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Território educativo: Como se tornar uma escola transformadora?

Planejamento coletivo e gestão democrática são caminhos de ampliação da escola para a transformação da comunidade.
texto Helena Singer

Já se tornou corriqueiro nos debates sobre educação lembrar que o mundo vem mudando velozmente nas últimas décadas e que este campo social, especialmente no que se refere à sua principal instituição — a escola e o sistema escolar —, precisa se reinventar para a nova realidade. Vamos avançar um pouco mais nessa reflexão.

A revolução tecnológica possibilitou a coordenação eficiente de grande número de fornecedores independentes, demolindo o gigantismo burocrático que dominava a organização interna das empresas, marcadas por fortes hierarquias e departamentalização dos conhecimentos. Na mesma direção, possibilitou a multiplicação de micro, pequenas e médias empresas na indústria, na agricultura e nos serviços, que passaram a se organizar em rede, não mais nas estruturas hierárquicas anteriores. Nos ambientes de trabalho, valoriza-se cada vez menos a alta especialização e cada vez mais a participação e criação.

A produção de conhecimento científico e de bens culturais passou a se organizar também de modo descentralizado, com base em novas e sofisticadas formas de trabalho em equipe e em rede, e a catalisação de oportunidades e recursos.

Estão dadas as condições tecnológicas para que pessoas e coletivos sejam agentes econômicos e sociais produtivos e, mais importante, agentes de mudanças sociais positivas. Para que isso se torne realidade, é urgente um projeto nacional de desenvolvimento sustentável, que valorize a diversidade ambiental e cultural do país para a superação da sua inaceitável desigualdade econômica. Um projeto dessa natureza permite reconhecer o papel estratégico que as escolas podem desempenhar. Como a principal instituição formadora das novas gerações e produtora de conhecimento, a escola pode catalisar processos e projetos que favoreçam o desenvolvimento local.

Hoje no Brasil, assim como em muitos outros países, a escola é o equipamento público mais bem distribuído pelo território nacional. Tal equipamento possui um corpo multidisciplinar de profissionais, proximidade cotidiana com as famílias e a maior de todas as potências nacionais: as crianças e os jovens. Essas pessoas que, não tendo sido formadas no mundo da repetição, das hierarquias e especializações, não têm nada a desaprender e possuem todas as condições para se desenvolverem como agentes de transformação positiva.

Escola transformadora

A transformação da escola em um centro local de produção de conhecimento e cultura começa pela construção coletiva do seu projeto político pedagógico (PPP). Gestores, professores, colaboradores, estudantes, famílias e agentes da comunidade são convidados a refletir juntos sobre o contexto em que se encontram. Considerando o contexto social, a origem e a cultura das pessoas do lugar, os desafios econômicos, sociais e ambientais e as potências locais, qual o papel que a escola deve desempenhar para que as crianças e jovens daqui tenham condições de se realizar pessoal e profissionalmente?

Ao responder a tal pergunta coletivamente, o projeto pedagógico da escola definirá sua visão, seus valores e sua forma de organização. A partir disso, a cada ano o currículo será desenhado de modo a engajar estudantes e professores em processos de pesquisa e projetos de intervenção que possibilitem a realização do objetivo maior da escola. Partindo do levantamento da história, da paisagem, das expressões e tradições culturais e dos desafios socioambientais, cada instituição define seu plano anual, considerando as potências locais, os objetivos comunitários e os interesses dos estudantes, para o desenvolvimento de projetos coletivos que, ao mesmo tempo e tomam o lugar um território educativo, possibilitam que os estudantes aprendam a manejar e interpretar as informações, criando novas soluções e oportunidades.

A base metodológica da escola transformadora busca garantir o desenvolvimento de quatro habilidades fundamentais para o mundo em constante transformação. A primeira é a empatia: já não é possível realizar o bem comum seguindo estritamente as regras, por isso dependemos cada vez mais da capacidade de compreender as diferentes formas de conexão entre pessoas, seres vivos, coletivos e instituições, e como as mudanças constantes afetam tais conexões para, assim, encontrar as soluções que priorizam o todo. A empatia só pode se desenvolver no coletivo. O primeiro coletivo é a própria escola, na qual os estudantes devem ser convocados a participar da elaboração e da implementação das regras de convivência, da mediação de conflitos e dos cuidados com o outro e com o que é de todos. O segundo coletivo a que o estudante deve se engajar é o da comunidade em que está inserida a escola. É no contexto comunitário que o estudante deve ser participante ativo nos processos de investigação, reflexão e intervenção sempre pautados pelo bem comum.

Neste mundo em constante transformação, as institucionalidades, os departamentos e as hierarquias têm cada vez menos relevância. As pessoas estão frequentemente atuando em grupos diversos, novas equipes se formam em torno de objetivos comuns e depois se dissolvem. Ser capaz de assumir papéis diferentes e complementares em equipes diferentes, ora liderando processos, ora sendo liderado, é condição básica para a realização profissional e social. Chegamos aqui à segunda habilidade a ser desenvolvida na escola transformadora: trabalhar em equipes fluidas, com pessoas de competências, culturas e interesses diversos, construindo projetos conjuntos.

Cada vez mais, há uma urgência pela atitude. É um momento histórico em que não há tempo para soluções que colocam em risco a própria existência de futuro. O imediatismo e as emergências exigem indivíduos com uma atitude ao mesmo tempo prudente e criativa, que sejam capazes de formular novas soluções para problemas socioambientais urgentes. Soluções que criadas com base no domínio das diferentes linguagens, ciências e saberes, mas que sejam capazes de reinventá-las. A criatividade é, portanto, outra habilidade a ser desenvolvida.

A síntese de tudo isso pode ser o tão falado protagonismo do estudante. Esse pode ser um termo que expresse o movimento de o estudante se sensibilizar em relação a alguma questão, engajar outras pessoas no processo de criar ideias para enfrentá-la e colocar tais ideias em prática. O estudante transforma seu meio ao mesmo tempo que se transforma.

Território educativo

A escola que forma indivíduos capazes de se reconhecer como agentes de mudança e que conhecem sua potência para melhorar o mundo, catalisa processos que transformam seus contextos em territórios orientados para o pleno desenvolvimento de todos.

quando a escola se reconhece como agente da comunidade, transforma seu currículo para atender aos problemas locais.

Quando a escola mobiliza sua equipe e seus estudantes para investigar o lugar o em que está e os convida a pensar como o ambiente pode ser melhorado, invariavelmente induz a conhecer outros agentes do território que também têm potencial para transformá-lo e estão disponíveis para isso.
Normalmente há em um mesmo território, outros estabelecimentos do sistema educacional, creches ou escolas, voltadas para outros níveis de ensino ou pertencentes a outras redes de ensino. Em alguns casos, há também instituições de nível superior. É comum que a maior parte de crianças de uma determinada creche siga para a mesma escola da Educação Infantil, dessa para a de Ensino Fundamental e, às vezes, até para a escola de Ensino Médio. Acontece com frequência de a mesma família ter filhos em diferentes estabelecimentos de ensino do mesmo bairro. No entanto, apesar de todas essas conexões, é raro que esses estabelecimentos se encontrem. A escola que se identifica como um agente da comunidade vai, muitas vezes, buscar conhecer, trocar experiências e unir forças com as outras escolas, criando, em alguns casos, até mesmo um plano educativo local. Esse plano parte do compartilhamento de experiências, visões e desafios das instituições do lugar, da definição de objetivos comuns e da eleição de prioridades.

No compartilhamento dos desafios enfrentados pelas escolas do mesmo território, certamente elas se deparam com questões que não são capazes de solucionar sem o engajamento de agentes de outros setores: alunos que faltam muito porque as famílias estão passando por situação de vulnerabilidade, estudantes que sofrem violência doméstica, jovens que precisam sair mais cedo porque não há transporte público no horário necessário, episódios recorrentes de assalto no entorno da escola. Para enfrentar problemas desse tipo, as escolas precisam buscar outros agentes do território: assistência social, saúde, transporte, segurança, entre outros. Juntos, criam estratégias que fazem funcionar o sistema de garantia de direitos e são capazes de mobilizar a comunidade local para reivindicar seus direitos. Por isso, as associações de moradores e outras organizações comunitárias são agentes estratégicos do território educativo.

O diagnóstico feito pelas escolas pode apontar desafios ambientais, ausências de espaços de lazer e oportunidades culturais. Nesse caso, os parceiros a serem procurados são os da cultura, esporte, comunicação, meio ambiente, entre outros. Tanto os equipamentos públicos quanto os agentes comunitários e mesmo os equipamentos privados.

Um bom exemplo é o Bairro Educador de Heliópolis, na cidade de São Paulo, em que a catalisação de todo o processo foi feita pela Escola Municipal de Ensino Fundamental Campos Salles, em aliança com a União de Núcleos e Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (UNAS). Concentrando-se inicialmente na transformação de uma área degradada no entorno da escola em uma área de lazer que comportasse mais escolas para atender à alta demanda local, a aliança iniciada no final dos anos 90 segue até hoje, incluindo cada vez mais agentes para atender aos 125 mil moradores da região.

Com mais de mil estudantes, na Campos Salles, não há aulas. Nem salas de aula. Em um ambiente que valoriza a convivência democrática, a estrutura é de amplos salões, com mesas em que grupos de estudantes trabalham juntos, com base em roteiros de pesquisas escolhidos por eles. Quando precisam de ajuda, recorrem aos três professores que estão no espaço no momento. Os professores trabalham em parceria, rompendo com a estrutura do isolamento da sala de aula. A gestão da convivência escolar é feita pela República de Alunos, em que há um prefeito e vereadores eleitos pelo conjunto de estudantes, secretários nomeados pelo prefeito e comissões mediadoras.

Da aliança entre a Campos Salles e a UNAS, nasceu a Caminhada da Paz, que há 20 anos leva milhares de pessoas às ruas do bairro, com bandeiras e cartazes, resultantes de pesquisas que envolvem estudantes e educadores ao longo do ano. A organização anual da Caminhada é feita pelo Movimento Sol da Paz, que une escolas, associações de moradores, organizações da assistência social, da cultura e do esporte.

Há uma dimensão quantitativa dos resultados alcançados. Além da Campos Salles, a comunidade conquistou uma escola de Educação Infantil, uma escola técnica e uma universidade aberta. Na escola técnica, são oferecidos cursos de escolha da comunidade – nutrição, edificações e webdesign. O Bairro Educador de Heliópolis conquistou também onze Centros de Educação Infantil (CEI), oito Centros da Criança e do Adolescente (CCAs), dois núcleos do Serviço de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto, o Serviço de Atendimento Social a Família (SASF) e sete núcleos do Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (MOVA), todos geridos pela UNAS. Além dos equipamentos educativos, o Bairro Educador conta com uma biblioteca, um teatro/cinema, uma escola de música que sedia a Orquestra Sinfônica de Heliópolis, um centro poliesportivo, um Ponto de Cultura, uma rádio comunitária e um laboratório de fabricação digital. Todos esses equipamentos conquistados pela comunidade foram integrados pela gestão municipal constituindo um Centro Educacional Unificado (CEU). Na moradia, a conquista se revela em um condomínio com prédios redondos projetados em parceria entre a comunidade e o arquiteto, com área de lazer e comunitária.

Jovens agentes de transformação

Quando a escola se reconhece como agente da comunidade, possibilita que seu currículo seja construído na interface entre os desafios locais e os interesses dos estudantes. Os estudantes, motivados pela leitura compartilhada dos desafios locais, muitas vezes, são os catalisadores dos processos que podem transformar o lugar em um território educativo.

Em Araguatins, região do Bico do Papagaio, no Tocantins, Rhenan Cauê, de 13 anos, foi motivado pelo Colégio Estadual Osvaldo Franco a desenvolver uma iniciativa para enfrentar os desafios ambientais que o sensibilizavam. Na escola, Rhenan compreendeu que a sujeira do Rio Brejinho, o afluente do Araguaia em sua cidade, era a responsável pelas doenças tropicais como a dengue e a lepra, que vitimavam os moradores lugar. Para enfrentar a questão, Rhenan e os colegas vão às escolas para falar da prevenção das doenças tropicais, além de liderarem ações de conscientização em relação à mudança climática. Mas, foi com o projeto para limpar o rio, que Rhenan foi indicado como representante de sua escola na Conferência Estadual Escolar de Meio Ambiente e, depois, na Nacional. A partir disso, adquiriu as ferramentas para colocar o projeto em pé. Junto com os colegas, primeiro engajaram as outras escolas e organizações da sociedade civil para o mutirão de limpeza do rio. No processo, mobilizaram Prefeitura, Polícia Militar, Ambiental, Corpo de Bombeiros, Órgãos ambientais, universidades, Promotoria de Justiça. Rio limpo, partiram para a construção de alianças com Governo do estado e demais agentes do território, em busca das sementes para o plantio de árvores que dará origem à construção de um parque ecológico.

São muitos os exemplos de escolas que estimulam jovens a desenvolverem projetos para a transformação positiva de seus contextos. Escolas de Ensino Médio e técnico em áreas rurais que integram os saberes comunitários com os saberes científicos de manejo agroecológico, possibilitando aos jovens as condições para permanecer no campo, realizando-se pessoal, profissional e socialmente. Escolas em territórios indígenas que sediam os planos de manejo anuais da comunidade, tendo os estudantes como seus protagonistas. Escolas que se tornam polos culturais da comunidade, sediando eventos, mostras, festivais e outras iniciativas que valorizam as expressões locais, inclusive criando novas oportunidades econômicas. Todas essas experiências revelam é que o território educativo se constitui exatamente como resultado da ação articulada e catalisadora de escolas e estudantes que integram e potencializam as oportunidades locais.

Helena Singer
É vice-presidente da Ashoka para a América Latina, colunista da revista Nova Escola, membro do Conselho Municipal de Educação de São Paulo (CME-SP) e do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP). Doutora em Sociologia pela USP, com pós-doutorado pela Unicamp


Para saber mais

LOVATO, A.; FRANZIM, R. E-book: O ser o e agir transformador para mudar a conversa sobre educação. São Paulo: Ashoka e Alana, 2017. Disponível em mod.lk/etransf. Acesso em 26 jun 2019.

SINGER, Helena (org.). Territórios educativos: experiências em diálogo com o Bairro-Escola – volume 1. São Paulo: Moderna, 2015.

SINGER, Helena (org.). Territórios educativos: experiências em diálogo com o Bairro-Escola – volume 2. São Paulo: Moderna, 2015.

SARDENBERG, A; Ribeiro, R (orgs.). Territórios educativos: trilhas da cidadania, educação e refúgio na cidade, Vol. 3. São Paulo: Moderna, 2016. Disponível em mod.lk/cidapren. Acesso em 30 jun 2019.

Movimento Inovação na Educação: mod.lk/movinov


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