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Os desafios de incluir

Em meio a tantas transformações, a educação inclusiva ganha força nos debates dentro da escola: como respeitar as diferenças e verdadeiramente incluir alunos de diversas realidades?

texto Educatrix

A educação transforma vidas. Em rodas de conversas, é comum o discurso de que, para ser bem-sucedido, a educação é o caminho. Vem dessa ideia preestabelecida o debate sobre uma educação inclusiva. Se a educação é o caminho, nada mais justo que promova espaços para o acolhimento às diferenças e para oferecer oportunidades. Se realmente enxergamos a educação como a ferramenta de transformação do mundo, a escola precisa ter a inclusão como um de seus pilares. 

Se o senso comum apoia a ideia, por que ainda é tão difícil pensar em um currículo e em práticas que observem as desigualdades e as transformem em oportunidades justas? Como a escola pode se tornar esse ambiente de igualdade e acolhimento? Para entender melhor essa relação, a Educatrix convida as especialistas Damaris Silva, Telma Pantano e Doani Bertan para refletir e colocar luz em três frentes da educação inclusiva: social, especial e digital.


PARA SABER MAIS

  • Creators for Change: Por que preciso voltar à escola? Direção: Ana Paula Xongani e Karoline Maia. Produção: Mariana Lemos. Programa Youtube Creators for Change, 2020. Minidocumentário (15 min.). Disponível em: mod.lk/ed21_pd1. Acesso em: 9 jul. 2021.
  • EMICIDA: AmarELO – É tudo pra ontem. Direção: Fred Ouro Preto. Brasil: Netflix, 2020. Documentário (89 min.). 
  • HOOKS, B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017.
  • CANAL SALA8. Direção: Robson Trindade. Produção: Doani Emanuela Bertan, 2017. Disponível em: mod.lk/ed21_pd2. Acesso em: 9 jul. 2021. 
  • Ministério da Educação. Projeto Escola Viva: garantindo o acesso e permanência de todos os alunos na escola, 2020. Disponível em: mod.lk/ed21_pd3. Acesso em: 9 jul. 2021.

Inclusive social

É hora de abrir a escola verdadeiramente para todos.

texto Damaris Silva

Os pretos ou pardos representam 75,2% do grupo formado pelos 10% mais pobres no Brasil. A taxa de conclusão do Ensino Médio dos homens brancos (72,0%) é maior que a das mulheres pretas ou pardas (67,6%). Entre os estudantes de 18 a 24 anos cursando o Ensino Superior, 55% são pretos ou pardos e 78,8% são estudantes brancos. Os dados acima foram extraídos de uma pesquisa publicada pelo IBGE em 2019. De modo amostral, as análises advindas desse estudo se concentram nas desigualdades entre brancos e pretos em nosso país. Podemos supor que a partir da pandemia em decorrência da covid-19, todos esses números se agravaram. 

Cada uma dessas informações tem engendrada em sua leitura a perspectiva da interseccionalidade das identidades de raça, gênero e classe, seu impacto na formação da sociedade brasileira e, consequentemente, na educação de nossas crianças e jovens. O desafio de uma educação inclusiva precisa levar em conta a igualdade de oportunidades e a mitigação da exclusão social, que atinge grupos específicos de maneira devastadora. 

Eu me incluo nesses grupos. Sou uma mulher negra que ocupa espaços em que raramente meus pares são os meus iguais. Certa vez, me lembro de que, na universidade (pública), um professor inconformado com a minha posição favorável às políticas de cotas raciais alegou inquieto: “Mas você não entrou aqui por cotas!”. Minha resposta óbvia foi que era justamente por isso que eu me colocava a favor. Não me atrevo a ser essa figura excepcional, cujo mérito me alocou nos mais variados ambientes de poder social e intelectual; ao contrário, luto contra qualquer força que legitime o ilegitimável: a desigualdade. Acredito que essa mudança obrigatoriamente passa pela escola. 

Assim como um bom médico tem uma abordagem às doenças de modo biopsicossocial, atentando às instâncias biológicas, mentais e sociais, ao pensarmos uma educação inclusiva, não podemos ignorar a relação latente entre raça, gênero e classe na sala de aula. Quando nos fixamos à ideia de uma escola verdadeiramente democrática, é necessário aguçar o olhar às minorias — que não são numéricas, mas sim sociais — e nos subsidiar de estratégias que criem condições promissoras de aprendizagem a todos, do contrário qualquer prática pedagógica inovadora se torna falaciosa. Entendo que essa não é tarefa simples, por isso, para auxiliar nessa caminhada, proponho algumas referências.

A primeira delas é o minidocumentário Por que preciso voltar à escola, dirigido pela influenciadora digital Ana Paula Xongani como parte do projeto Creators for Change, iniciativa do Youtube em parceria com Michelle Obama. Por meio da delicadeza de uma carta a sua filha, Xongani traz um relato emocionado daquela mãe que foi uma menina que há anos ficou sozinha na escola e que agora retorna transfigurada, para mostrar como a escola dos sonhos de uma menina negra precisa ser uma “escola de verdade”. 

Outra referência imprescindível é o documentário AmarELO: É tudo pra ontem, do rapper Emicida. Lançado em 2020, a obra mostra os bastidores da gravação do show realizado no Theatro Municipal de São Paulo, acrescido de uma viagem no tempo, uma narrativa que ressignifica a história brasileira, desta vez através do olhar dos jovens negros e periféricos. Ao trazer essa perspectiva, Emicida auxilia a escola na inserção de outras referências, entre tantas outras, Lélia Gonzalez e Aimè Césaire. No filme, o narrador transforma tragédias em potências e nos convoca para a ação, afinal “todas as nossas chances de consertar os desencontros do passado moram no agora”. 

Por fim, a leitura necessária aos educadores interessados na educação como prática da liberdade é Ensinando a transgredir, de Bell Hooks. A obra explora aspectos do multiculturalismo, racismo e sexismo na educação e em um dos capítulos trata especificamente da “Confrontação da classe social na sala de aula”. Para a autora, é ilusório acreditar que o conhecimento é distribuído em proporções iguais e justas uma vez que os valores de classe limitam a livre expressão de parte dos alunos e que, por isso, impedem um intercâmbio democrático de ideias. 

Incluir não é só estar presente, é também a forma como essa presença é vista e tratada dentro do ambiente escolar. Uma vez que introduzimos em nossas práticas a luta contínua frente à inclusão social, racial e de gênero, assumimos o papel da escola na promoção da igualdade. Esse é o meu chamamento para você.


DAMARIS SILVA  é bacharel e licenciada em Letras, com habilitação em Língua Portuguesa e Língua Inglesa pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Mestra em Letras, com ênfase na área de Estudos Comparados de Literaturas em Língua Portuguesa (USP) e especialista em Gestão Escolar (MBA – USP/Esalq). Atua há mais de 17 anos no mercado educacional como consultora em escolas públicas e privadas e redes públicas de ensino. Atualmente, é gerente de Serviços Educacionais da Moderna, na gestão pedagógica da área de Novos Negócios, e assina mensalmente a coluna Transformação da Revista Educação.


Educação Inclusiva Especial 

Ciência e educação a favor da inclusão.

texto Telma Pantano

Os conceitos que envolvem a educação inclusiva ainda geram dúvidas e incertezas entre a comunidade escolar, as famílias e a comunidade médica. Visões e conceitos distintos permeiam a prática e as leis e possibilitam diferentes perspectivas de implantação e organização do ensino.  

Embora a proposta de educação inclusiva esteja prevista e legalmente orientada desde 1996 (LDB n. 9.394), ainda há muito a se avançar. Na construção desses processos estão na linha de frente os pais e familiares de crianças com deficiência. O resultado foi o direito legal da inclusão dos filhos na educação regular, trazendo à escola conceitos de igualdade e equidade de condições para a aprendizagem. 

A educação inclusiva parte de uma revisão da prática educacional, considerando cada aluno. É preciso ter definições claras das necessidades individuais e traçar estratégias e critérios de atuação docente para que a ação educativa atinja diretamente o processo de aprendizagem do aluno (MEC, 2000; MEC/SEESP/SEB, 1998). Nessa proposta, a inclusão não se refere somente a questões socioemocionais e à interação entre os pares. O papel pedagógico torna-se central e a escola deve assumir a responsabilidade de ensino nos mais diversos níveis e conceitos pedagógicos, entendendo as necessidades individuais para que a aprendizagem aconteça. 

O manejo socioemocional e comportamental tem protagonismo para que os conceitos de cada disciplina possam ser absorvidos e relacionados para qualquer aluno e, em especial, para as crianças em processo de inclusão. A escola é um espaço de aprendizagem em grupo e, portanto, a individualização desse processo traz dificuldades que vão desde a formação dos profissionais até a adaptação do material didático e da estrutura pedagógica. É fundamental compreender o processo de inclusão pela organização de práticas que permitam o conhecimento mesmo com as deficiências. 

Estudos sobre funcionamento cerebral demonstram que, mesmo com patologias específicas diagnosticadas, o cérebro (e o sujeito) não tem consciência das suas dificuldades. O cérebro funciona da melhor forma de acordo com a estimulação ambiental recebida. Para promover a aprendizagem, portanto, são necessários recursos ao ambiente educacional e um olhar apurado do professor, assim como avaliações periódicas de equipes externas (relacionadas à área da saúde) para que a evolução da criança seja registrada. 

Para a adaptação curricular, aquilo que o aluno não sabe ou não consegue torna-se secundário à sua aprendizagem. Entender como o aluno aprende e como facilitar o processo de organização dos sistemas associados à aprendizagem é o centro para uma adaptação inclusiva. Quando consideramos o ensino inclusivo, temos de adaptar o ambiente ao funcionamento cerebral da criança. Em uma situação real, a aprendizagem, a participação, o comportamento e os relacionamentos sociais do aluno no contexto educacional devem ser comparados com as expectativas curriculares e comportamentais do ano em que ele está matriculado. A escola, em conjunto com a família e a equipe multidisciplinar envolvida, deve definir metas e objetivos individuais. 

Quais estratégias a escola pode utilizar para desenvolver essas habilidades? De qual forma o ensino deve ser estruturado para a inclusão?  

Adaptações de pequeno porte – relacionadas à organização do ambiente, espaço ou metodologia de ensino –, não são consideradas um processo de inclusão porque fazem parte da rotina escolar independentemente do diagnóstico da criança. A educação inclusiva real envolve adaptações curriculares e são consideradas de grande porte (MEC, 2000). 

A escola deve considerar a apresentação dos materiais em aula e as adaptações linguísticas e sensoriais que melhor se adaptem. Por exemplo, uma criança com disgrafia pode fazer uso de tablets e materiais digitais para as atividades. Uma criança com dislexia pode usar materiais previamente gravados de forma auditiva. Crianças com autismo se beneficiam de recursos visuais para a compreensão dos conteúdos e a apresentação das tarefas. Não esqueça que, para o nosso cérebro, o processamento da escrita é auditivo com entrada visual, portanto não é um bom recurso o excesso de informações escritas. Transformar o conteúdo escrito em imagens, assim como a organização temporal, podem ser uma estratégia fantástica a questões do tipo: como aconteceu, como foi, explique como faz etc.

Precisamos entender e questionar cada uma das ações pedagógicas no contexto educacional. Para que servem? Qual a utilidade para os alunos? Vamos considerar a lição de casa. Para que serve? Na visão neurocientífica, essas atividades têm um papel extremamente importante: reativar as conexões neuronais que foram ativadas pelo professor durante a aula expositiva e estruturar memórias a longo prazo. Estudos atuais das neurociências propõem que as rotas neuronais sejam reforçadas para que as memórias a longo prazo possam ser estabilizadas, porém não existe uma única forma para isso. 

Para reativar essas redes neuronais de forma ampla em um curto período, basta propor atividades que envolvam a organização da síntese/resumos do conteúdo da forma mais tranquila para a criança. Não existe uma única regra. Uma criança pode gravar um áudio, outra fazer desenhos sobre o conteúdo e outra escrever palavras-chave. O rodízio entre as estratégias pode ser um caminho para o professor desenvolver habilidades e, ao mesmo tempo, auxiliar as crianças em processo de educação inclusiva.  

A educação inclusiva é uma realidade a se valorizar. Cada perfil de comportamento, as falhas na socialização, as dificuldades na expressão emocional e na aquisição de conteúdos deve ser contemplado para que a inclusão seja mais que uma ideia, uma realidade social.


TELMA PANTANO é fonoaudióloga e psicopedagoga do Serviço de Psiquiatria Infantil do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), coordenadora da equipe multidisciplinar do Hospital Dia Infantil do Instituto de Psiquiatria da FMUSP, professora colaboradora da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), especialista em Linguagem, Mestra e Doutora em Ciências pela FMUSP, Master em Neurociências pela Universidade de Barcelona (Espanha), Pós-doutora em Psiquiatria pela FMUSP.


Educação inclusiva digital

Um relato sobre a importância de democratizar conteúdos digitais. 

texto Doani Bertan

O crescente consumo das Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDIC) por diversos segmentos da sociedade tem corroborado para transformar o mundo em “algo menor” devido à rapidez e facilidade de acesso às informações, em uma coletividade cada vez mais conectada. Essa realidade nos faz indagar: as práticas pedagógicas estão seguindo as transformações sociais advindas das interações tecnológicas? 

Ao compreender que a escola é a representação da sociedade, é incoerente oferecer práticas pedagógicas instrumentalizadas apenas por papel e lápis, enquanto, além dos muros, o aluno imerge, constantemente, nas vivências tecnológicas. A prática docente precisa se expandir para além da sala de aula, o professor deve estabelecer com a sua turma novas conexões com o conteúdo, com a aprendizagem e, por fim, novas relações com a sociedade. Assim, a instrumentação da escola deve valorizar ferramentas que atendam a todas as especificidades daquele universo escolar. 

Um exemplo para ilustrar (vivido por mim de perto) tange à educação bilíngue para surdos por conta da escassez de material didático. Nos últimos tempos, houve uma crescente na produção de materiais em Libras, contudo diversos fatores comprometem a eficácia, como materiais impressos que dificultam o entendimento do sinal, a falta de olhar para o regionalismo linguístico e o foco apenas na Educação Infantil e na aquisição da Libras. 

Aproveito para trazer algo pouco discutido na educação bilíngue de surdos: uma criança ouvinte, quando realiza seus estudos em casa, o faz, com dificuldades ou não, em sua língua materna (L1). No caso dos surdos, essa mesma prática é dificultada pelo fato de ser realizada em uma língua diferente da sua materna (L2), que ainda estão se apropriando e não têm total domínio. 

A fim de suprir tais adversidades, passei a desenvolver videoaulas bilíngues para serem utilizadas em sala e nas tarefas de casa. A iniciativa surgiu a partir de uma prática comum entre mim e meus alunos: conversas fora do horário de aula por videochamadas. Essas tutorias on-line se intensificaram e muitos foram os vídeos enviados. Apesar de suficientes, a meu ver, não estavam adequados. Por isso, iniciei a produção de videoaulas de maneira sistematizada e mais atrativa. O planejamento foi intenso, com inúmeras idas e vindas, até que teve sua concretização com o canal Sala8 no Youtube, com conteúdos abertos e gratuitos para todos. 

Como não tinha experiência nesse tipo de conteúdo, realizei pesquisas que me mostraram a escassez de aulas acessíveis em Libras, que o tempo médio de videoaulas era inadequado (aulas extensas), a edição nem sempre contemplava o aluno surdo e a legendagem era feita de forma confusa. Com esses dados em mãos, parti para o segundo passo: escrever os roteiros das videoaulas. 

A escrita respeita gramaticalmente as peculiaridades da Libras para garantir qualidade e fidelidade linguística. O conjunto da obra contempla o público infantil, portanto a sinalização necessita ser clara e com muitos classificadores e expressões. Durante a fase de edição da primeira videoaula, tive a ideia de ofertar atividades extras, com o intuito de amplificar ao aluno a experiência da autonomia, bastando que acessasse links para baixá-las e imprimi-las. 

No ar desde novembro de 2017, o canal Sala8 apresentou valiosas contribuições como estímulo para os estudos, uma vez que sua visualização se dá por meio do manuseio de tecnologias que agradam aos alunos e com qualquer tipo de conexão; possibilidade de estudo fora do ambiente escolar; interesse e aprendizado da Libras aos alunos e familiares ouvintes; suporte aos pais, surdos e ouvintes, no auxílio das tarefas de casa a seus filhos. Como professora e cidadã, é essencial contribuir para as mudanças nos paradigmas da sociedade atual perante a aceitação das diferenças, prestígios linguísticos e reconhecimento da diversidade.


DOANI EMANUELA BERTAN é formada em Pedagogia, pós-graduada em Educação Especial (Libras), Psicopedagogia, Prática e Interpretação de Libras Avançada com Ênfase na Elaboração de Material Didático Bilíngue Português/Libras. Mestranda em Educação. Atua como professora bilíngue de alunos surdos e ouvintes, idealizadora e responsável pelo canal Sala8 e finalista (Top 10) do Prêmio Global Teacher Prize 2020.

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