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O novo normal: famílias e a escola

Um ano após o início do ensino remoto emergencial, a participação familiar na educação ganha contornos e significados ainda mais próximos. Quais são os novos papéis nessa relação?

Texto  Lara Silbiger

Em um ano tão atípico como 2020, não foram apenas os estudantes que aprenderam novas lições de vivências escolares. Com a sala de aula dentro de casa, as famílias se viram mais próximas da educação dos filhos, assumindo outros papéis no processo de aprendizagem. Lidar com tal mudança na rotina rendeu reflexões e descobertas acerca da função do professor, da transcendência da escola para além do espaço físico e da sua relevância no projeto de vida de crianças e jovens. 

De acordo com a pesquisa Educação não presencial na perspectiva dos estudantes e suas famílias, encomendada ao Datafolha pela Fundação Lehman, Itaú Social e Imaginable Futures, 51% dos responsáveis consideram que participam mais da educação dos filhos na pandemia. O índice sobe para 58% entre os que têm maior escolaridade, contra 47% entre os que têm nível fundamental. Além disso, 72% dos pais sentem que estão com mais responsabilidade pela educação dos filhos.

O levantamento ouviu 1.021 responsáveis por estudantes de 6 a 18 anos da rede pública de todo o país em setembro de 2020 e revela que quase 90% das famílias consideram importante receber orientações da escola sobre como apoiar e motivar a realização das atividades. Os professores passaram a ser mais valorizados por 71% das famílias e 94% consideram muito importante que eles estejam disponíveis para corrigir atividades e esclarecer dúvidas durante as aulas não presenciais.

O estudo mapeou que os estudantes estão menos motivados e mais ansiosos em função do afastamento da escola. O índice dos que se dedicam até 3 horas por dia às atividades escolares é de 24%, enquanto 31% dedicam-se apenas de 1 a 2 horas diárias. Ainda assim, para 64% dos pais, as aulas não presenciais se mostram eficientes ou muito eficientes para o aprendizado. Para outros 36%, a modalidade é ineficiente. 

O medo de que os filhos abandonem a escola assola 31% das famílias. Para o estudo, essa percepção está atrelada aos entraves que os alunos enfrentam para acompanhar as aulas em casa, o que pode abrir espaço para a desmotivação e para uma possível desistência. Para vislumbrar o ensino remoto sob a perspectiva dos pais, a Educatrix conversou com cinco famílias de diferentes regiões do Brasil sobre suas experiências durante a pandemia. 

Desenvolvendo a autonomia 

Elsamar Emerique é arte-educadora e mãe de Geisany, 12, e Yanne, 6 (Jacundá, PA)

A pandemia trouxe tempos de distanciamento e de isolamento para as crianças. A escola foi o contraponto dessa realidade, com as aulas on-line e as crianças interagindo entre si e com os professores na plataforma virtual. Os olhos da minha filha Geisany, que estuda na emef Rosalia Correa, brilham de alegria cada vez que um colega abre a câmera. É a possibilidade de se ver, mesmo que através da tela. A escola tem esse papel de não deixar que se percam os vínculos sociais e afetivos. 

Em casa, a mudança de rotina foi drástica. A tarefa de ensinar, antes vista como responsabilidade exclusiva da escola, passou a exigir maior contribuição dos pais. Minha filha mais nova, Yanne, que fez o último ano da Educação Infantil na ercei Jardim das Acácias em 2020, precisou de acompanhamento em tempo integral para concluir as atividades das apostilas enviadas semanalmente pela escola. A mais velha realiza tarefas com mais autonomia e nos procura para tirar dúvidas eventualmente. 

Já o contato com a escola melhorou. Temos um grupo de WhatsApp das turmas e já me reuni com as professoras para pegar apostilas e receber orientações sobre como ajudar minhas meninas nos estudos. O ensino híbrido contribuiu para o desenvolvimento da autonomia e autodeterminação. Houve vezes em que a Geisany chegou a chorar por não saber como realizar uma atividade – estava acostumada com o passo a passo na sala de aula –, mas aprendeu a tomar decisões, a lidar com o risco de estar certa ou errada, e de alcançar ou não a expectativa do professor. 

O tempo das crianças em frente às telas é preocupante. Elas ainda não têm autocontrole para focar apenas nos estudos. Enquanto assistem à aula on-line, conversam no privado, dão uma passada no TikTok e assim por diante. É uma porta aberta para a ansiedade.

Apesar dos desafios da pandemia, vejo grandes contribuições da escola para a vida da Geisany e da Yanne. Uma delas é o respeito ao outro, em um espaço de interações e convívio com a diversidade. Outra, tão fundamental quanto para o futuro delas, é a construção do pensamento crítico.”

Desafios do ensino em casa

Marcela Castro* é funcionária pública e mãe de Camila, 7, e Mateus, 4 (Natal, RN)

Nos colégios dos meus filhos, as atividades remotas iniciaram poucos dias após a suspensão das aulas presenciais. A turma da Camila, com 25 alunos, foi dividida em dois grupos, com aulas síncronas de manhã e à tarde, já que a escola é de tempo integral. A do Mateus optou por videoaulas e, somente depois, adotou as aulas ao vivo. Apesar das dificuldades do novo modelo, como a falta de concentração das crianças para absorver o conteúdo, sobretudo pela falta de interação presencial com o professor e os colegas, as aulas remotas mantiveram a rotina. Ainda que de forma precária, garantiram o convívio. 

A mudança na rotina da família foi significativa. Mateus, com 3 anos, não se adaptou ao formato on-line e se estressava muito para assistir às videoaulas. Decidimos cancelar a matrícula na escola e orientá-lo em casa, por nossa conta e risco, com atividades adequadas à idade dele, como leituras de livros infantis, quebra-cabeças, jogo da memória, brincadeiras etc. Foi um desafio, pois, trabalhando em esquema home office, não tínhamos como acompanhá-lo em tempo integral. 

No caso da Camila, meu esposo e eu nos revezamos para acompanhar aulas e tarefas, tentando atender às necessidades que o professor não conseguia suprir e manter o interesse dela pelas atividades escolares. Como ela estava em alfabetização, compramos uma lousa e, com jogos e brincadeiras, complementamos as tarefas escolares para que ela se familiarizasse com a escrita. 

Os pais não podem substituir a função do professor. Não fomos preparados para isso nem temos metodologia de ensino, mas desempenhamos papel fundamental na pandemia, no sentido de manter vivo o interesse, o foco e o compromisso dos filhos com a escola. O lado bom foi nos conectar mais às crianças durante o isolamento social. Talvez não estivéssemos tão atentos a alguns aspectos, não enxergando algumas carências que deixávamos a cargo da escola. Mesmo que as coisas voltem ao antigo normal, estaremos mais atentos.

Há aspectos que não foram positivos no ensino remoto: a dificuldade do professor de captar certas emoções e necessidades do aluno, por conta da falta de contato físico e pela aula transmitida por meio tecnológico; a dificuldade de comunicação com a escola, que poderia ter sido mais frequente para minimizar a insegurança e as dúvidas dos pais e com orientações mais claras de como acompanhar as atividades escolares e o desenvolvimento do aluno, situando-nos melhor quanto a carências que nós, como pais, não somos capazes de ver; a falta de novas metodologias de ensino e remodelagem do aprendizado, com foco mais individual para cada aluno.

Na educação dos meus filhos, valorizo na escola aspectos que vão além da educação formal, como a diversidade de atividades oferecidas (ioga e horta), simplicidade nos eventos sociais e comemorações, disciplina e, principalmente, a busca pelo desenvolvimento da autonomia dos alunos.”

*Nome fictício, a pedido da entrevistada

O que dizem os alunos?

Senti muita falta das minhas amigas. Se estivéssemos na escola, o ano seria cheio de eventos e experiências que só o 3º ano do Ensino Médio no modelo presencial poderia ter trazido, como ir à escola de fantasia. Sobre minha preparação para o vestibular, por mais que as notas no boletim tenham aumentado, sei que teria sido melhor aluna na escola. Não deixei de fazer lições e trabalhos, mas o caderno arrumado e completo como eu costumava ter se perdeu no tempo. O cansaço de ficar na frente das telas o dia todo foi difícil de enfrentar, mas nada impossível.” 

Manuela Del Piccolo Rocha, 17

Acompanhar as matérias a distância, sem a chance de abraçar meus amigos e aprender com eles e com os professores, foi mais difícil. Senti saudade dos trabalhos em grupo. Já em relação ao que estava ao meu alcance, poderia ter me organizado melhor para passar menos tempo na frente de telas.”

Roberta Del Piccolo Rocha, 13

Por uma parte, achei bom ter aulas on-line porque elas são mais curtas, passam rápido e, se fechar um pouco a câmera, dá até para fazer um lanchinho. Aprendi bastante, tirei muitas dúvidas com os professores e contei com a ajuda dos meus pais. Mas tive dificuldades. Não foi a mesma coisa que estar pessoalmente na escola. A gente não tem a mesma liberdade para participar da aula, não se sente à vontade para interromper o professor. Quando chega a hora das perguntas, esquecemos qual era a dúvida. Isso sem falar na conexão, que fica ruim, cai. A parte mais difícil foi ficar longe dos amigos. Tive saudade dos professores, que explicavam superbem. Minha vontade é dar um abraço em todo mundo.” 

Geisany Emerique dos Santos, 12

Desafios digitais

Lidiane Santos é diarista e mãe de Matheus, 17, Emily, 10, e Miguel, 1 (São Paulo, SP)

A pandemia mudou tudo. A Emily fazia o 4o ano em período integral na EMEF José Dias da Silveira e estava acostumada a socializar com os amigos o tempo todo. Eu, que antes já cuidava da casa e do bebê, virei quase uma professora. Sento-me com ela, pego um livro, faço contas para distrair a mente dela. Apesar de ela ter sido aprovada, eu tenho a sensação de que não aprendeu nada. 

No ano passado, quando a Prefeitura começou a educação não presencial, recebemos pelos Correios os livros da Emily e do Matheus – aluno do 9º ano da Educação de Jovens e Adultos na emef José de Alcantara Machado Filho. Para os dois, a dinâmica de estudo era a mesma. Os professores lançavam as lições no Google Sala de Aula, e os alunos enviavam a foto da atividade realizada no livro. Na prática, porém, não era tão simples porque não temos computador e, durante um bom tempo, ficamos sem wi-fi. O jeito foi ajudar a Emily a acessar a lição pelo meu celular, o que era uma verdadeira tortura por causa da internet. A página não carregava, a foto não ia e assim por diante. O Matheus tinha o próprio celular.

O contato com os professores era pelo WhatsApp,
no qual mandavam áudios explicando as lições e tirando dúvidas. Algumas vezes, ligamos para a professora da Emily, sempre muito atenciosa, pois algumas coisas eu nem sabia ensinar e me deparava com a minha filha brava, chorando, porque não entendia. A turma da Emily tinha encontros semanais de 1 h 30 com a professora para leitura de um livro pelo Zoom. Era meio estressante porque a internet geralmente caía quando ligávamos a câmera. A parte mais difícil foi o período de avaliação
on-line. Chegamos a passar um dia inteiro tentando abrir uma prova. Minha filha só conseguiu fazer duas avaliações no ano. Como eram longas e de múltipla escolha — com 50 testes —, foi bem complicado ler tudo aquilo pelo celular.  

Não vi nada positivo na educação não presencial. Tive a certeza de que a escola tem toda a importância na vida da minha filha. Afastada da escola, ela se estressa e sente falta dos amigos. Vejo na escola o caminho para o futuro, rumo a uma profissão. Diferente de mim, que só estudei até a 8a série, quero que a Emily termine os estudos e faça faculdade. Meu esposo e eu colocamos na cabeça dela que poderá ser médica, professora, confeiteira, o que quiser.”

Novas habilidades

Janete Candido é advogada e mãe de Victor Augusto, 22, Danilo Fernando, 16, e Sofia, 4 (Campo Grande, MS)

Em Campo Grande, o fim das aulas na rede pública coincidiu com o início do lockdown. Até a Secretaria de Educação se organizar e ver qual a melhor forma de retomar as atividades levou quase um mês. 

A volta foi marcada por desafios, principalmente tecnológicos. Antes os alunos não usavam a internet na escola e, de repente, tiverem que aprender a usar plataforma digital para ter aulas ao vivo e mandar trabalhos por e-mail. Meu filho Danilo, que ingressou no Ensino Médio em 2020, chegou a achar que enviara um trabalho e, quando viu, tinha feito algo errado no processo e estava sem nota. Para quem não tinha computador ou internet em casa, a escola disponibilizou apostilas, que os pais retiravam na Secretaria. Eu só precisei pegar uma no fim do ano, quando meu filho ficou de recuperação.

Mesmo respeitando o distanciamento social, procurei manter o contato próximo com a escola. Durante a quarentena, agendei três encontros com a direção e a orientação pedagógica para tirar dúvidas e falar sobre o desenvolvimento do Danilo, que estuda na e.e. General Malan. Minha maior preocupação não eram as notas, mas o aprendizado. Em casa, eu não sentia o mesmo senso de responsabilidade e vontade de aprender como na escola. Não havia rotina fixa nem disciplina com o horário de estudo, e a carga alta de trabalhos o deixava desanimado. 

Apesar da pandemia, tiveram pontos positivos no ensino remoto. Vejo que meu filho desenvolveu habilidades que só fui desenvolver na faculdade, aos 33 anos. Por exemplo, incorporar recursos digitais ao dia a dia, vivenciar a educação a distância (EAD) e ser mais autônomo e autodidata. Ele aprendeu a aprender, a buscar recursos além do livro didático, a pesquisar aulas no YouTube para tirar dúvidas, e tudo isso num ambiente seguro, no qual a escola foi bastante paciente e aberta a dar segundas chances.

Não tenho dúvida de que a escola foi essencial na quarentena também para manter o vínculo do Danilo com os colegas, com os professores e com o próprio aprendizado. Isso é essencial para o futuro que almejo para ele e para os irmãos. Não quero que passem pelo que passei até conseguir chegar ao Ensino Superior. A educação abrirá as portas e trará as oportunidades de fazer escolhas. Tem poder de escolha quem está preparado. Do contrário, passará a vida sendo escolhido e se submetendo ao que aparece. A escola é o caminho para meus filhos se desenvolverem, serem independentes e trabalharem naquilo que, de fato, amam.”

Acolhimento na pandemia

Marcia Del Piccolo Rocha é enfermeira e mãe de Manuela, 17, e Roberta, 13 (São Paulo, SP)

Cursar o último ano do Ensino Médio a distância foi um desafio para a Manuela. Apesar de o Colégio FECAP ter mantido o calendário letivo e a grade horária, a rotina mudou completamente. Socialmente, ela se sentiu pulando o ano da formatura. Não teve a programação esperada e o contato com os amigos diminuiu — alguns sequer participavam das aulas. Muitas vezes, se viu sozinha, sem ninguém mais para contribuir com comentários, perguntas e sugestões. 

A pandemia nos fez conversar menos com as nossas filhas sobre as aulas. Vê-las estudando em casa nos dava a sensação de estar participando do processo. Porém, sem o mesmo envolvimento. Antes, o pai aproveitava o trajeto de carro até a escola – que fica a 20 quilômetros de casa — para conversar com a Manuela e orientá-la sobre os estudos. Já a Roberta, que cursou o 7o ano no Colégio Stockler, ia comigo e voltava com a avó. 

No entanto, tivemos a oportunidade de tê-las por perto, podendo observar como falavam com os colegas, suas atitudes e emoções. Talvez, se estivessem na escola, demorasse mais até repararmos que estavam sofrendo ou precisando de um abraço.

A Manuela melhorou seu desempenho com provas on-line, o que a incentivou a buscar as melhores respostas e a se apropriar do conteúdo, sem ter que chutar. Teve mais tempo para se dedicar aos trabalhos escolares, mantendo-se ativa durante o distanciamento social. Já a cobrança por parte dos professores não foi a mesma que em classe. E isso, para quem está à porta dos vestibulares, pode ser negativo nos resultados das provas. 

A Roberta mostrou desânimo em participar das atividades on-line, apesar dos esforços e da agilidade da escola na migração para o remoto, com aulas ao vivo, rotina, regras e envio de kits de ciências para experimentos em casa. Frequentemente, pedia para faltar. Sinto que, em alguns momentos, faltou acolhimento e apoio psicológico, como uma aula para falar de sentimentos ou sobre a experiência de aprender a distância. Isso reforça para nós, pais, o quanto a socialização é e sempre foi fator fundamental na educação. A escola, além de exercer papel-chave na formação dos estudantes, é espaço de trocas e convivência entre culturas, falas e comportamentos.”.

PARA SABER MAIS

  • Pesquisa Educação não presencial na perspectiva dos alunos e famílias. Disponível em: mod.lk/ed20_pde (acesso em: 20 mar. 2021).
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