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Questão de clima

Pesquisadores da Unicamp e da Unesp desenvolvem questionário gratuito para avaliar clima escolar. Pelo menos 11 mil gestores, professores e alunos já participaram.
Texto Paulo de Camargo

Bullying e o cyberbullying; violências físicas e simbólicas; incivilidades e tudo o que a sociedade entende pela noção geral de indisciplina; falta de diálogo entre educadores, entre gestores, com os alunos. A escola do século XXI tem muitos desafios, além daqueles glamourosamente associados à inovação e a tecnologia. Como espaço de convívio cotidiano entre diversos indivíduos, a escola precisa ser um lugar de bem-estar. Em outras palavras, precisa ter um bom clima.

Mas para que serve um bom clima? Há quem busque a melhoria do clima para favorecer, ou para que, pelo menos, não seja impedimento para a aprendizagem do aluno. “Um clima bom não melhora automaticamente o desempenho, pois a competência no trabalho com o conhecimento é insubstituível. Mas sabemos que um ambiente ruim, de fato, atrapalha a aprendizagem”, diz a pesquisadora Telma Vinha, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), uma das maiores especialistas brasileiras no tema.

Apesar dessa correlação aparecer como um dos objetivos das escolas para melhorar o convívio, Telma defende que o trabalho sobre o clima escolar não pode ter uma função utilitária, e deve ser uma conquista por si mesmo. “É preciso que a escola seja um lugar de bem-estar para o aluno e para os que trabalham lá, que vá além das questões ligadas ao conhecimento”, diz a pesquisadora.

Segundo a pesquisadora explica, a definição de clima escolar envolve “o conjunto de percepções e expectativas subjetivas compartilhadas pelos integrantes da comunidade escolar, decorrente das experiências vividas, nesse contexto, com relação a normas, objetivos, valores, relações humanas, organização e estruturas física, pedagógica e administrativa. Ele influencia a dinâmica escolar e, por sua vez, é influenciado por ela e, desse modo, interfere na qualidade de vida e na qualidade do processo de ensino e de aprendizagem”.

Avaliar para analisar

A trajetória de pesquisa de Telma e dos pesquisadores de sua equipe desenvolvendo dissertações e teses de mestrado e estudando referências internacionais em diferentes continentes levou ao desenvolvimento de um trabalho inédito no Brasil: um questionário público de avaliação do clima escolar. Disponível gratuitamente para download desde 2017, o questionário permite que cada escola decida o melhor momento para aplicação, fazendo adaptações para seu contexto.

Com mais de 1700 downloads, pelo menos 70 escolas já participaram e mais de 11 mil questionários foram respondidos. Para facilitar a compreensão, a ferramenta traz um manual autoexplicativo que, em si, tem potencial formativo. O instrumento se tornou conhecido e, até para surpresa dos pesquisadores, ajudou a dar grande visibilidade para o impacto do clima em escolas públicas e particulares de todo o Brasil. O questionário e o manual podem ser acessados livremente em mod.lk/clima ou www.gepem.org.

O texto de apresentação do questionário mostra que, embora muito estudado em outras nações, desde 1900, o tema do clima escolar ainda é pouco abordado no Brasil. Ou, pelo menos, era. “A partir desse movimento, vemos surgir linhas inteiras de pesquisa sobre escola democrática e não democrática. Estávamos atrasados perto de outros países e agora estamos trazendo muitas novas visões a esse debate”, diz Telma. Mas em uma rede pública que envolve mais de 200 mil escolas, em todo o país, é preciso ampliar a difusão do conceito de clima escolar e de sua importância para a educação.

Histórico

Tudo começou em 2013, quando pesquisadores e pós-graduandos da Faculdade de Educação da Unicamp, do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (GEPEM) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp) tiveram um projeto de pesquisa selecionado no 1o Edital de Pesquisas Aplicadas em Educação. O tema desenvolvido era “Como garantir que todos os alunos tenham um bom professor todos os dias na sala de aula?”, e o material foi lançado pela Fundação Lemann e pelo Itaú BBA.

O projeto apresentado ainda não se referia a um instrumento específico de pesquisa, mas a um projeto de intervenção em duas escolas públicas na região de Campinas, com a formação dos educadores. A questão da avaliação quantitativa dos resultados alcançados logo entrou em pauta e se tornou um desafio.

Surgiu então a ideia de adaptar questionários utilizados em outros países para avaliar esse projeto. Os estudos internacionais já mostravam, então, que o clima escolar negativo era um campo fértil para o aparecimento de problemas comportamentais, e que o clima positivo favorecia a diminuição da violência e do estresse. A reflexão foi adiante e o grupo adaptou novos instrumentos para a realidade brasileira, envolvendo alunos de Ensino Fundamental – Anos Finais, professores e gestores.

Ao longo dos meses seguintes, três questionários foram testados simultaneamente e deram origem a um trabalho de intervenção nas duas escolas, sempre de forma articulada com as equipes das instituições. A proposta desenvolveu-se em três vertentes: uma pessoal, ligada à maneira de ser e fazer dos educadores e das relações com os alunos; uma curricular, sobre o planejamento e execução das atividades no campo da formação moral; e, por fim, a via institucional, ou seja, as atividades que partem da organização da escola e da classe, e que têm como pressuposto a participação democrática.

A partir desse estudo inicial, um novo apoio da Fundação Lemann e de recursos da FAPESP, órgão de fomento à pesquisa do Estado de São Paulo, permitiu a formação de uma grande equipe que trabalhou durante dois anos para construir, testar e validar tais instrumentos.

O objetivo da avaliação é dar voz aos atores da escola, permitindo que se expressem sobre o que sentem, mostrando a importância da opinião de todos. A avaliação pode dar uma fotografia do ambiente e promover o reconhecimento do que está acontecendo, mobilizando atores e estimulando a escola a agir.

O instrumento produzido pela equipe da Unicamp traz uma nova dimensão às formas mais utilizadas de avaliação do clima, quase sempre qualitativas e com base em observações e entrevistas. O desafio não foi nada simples, pois os fatores que formam a escola são complexos. “Nenhum fator isolado determina o clima de uma escola, visto que este depende da interação de vários fatores da instituição escolar e da sala de aula”, explica o estudo.

O primeiro passo

Como em todo processo de transformação escolar, não se pode imaginar um movimento de fora para dentro, de caráter obrigatório. É preciso que a escola queira enfrentar o tema, se conhecer melhor e buscar caminhos de aprimoramento.

As pesquisas demonstram que o clima escolar negativo pode representar riscos para a vida escolar, contribuindo para o surgimento de problemas comportamentais, sentimento de mal-estar e o aparecimento dos conflitos. Da mesma forma, há clara relação entre vitimização e clima escolar. Quanto pior o clima, maior a frequência de situações de bullying (e vice-versa). As vítimas percebem o ambiente como mais negativo e há uma naturalização das agressões.

Já o clima escolar positivo está claramente associado a bons relacionamentos interpessoais, a um ambiente de cuidado, pertencimento e confiança, a uma escola que apoia o aluno, com espaços de participação e de resolução dialógica dos conflitos, à proximidade dos pais e da comunidade, com uma boa comunicação e, sem dúvida, à qualidade no processo de ensino e aprendizagem.

Para Telma Vinha, a avaliação do clima não pode ser um fim em si mesmo, mas sim fazer parte de um projeto mais amplo, que envolva toda a escola — e não apenas um grupo de interessados. “A ideia de coletivo é fundamental. A escola vai muito melhor quando os profissionais são mais cooperativos, mesmo sem muito preparo, do que em outras com muitos talentos que só pensam em si. Escola traz a ideia de nós”, explica. Isso significa que os gestores precisam estar implicados. “Não se trata de um problema que é dos outros. É um problema nosso”, enfatiza a pesquisadora.

Esse mesmo princípio deve estar presente na devolutiva dos dados, ou seja, quando os resultados alimentarem as discussões entre as equipes e com os alunos. “Ela não deve ser realizada apenas pelo gestor, nem só pelo professor. Espera-se que ocorra um diálogo, capaz de avaliar o que a instituição já faz bem, quais são suas dificuldades, por que há discrepância de olhares, o que pode ser melhorado”, aponta o manual de aplicação da pesquisa.

É preciso ter consciência de que se trata de um processo com desafios de curto, médio e longo prazo, a serem construídos gradualmente. Transformar o clima de forma mais consistente e duradoura pode levar anos.

Por fim, deve-se lembrar que pesquisas não são oráculos que falam por si só: as informações precisam ser reinterpretadas, discutidas pelos atores envolvidos, e enriquecidas com outras informações, seja de pesquisas qualitativas, de dados empíricos ou do contexto da instituição.

A tabulação dos resultados é bastante simples, mas é preciso montar um plano para se pensar nas ações estratégicas. Isso requer também estudo e formação. “Se a escola não tiver ampliação do repertório sobre o problema vivido, só fará mais do mesmo. Se o problema é a desmotivação do aluno, precisa estudar isso. Buscar soluções de senso comum é o mesmo remédio ruim. Tem de buscar além, procurar especialistas, literatura, parcerias, repertórios novos”, propõe a pesquisadora.

Trata-se de um processo que leva ao amadurecimento de todos. O próprio manual cita o exemplo de uma escola em que os professores não reconheciam problemas ligados a intimidações, vendo muitas situações como naturais ou simples brincadeiras. Após estudar e discutir o tema, as situações foram vistas pelo mesmo grupo como fatores negativos, que pediam intervenção.

Para isso, é preciso uma mudança profunda na forma de pensar de muitos educadores. Um estudo importante sobre o tema, conduzido pela pesquisadora Maria Malta, há alguns anos, mostrou que, muitas vezes, os educadores só vêm como caminho o maior aumento do controle, das punições e do rigor. No estudo, 83% dos professores entrevistados defenderam medidas mais duras em relação ao comportamento dos alunos; 67,4% disseram que deveria haver expulsão de alunos e 47% propuseram a contratação de mais inspetores e psicólogos. Apenas metade dos ouvidos sugeriu a implantação de projetos de conscientização e valorização da escola envolvendo pais, alunos e comunidade em geral.

Se está bom demais, desconfie!

As escolas devem ter um olhar menos ingênuo para a realidade que vivem e ter disposição real para mudar. “Eu costumo dizer que, se o clima está ruim, é preciso intervir. Se está bom demais, desconfie”, brinca Telma Vinha. Muitas vezes, em um ambiente de aparente tranquilidade, pode haver, na verdade, um clima de desconfiança na gestão, fazendo com que as atenções e a energia de cada um estejam mais voltadas para a autopreservação do que para o diálogo e a coesão. “Não basta dizer que se vai melhorar o clima. É preciso de fato melhorar as relações humanas na escola”, explica.

Uma confusão possível no conceito de clima é considerar como premissa que em escolas com bom clima há também valorização da autonomia e desenvolvimento moral dos alunos. “É o mesmo que dissemos sobre o conhecimento. O clima bom não significa que se valoriza autonomia. Mas certamente o clima hostil impede”, diz Telma.

A ideia de clima caminha ao lado de construir uma escola com relações justas, sentido de pertencimento, mas não necessariamente com autonomia. “Percebemos claramente que os alunos amam responder porque sentem que têm voz. Mas as decisões escolares raramente são tomadas da perspectiva dos alunos. Em geral, a escola não é democrática no sentido mais completo do termo. Mas mesmo que não tenha uma simetria funcional, precisa ter uma simetria de princípios. Quando não há essa simetria é o problema. Significa que há imposição de ideias e regras que valem mais para uns do que para outros”, explica a pesquisadora.

O sentimento de injustiça está relacionado a normas unilaterais, injustas ou sem sentido; ao excesso de regras ou à aplicação inconsistente; às censuras generalizadas ou punições à maioria; às punições arbitrárias ou desproporcionais, ao tratamento de justiça e igualdade entre todos os alunos e às formas de avaliação que ocorrem na escola. Os estudantes sentem-se injustiçados quando expostos a avaliações mal preparadas e mal coordenadas.

No entanto, o que se busca em um trabalho consistente é o contrário: trata-se de construir a motivação intrínseca. “O verdadeiro objetivo da educação do caráter é que os estudantes internalizem os valores morais e afetivos. As recompensas e punições reduzem o valor que se quer internalizar”, ressalta Telma Vinha. Em outros termos, trata-se de mudar quem somos e não apenas como nos comportamos.

Por isso, um bom clima escolar frequentemente se caracteriza por ter poucas regras, mas necessárias e claras; permitir e estimular a participação dos estudantes e professores na discussão dos problemas, elaboração e transformação das regras; em uma boa comunicação; nas expectativas compartilhadas de comportamento e, sim, sanções justas, razoáveis e consistentes.

Nesse sentido, o papel do gestor é essencial. Segundo os estudos, o clima é melhor quando os educadores percebem o diretor como confiável e respeitoso, como alguém que os apoia e que se importa com os alunos, alguém aberto, acessível, engajado e coerente. O bom gestor, nessa perspectiva, incentiva e valoriza opiniões diferentes e lida com erro como parte do processo e aprender.


Para saber mais
Questionário e manual para avaliação do clima escolar mod.lk/clima


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