O que é preciso para que essa seja a década da educação infantil?
Um olhar atento para a geração que contará o próximo capítulo da humanidade.
Texto Silvana Augusto |Ilustração Dora, 6 anos
Dora acabava de chegar à escola quando se iniciou a quarentena por conta da Covid-19. Em seu último dia de aula presencial, ela deixou registrada uma ideia que revelaria o desejo de todos os adultos: um meio de livrar a humanidade de um poderoso vírus letal. Para Dora, a solução era uma engenhoca que, com seu fluxo rápido e fácil, não apenas higienizaria, mas transformaria a população. Os usuários de sua máquina entrariam nessa esteira, já nos veríamos sem roupas e, em pouco tempo, imunizados! A máquina inoculadora era uma espécie de combo de ressonância magnética, raio-X, kit completo com protocolos curativos e moda inverno (notem que já sairíamos vestidos, incluindo o gorro, porque já seria o início do inverno). A máquina é universalmente eficaz e serve para todos.
O desejo da menina foi o de muitos profissionais da área da saúde que já foram meninos e meninas e desenharam, em seus pequenos cadernos, entre brincadeiras de parque e intervalos de recreio, suas próprias invencionices. Essas crianças-cientistas, em tempo recorde, chegaram a uma vacina, mas ainda trabalham para produzir seres humanos melhores. Enquanto a máquina da Dora não chega, nós, adultos, compartilhamos a responsabilidade e o espírito humanitário que a virada do século exigiu.
A virada do século e os aprendizados para a nova década
Para Lilian Schwarcz, a pandemia de Covid-19, mais de 100 anos depois da gripe espanhola, marca de forma definitiva a virada do século. Somente agora estamos efetivamente nos despedindo do século 20, marcado pela luta contra o racismo, contra a discriminação de todas as diferenças entre as pessoas, sejam elas de gênero, de idade ou de pertencimento social, o fim das utopias, em grande parte sustentadas pela política, abalada pelas novas formas de poder e dominação. Um século que termina diante do fracasso da marcha desenfreada da tecnologia e a consequente exploração dos recursos naturais que, de forma dramática, ameaçam a vida no planeta.
A pandemia trouxe o medo diante da finitude da vida, a insegurança, a dor da perda e da solidão e, muitas vezes, a perspectiva de um futuro incerto. Aos otimistas, a esperança mora na incerteza: o futuro ainda pode ser construído, se nos responsabilizarmos por ele. Isso dependerá dos aprendizados desse tempo, da consciência de que a vida do outro importa e de que, sem solidariedade e respeito, não é possível sequer manter-se vivo.
Parte da responsabilidade pelo mundo, como afirmava Hannah Arendt, se expressa na atenção à educação das crianças. Como queremos nos responsabilizar pelas crianças e, consequentemente, pelo mundo? Essa é a pergunta para o educador do novo milênio.
Em meio à chegada do novo século, como vemos a Educação Infantil? Qual é sua atual situação? O que é preciso para que ela seja pauta nacional na próxima década? A resposta pode estar na travessia de crianças e professores pela pandemia.
O impacto da educação infantil para a vida das crianças
Nunca se discutiu tanto a Educação Infantil e a sua real necessidade como nesse período de pandemia. O que fazer com as crianças em casa por tanto tempo? Para além da instrução, obtida pelo acesso aos recursos didáticos e bens culturais, como promover a socialização e suprir a falta do contato com outras crianças? Como conciliar o intenso trabalho em esquema home office com os cuidados que as crianças demandam?
Mais do que nunca, hoje se reconhece que o papel social da escola vai muito além da guarda dos alunos. É resultado de uma longa construção histórica. A escola Moderna, sobretudo na Educação Infantil, organiza-se com o propósito de avançar as experiências e as aprendizagens das crianças, compreendidas como sujeitos implicados no próprio processo de aprender, guardando as especificidades da infância e seus modos de ver o mundo, promovendo a sobrevivência e o avanço das culturas infantis, desafio da escola contemporânea.
As crianças têm direito à educação, e isso, efetivamente, tem impacto fundamental em seu desenvolvimento. Uma pesquisa realizada em seis capitais brasileiras (campos; bhering; esposito; gimenes; abuchaim; unbehaum; 2011) concluiu que os alunos se beneficiam da educação recebida no seu próprio desenvolvimento e no futuro de sua escolaridade. Crianças que frequentaram instituições de Educação Infantil de qualidade obtiveram notas 2,9 pontos mais altas na Provinha Brasil — avaliação aplicada no início do Ensino Fundamental —, em relação àquelas que não frequentaram a Educação Infantil. A pesquisa brasileira confirma resultados de pesquisas internacionais semelhantes, mas, no nosso caso, nota-se também que o impacto da Educação Infantil está diretamente atrelado às classes sociais: quanto mais pobres são as crianças, mais positivo é o efeito da escola.
Para além do desenvolvimento das crianças, estudos revelam o impacto da Educação Infantil nos índices econômicos de um país. James Heckman, Prêmio Nobel de Economia, aponta a estreita relação entre a desigualdade e o potencial da primeira infância (0 a 5 anos) no enfrentamento da desigualdade social. Aplicado à realidade brasileira, o estudo sinaliza importantes decisões no âmbito de uma política pública para o segmento, sobretudo para as famílias mais pobres, como estratégia de equidade social e ascensão econômica.
Tais impactos, entretanto, estão estritamente relacionados à qualidade da educação oferecida, ou seja, não basta à criança acessar a escola, mas sim participar das experiências de uma boa escola até os 5 anos e 11 meses. Por isso, a Educação Infantil precisa ser pauta prioritária dos investimentos públicos nas políticas educacionais da próxima década. Ela pode ser nossa principal estratégia para a construção de um futuro mais justo, no qual seja possível viver e realizar-se plenamente por meio do trabalho criativo e de relações interpessoais mais responsáveis e solidárias.
Os direitos das crianças e os desafios da educação infantil
A última década trouxe avanços reais em relação à legislação do segmento e à organização de um currículo. No plano da legislação e da organização do sistema de ensino, isso começa com a publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2009) e pela Base Nacional Comum Curricular (2017). É papel da DCNEI e da BNCC criar as definições, os instrumentos legais e as bases para o alcance da qualidade no âmbito pedagógico, que são desafios da nova década.
A DCNEI define criança como sujeito histórico e de direito. Para a instituição, creche ou escola, assumir isso implica identificar os direitos de aprender e de se desenvolver e, por fim, reconhecê-los como balizas do projeto pedagógico e do ambiente educativo. Seguindo a DCNEI e assumindo o desafio de um currículo efetivamente potente na Educação Infantil, que atenda aos direitos das crianças nos seus diferentes contextos: no campo, nas comunidades quilombolas, indígenas, ciganas, nos grandes centros urbanos. Para ampliar a qualidade da educação, a BNCC nomeia os seis direitos de aprendizagem e desenvolvimento: brincar, conviver, participar, explorar, expressar e conhecer-se. Tais direitos devem ser tratados em cinco campos de experiências: O Eu, o Outro e o Nós; Gestos, Corpo e Movimento; Escuta, Fala, Pensamento e Imaginação; Traços, Cores, Sons e Formas; Espaços, Tempos, Quantidades, Relações e Transformações.
Nesse contexto, passa a ser papel da escola de Educação Infantil assegurar as melhores condições para que toda criança brasileira, independentemente da região do país, da origem social e da pertença cultural, viva experiências que garantam seus direitos de aprender e de se desenvolver. É esse, talvez, o maior desafio da próxima década.
Mas como assegurar os direitos das crianças com a escola fechada e todas as famílias em plena quarentena? A experiência é o conceito fundamental da BNCC da Educação Infantil, mas como lidar com isso se as crianças se restringem ao ambiente doméstico no período de isolamento social? Que experiências podem atravessar adultos e crianças diante de tantas restrições?
Educação presencial versus ensino remoto: um falso dilema
Em primeiro lugar, é preciso considerar que toda experiência vivida pelas crianças durante o distanciamento social talvez seja a mais importante de sua geração. Todas as crianças vão se lembrar do que viveram nesses anos, pois todas terão passado pela quarentena. Tudo o que elas viveram se constituirá na memória futura desse tempo tão incerto.
É igualmente importante lembrar que, infelizmente, nem todas as crianças brasileiras tiveram o privilégio de serem protegidas por suas famílias, isoladas na quarentena. O que deveria ser direito, em muitos casos, foi a expressão de privilégios sociais. Por isso, pode-se afirmar que são muitas e muito diversificadas as experiências de quarentena, mas, ainda assim, são experiências de vida que precisam ser recuperadas no retorno à escola, quando for possível e seguro retornar.
Há crianças que brincaram muito nos quintais, na companhia de irmãos e primos. Outras tiveram pouco ou nenhum contato com crianças da mesma idade. Há quem acompanhou a escola remota e lidou com os desafios da interação mediada por tecnologias da comunicação, enquanto outras sequer sabiam que a escola estava lá, procurando fazer-se presente na oscilação do sinal de internet que nunca chegava às suas casas. Alguns municípios brasileiros, cientes de sua responsabilidade, criaram inúmeros dispositivos inovadores para chegar até os pequenos: transmissões de histórias narradas e lidas pelos professores na rádio comunitária; carros de som que levavam as histórias até as crianças do campo, nas localidades mais distantes e com pouco ou nenhum recurso para garantir a escolaridade; programas especiais com conteúdos infantis, produzidos em estúdios improvisados pelos professores, em suas escolas, secretarias de educação, transmitidos por um canal do YouTube; redes de transmissão de conteúdos via WhatsApp.
O que esse tempo e todas essas experiências deixaram foi o reconhecimento de que a escola, mesmo não estando próxima fisicamente, num endereço, numa rua, num bairro, pode se endereçar às crianças e fazer-se presente de alguma forma, afirmando a elas que aquele seu mundo, aquela vida infantil, os assuntos de infância que só são conversados naquela coletividade de pares, tudo continua existindo e vai voltar. Uma condição mínima para seguir esperançando o amanhã.
No início da pandemia, discutiu-se sobre a presença das telas na vida das crianças. Jerusalinsky (2017) já alertava a respeito do impacto da intoxicação eletrônica sobre a subjetividade. Para ela, o problema dos smartphones e tablets mora no fato de que frequentemente substituem o outro e, no lugar desse encontro, oferecem avatares que respondem automaticamente e emitem estímulos que informam pouco ou nada sobre o caráter humano das relações. Mas o que se pode fazer com as tecnologias quando, em vez do vazio existencial, elas passam a ser ocupadas pelas pessoas confinadas que, na fragilidade dos dias, procuram qualquer meio de fazer contato, de dizer em voz alta, de cantar, de produzir qualquer gesto para se colocar presente nas casas das crianças?
Inspiradas por essas provocações, escolas em todo o Brasil inovaram práticas pedagógicas usando diferentes plataformas, diminuindo as distâncias e comprovando que educação presencial versus ensino remoto pode ser um falso dilema que esconde, de modo perverso, as desigualdades sociais que, estas sim, em determinados contextos, isolaram ainda mais crianças que já viviam à margem de seus direitos essenciais.
A Educação Infantil sempre reconheceu a prioridade do trabalho presencial, num ambiente adequado para isso. O entusiasmo diante das possibilidades tecnológicas foi sustentado tão somente pela possibilidade de diminuir os distanciamentos, necessários na quarentena; ele é, portanto, provisório e contextualizado. Nada substituiu o encontro face a face e a interação direta criança-criança. Mas na falta de toda a possibilidade de uma escola efetiva, uma versão de escola nas telas é uma alternativa para reconhecer ali o afeto da professora e dos colegas, nos materiais que sua escola enviou, nos encontros síncronos nas plataformas digitais.
De olho em um futuro melhor para as crianças
O sucesso da Educação Infantil e a consolidação de um trabalho pedagógico efetivo dependem de investimentos no âmbito da política de educação, do financiamento público da Educação Infantil, sobretudo de crianças de 0 a 3 anos, etapa ainda pouco atendida nacionalmente. Além disso, é preciso que se formem bons professores, que sejam valorizados em seu papel de acompanhar o desenvolvimento das crianças e de promover avanços em diferentes planos. Professores que se fazem presentes, nos contextos mais diversos, que sejam atentos e sensíveis à escuta das crianças, que possam reconhecer a centralidade de suas experiências para o currículo escolar e que possam, a partir do seu lugar como adultos, apresentar o mundo aos alunos, a linguagem, o patrimônio de sua cultura, as práticas sociais de seu entorno, os direitos humanos fundamentais ao século 21.
Os investimentos necessários para que a Educação Infantil esteja na pauta dessa década, quem sabe do próximo século, são trabalhosos e exigem o envolvimento de familiares, professores, equipe escolar, gestão e, por fim, de toda uma comunidade. Só assim poderemos, como sociedade, assumir o compromisso maior diante da chegada de um mundo novo, como dizia Hannah Arendt. Que a chegada das crianças a esse novo século seja plena e que todas elas tenham a chance de seguir seus percursos de aprendizagem e desenvolvimento como sujeitos de seu tempo, renovando o mundo com o olhar fresco, com seus pontos de vista tão singulares, curiosos, e sua intensa produção cultural, cumprindo assim o importante papel de também renovar os adultos.
SILVANA AUGUSTO é Doutora em Educação (FEUSP), coordenadora pedagógica da Pós-graduação Investigações e Fazeres no Instituto Singularidades, assessora pedagógica de redes municipais de ensino para a Educação Infantil, assessora do Instituto Chapada de Educação e Pesquisa (ICEP), consultora da BNCC (MEC 2016-2017), coordenadora pedagógica da Educação Infantil e ciclo de alfabetização do Colégio São Domingos (SP). Produz materiais para a formação docente. Coautora de diversos livros, como O trabalho do professor de Educação Infantil (Ed. Biruta), Bem-vindo mundo: criança, cultura e formação de professores (Ed. Peirópolis), Língua Portuguesa nos anos iniciais do Ensino Fundamental: dez desafios para ensinar (Ed. Ática) e Ver depois de olhar: a formação do olhar do professor de Educação Infantil para os desenhos das crianças (Ed. Cortez).
PARA SABER MAIS
- ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2003.
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- BARBOSA, M. C. S. Culturas escolares, culturas de infância e culturas familiares: as socializações e a escolarização no entretecer destas culturas. Educação & Sociedade, Campinas, v. 28, n. 100 – Especial, p. 1059-1083, out. 2007.
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- BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Conselho Nacional da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica/Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Currículos e Educação Integral. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.
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- DE CERTAU, M. A cultura no plural. Campinas: Papirus, 1995.
- GERALDI, J. W. Portos de passagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
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- SCHWARCZ, L. M. Quando acaba o século XX. Breve Companhia, Ensaio. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.