo da geometria, traçar retas paralelas, retas perpendiculares, construir um quadrado, construir um triângulo retângulo, tem muita coisa para se fazer aí”, ensina.
Outro exemplo é o ábaco – em seus diversos modelos, como o asiático Soroban ou o romano, feito com areia. “Eu costumo dizer que ábaco é o nome de uma ideia, e não de um objeto”, destaca o autor. Os romanos, por exemplo, deixaram contribuições muito expressivas para a civilização, mas tinham um sistema numérico que não se prestava a fazer conta. “Você não consegue fazer conta com a numeração romana. Então, eles faziam as contas no ábaco e registravam o resultado usando aquele sistema numérico que a gente conhece”, ensina Imenes.
Essa é a deixa para o professor lembrar que a própria história da matemática pode ser empolgante, se bem contextualizada. Dá para usar o GPS ao investigar a origem das coordenadas cartesianas, com René Descartes, no século 17. Ou a história da arte, outro repositório rico para um professor que consiga transitar bem na interdisciplinaridade. “Os artistas Escher e Dürer, com seus estudos sobre a perspectiva, são os exemplos mais evidentes, mas há muitos outros”, sugere Imenes.
A flexibilização do currículo e do tempo didático e a individualização de oportunidades ainda são desafios na maior parte do mundo.
O poder das imagens
Com certeza, do Nu descendo a escada, de Marcel Duchamp, às composições geométricas de Piet Mondrian, essa é uma área que ajuda a trazer um importante aliado na compreensão de conceitos abstratos: a visualização.
Outro aliado é a imagem em movimento. “Uma riqueza muito grande das mídias digitais, do vídeo, da televisão, é a possibilidade do movimento. Em um livro, você só inclui a fotografia. No vídeo, pode colocar um filme, e o movimento é importante na geometria. A noção de ângulo está ligada a giro. O skatista diz que vai dar um 180º. Dar um 180º é dar meia volta. Dar uma volta completa é 360º”, ressalta Imenes.
Para ele, outro recurso do digital foram as pesquisas estatísticas e suas representações em diversos tipos de gráficos, o que sempre gera interesse dos alunos. Ainda falando do mundo digital, Imenes recomenda o canal de YouTube Isto É Matemática, atualmente em sua 12a temporada. E, de volta aos livros, indica um clássico: Malba Tahan, pseudônimo do professor Júlio César de Mello e Souza, que escreveu O homem que calculava e outros livros que exploram conceitos da Matemática por meio de histórias muito inventivas. Sua obra é imensa e contribuiu para a popularização da matemática no Brasil. “Há o famoso problema dos camelos, que deixa todo mundo intrigado”, recorda.
Tendências internacionais
A criatividade no ensino da Matemática, com ou sem novas tecnologias, ajuda a aumentar o interesse das crianças e dos jovens. Há boas práticas internacionais que podem inspirar políticas públicas e projetos pedagógicos no Brasil. É o que mostra o estudo Thinking differently about Math (Pensando de forma diferente sobre a Matemática, em tradução livre), realizado pela instituição norte-americana National Center on Education and Economics (NCEE).
Conforme o estudo, diferentes países que lideram as avaliações internacionais utilizam ferramentas digitais. Em Singapura, por exemplo, o Ministério da Educação mantém uma plataforma de aprendizagem com recursos alinhados ao currículo aprovado para alunos e professores e a Inteligência Artificial foi incorporada aos recursos, viabilizando a aprendizagem adaptativa.
O uso da tecnologia é apenas um dos pontos em comum dos países com bons resultados em aprendizagem matemática. A revisão do currículo, ou seja, a necessidade de se repensar o que é ensinado, é outro ponto relevante identificado pela NCEE. Ainda segundo o estudo, os principais sistemas de ensino atualizam com frequência o currículo na área da Matemática, incorporando os estudos e as tendências recentes. Temas como dados, estatísticas e probabilidade mostram-se frequentes nos currículos internacionais em todos os níveis. A fluência no cálculo também é prioridade, assim como a interdisciplinaridade da Matemática com as diferentes áreas.
Em 2022, por exemplo, a Coreia do Sul atualizou seu currículo para dedicar mais tempo ao que chama de aprendizado profundo em algumas áreas e adicionou mais modelagem estatística, tópicos de alfabetização em dados e matemática vinculada ao mundo do trabalho. O currículo do país é parcialmente atualizado a cada cinco anos.
Outro aspecto estudado foi a personalização, que vem sendo internacionalmente discutida – inclusive pela dificuldade da escala. A flexibilização do currículo e do tempo didático e a individualização de oportunidades ainda são um desafio. Há países que estruturam e monitoram o currículo ao longo de diferentes momentos, em vez de levar em conta objetivos previstos para o final de cada série. Essa organização pode dar aos professores mais tempo e flexibilidade para acompanhar os diferentes ritmos de seus alunos.
Na Estônia e na Dinamarca, as habilidades, os conteúdos e os resultados da aprendizagem na escola básica estão organizados em torno de três principais estágios: 1a a 3a série; 4a a 6a série e 7a a 9a série. “As escolas são obrigadas a oferecer um número mínimo de aulas semanais de cada disciplina, mas os requisitos são para a faixa completa de notas, não para uma nota individual; portanto, as escolas projetam progressões de aprendizagem com flexibilidade”, mostra o trabalho da NCEE.
Para saber mais
- GeoGebra. Disponível em: https://mod.lk/ed26_td1. Acesso em: 18 set. 2024.
- Scratch. Disponível em: https://mod.lk/ed26_td2. Acesso em: 18 set. 2024.
- Perplexity. Disponível em: https://mod.lk/ed26_td3. Acesso em: 18 set. 2024.
- Quizizz. Disponível em: https://mod.lk/ed26_td4. Acesso em: 18 set. 2024.
- Magic School. Disponível em: https://mod.lk/ed26_td5. Acesso em: 18 set. 2024.
- Litmaps. Disponível em: https://mod.lk/ed26_td6. Acesso em: 18 set. 2024.
- Salsburg, D. Uma senhora toma chá…: como a estatística revolucionou a ciência no século XX. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
- Morris, R. Uma breve história do infinito: dos paradoxos de Zenão ao universo quântico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
- Du Sautoy, M. Os mistérios dos números: os grandes enigmas da matemática (que até hoje ninguém foi capaz de resolver). Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
- Boyer, C. B. História da matemática. São Paulo: Edgard Blucher, Ed. da Universidade de São Paulo, 1974.
- Du Sautoy, M. A música dos números primos: a história de um problema não resolvido na matemática. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
- Conway, J. H.; Guy, R. K. O livro dos números. Lisboa: Gradiva, 1999.
- Lívio, M. A equação que ninguém conseguia resolver. Rio de Janeiro: Record, 2011. h Contador, P. R. M. A matemática na arte e na vida. São Paulo: Ed. Livraria da Física, 2013.
- Doxiadis, A. Tio Petros e a conjectura de Goldbach: um romance sobre os desafios da matemática. São Paulo: Ed. 34, 2001.