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Família & Escola

Onde nascem as chaves do diálogo: um histórico de desafios, responsabilidades e intersecções.

Texto Cauê Cardoso PollaFoto Ricardo Davino

A relação entre família e educação é conflituosa. Desde ao menos o período da Antiguidade Clássica, a educação das crianças sempre esteve em debate. O filósofo Plutarco, em seu tratado Sobre a educação das crianças, relata uma história ilustrativa: “Aristipo [um professor], com muita fineza, observou em seu discurso um pai desprovido de inteligência e de coração. Após ter sido perguntado sobre quanto pedia de salário, ele respondeu ‘mil dracmas’. ‘Por Héracles’, respondeu, ‘o pedido é excessivo; posso comprar um escravo por mil’, ele disse, ‘Eis porque terás dois escravos, seu filho e o que puder comprar’”. Nesse pequeno relato quase anedótico, vemos duas questões que atravessaram os tempos: a resistência de alguns em dar o devido valor ao processo educativo, considerando-o sempre caro demais; e a importância dada à educação para que não sejamos meros “escravos”.  O pai da história é mesquinho e pensa antes no quanto irá gastar e no que poderia fazer com aquele dinheiro, deixando aberta a possibilidade de compreendermos, primeiro, que um escravo seria mais útil e rentável, e que o estudo de seu filho não merece assim tanta atenção. 
Muitos séculos depois, em nossos dias, as questões persistem. Qual a responsabilidade da família na educação de seus filhos e filhas? Seria apenas uma obrigação legal de matricular as crianças em idade escolar, para cumprir a norma? É o pai ou a mãe responsável pela educação, ou os dois? Teriam papéis específicos? A família deve “educar” e a escola “instruir”? Muitas outras perguntas poderiam ser feitas, mas a primeira delas poderia ser: o que é uma família?

O conceito de família

Um dicionário nos diz que a família é “um núcleo social de pessoas unidas por laços afetivos, que geralmente compartilham o mesmo espaço e mantêm entre si uma relação solidária e estável”, “grupo de pessoas vivendo sob o mesmo teto (especialmente o pai, a mãe e os filhos)”, “grupo de pessoas que têm uma ancestralidade comum ou que provêm de um mesmo tronco” e “pessoas ligadas entre si pelo casamento e pela filiação ou pela adoção”. Aristóteles, no século V a.C., em sua obra Política, definia a família como “uma comunidade formada de acordo com a natureza para satisfazer as necessidades quotidianas”. O que há de similar nas definições do Dicionário Houaiss e na do filósofo grego é que ambos ressaltam a ideia de grupo ou comunidade, isto é, de pessoas que estão agrupadas por algo em comum.

Mas, historicamente, as formas familiares e as maneiras de compreender o que é uma família mudaram drasticamente. É fundamental reconhecer que, como grupo, a família é o primeiro processo de socialização da criança. A aprendizagem de regras e normas e a sua interiorização (ou não) ocorrem primeiramente e com mais força dentro da família. Não seria incorreto dizer que ela tem precedência frente às vivências escolares, à exposição à mídia, entre outras. Valores e ideais religiosos, morais, políticos e mesmo de visão de mundo e projeto de vida têm fortíssima influência na criança. Ocorre, de certo modo, um processo de sedimentação nos quais estes elementos são apreendidos de forma irrefletida, e podem ser mais tarde observados nos preconceitos infundidos, em determinadas atitudes e crenças. Muitas das crises percebidas no desenvolvimento do indivíduo vêm justamente de um embate entre aquilo que, individualmente, a criança começa a se apropriar como seu, e aquilo que passa a ser reconhecido como externo, imposto por um outro.

Para Philippe Ariès, um dos mais renomados historiadores franceses do século XX, a ideia de infância como uma época com características próprias – tal como, de certo modo difuso, compreendemos hoje – só surge na Idade Moderna, isso é, após o século XVI, e é precisamente porque, nesta época, também se forma outra ideia fundamental: a ideia de família. Assim, diz ele, em sua obra A história da criança e da família, “o conceito de família, que emerge nos séculos XVI e XVII, é inseparável do conceito de infância”. Mas o que isto significa?

Para se pensá-la, diversas óticas podem ser adotadas. Mas, antes de tudo, é preciso compreender que não existe um conceito único de família que estivesse certo ou errado no sentido de uma definição absoluta e invariável com o tempo. Seria possível respondermos à questão “o que é a família?” em todas as épocas e em todos os lugares do mesmo modo? Há ainda outro fator relevante, a questão jurídica, isso é, como as leis dizem o que é ou não a família. 

Linhagem e afetos

Quando dizemos, hoje, que a família é um grupo ligado por laços de afeto – como na primeira definição dada pelo dicionário –, precisamos ter em vista que esta é uma ideia muito contemporânea. Até o século XVIII, o conceito prevalente era a de que a família tinha maior relevância por conta da linhagem, isto é, era compreendida pela continuidade e ancestralidade. Cada componente, de um ponto de vista singular, era irrelevante frente ao fato de que o nome da família permaneceria por mais tempo (e não é muito comum, ainda hoje, no interior do Brasil, perguntar “de que família” alguém é?). Daí, por exemplo, a importância de se educar: que imagem ficará em seus descendentes? Uma passagem da Bíblia, no livro de Eclesiástico, mostra claramente o vínculo entre família-linhagem e a educação: “Aquele que educa seu filho terá nele motivo de satisfação e entre os conhecidos dele se gloriará. (…) O pai morre, é como se não morresse porque deixa depois de si alguém semelhante a ele”. 

O pai que educa e instrui seu filho fará dele seu semelhante, como se assim perpetuasse a si mesmo.  Embora não possam ser tomadas ao pé da letra, essas palavras demonstram uma mentalidade que persistiu durante muito tempo: os filhos devem seguir as profissões que os pais acreditam ser melhores, preferencialmente semelhantes às suas próprias, para manter o status social. Frequentar os mesmos colégios e as mesmas universidades parece algo natural. É preciso lembrar que durante a história, no Ocidente, a escola, com raras exceções, mirava a educação de meninos, não de meninas. A educação feminina estaria a cargo da mãe.

Se hoje pensamos a educação das crianças como obrigação da família, sendo a prática mais comum a matrícula nas escolas – ou, onde é permitido, o ensino domiciliar –, a prática educativa que imperou durante toda a Idade Média até o século XVIII foi a do modelo de aprendiz. O costume que adentrou pelos séculos, sobrevivendo até o XIX, era enviar a criança, assim que completava sete anos, para a casa de outra família, por vezes até mesmo de desconhecidos, para que ali ela aprendesse boas maneiras, princípios morais e um ofício. Esta prática variava de acordo com a classe social da criança, e apenas nas classes mais baixas não era comum.

A partir do século XVIII, a predominância das escolas e também do ensino doméstico fica atrelada ao surgimento de uma família do tipo sentimental. Mães e pais não querem se separar de suas crianças, e quando o fazem, por exemplo, ao enviá-las para um internato, as visitas são frequentes. Deste momento até hoje, a ideia de que a família é em grande parte responsável pela educação de suas crianças ganha muita força. Nessa concepção de família-afetos, uma nova configuração baseada no sentimento ganha forma e, evidentemente, esta forma também traz problemas.

O filósofo francês Alain problematiza na obra Reflexões sobre educação (1932) a presença da família no processo educativo, dizendo que “a família instrui mal e mesmo educa mal. A comunidade do sangue desenvolve em seu seio afeições inimitáveis, mas mal regradas (…) Quando a família vive sobre si mesma como uma planta, sem o ar saudável dos amigos, dos cooperadores e dos indiferentes, surge nela um fanatismo sem igual”.

Vários seriam os problemas: primeiro, a falta de regras ou, antes, regras impostas arbitrariamente e muitas vezes mantidas pelo medo da autoridade, principalmente paternal – “você precisa respeitar seus pais!”, “os mais velhos sempre têm razão”. Outro problema, por exemplo, no caso de uma educação estritamente familiar e doméstica é que a criança não entra em contato com a diferença. Dentro do seio familiar tudo é costume, e a falta de socialização com outras crianças é perigosa. Há ainda outro detalhe relevante, ao qual Alain nos chama atenção: se a família é o lugar da atenção e do cuidado permanente, não lidamos com aqueles que nos tratam de forma indiferente, e assim, muitas vezes, não sabemos lidar com convivências em sociedade nas quais alguns nos são indiferentes.

A discussão atualíssima sobre o ensino domiciliar (homeschooling) e o ensino escolar tem direta relação com as questões da família. Muitos acreditam que, com a educação escolar, terão um controle maior sobre seus filhos, tanto no sentido de controlar comportamentos quanto aquilo que será aprendido. Muitos veem a escola com um lugar degradado ou onde não se aprende o que realmente importa. Outros ainda alegam razões religiosas para ensinar em casa.

De qualquer modo, é fato inegável que hoje a forma predominante e quase exclusiva de família é aquela do tipo afetivo-sentimental e que a forma educacional priorizada é a escolar. Contudo, há ainda uma esfera que determina o que é ou não uma família de forma estritamente legal – embora, sem dúvida, haja um componente moral nestas normas. Essas leis, no caso brasileiro, além de dizerem o que constitui uma família, também determinam os seus deveres em relação à educação.

Educação como direito e dever

Atualmente, o ordenamento jurídico brasileiro é regulado pela Constituição Federal, também chamada de Carta Magna, isto é, não há lei que sobrepasse a Constituição. Em 2018, foram celebrados os 30 anos da Constituição, considerada por muitos especialistas como uma das mais avançadas do mundo, embora existam problemas visíveis quanto à efetivação plena de suas normas.

No artigo 226, o texto constitucional define a família como “base da sociedade”, assim como já o faziam Platão e Aristóteles alguns séculos atrás, e dispõe em seus artigos, dentre outras coisas, que 

§3o Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

§4o Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

§5o Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

Esse artigo pode ser lido em conjunto com outro, o de número 205: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade”.  Em 1988, a educação já não se restringia mais à educação de meninos. Por isso, crianças de ambos os sexos devem ser educadas, de forma universal, até o limite da obrigatoriedade. A família, pai e mãe, são responsáveis por essa educação. Contudo, ainda hoje, na prática, o discurso imperante é aquele que atribui à mãe a responsabilidade pela educação dos filhos (“a mulher tem um talento natural para o cuidado” é uma frase muito comum). É fundamental dizer que a educação não é apenas um direito da criança, mas também um dever da família, que não pode negligenciar nenhuma etapa do processo educacional. Por ser ao mesmo tempo um direito e um dever, a família pode exigir do Estado a efetivação desse seu direito, por exemplo, através de demandas no Ministério Público por vagas em creches ou escolas. 

O que a lei diz apenas reforça o papel que se atribuiu à família na educação. Historicamente, os processos foram se modificando, mas a família que traz um novo ser ao mundo é também responsável por esse ser. Isso permanece válido para as chamadas novas famílias. Mudanças socioeconômicas se intensificaram no século XX, e se intensificam ainda mais em nosso tempo. Novas formas de trabalho e novas configurações sociais impactam diretamente na sua constituição. O papel da mulher na sociedade vem se modificando. Embora não seja uma novidade, famílias monoparentais são cada vez mais comuns. Ocorre que certo discurso tradicional em nossa sociedade a associa a uma estrutura composta de “pai”, “mãe” e “filhos” e considera que famílias monoparentais são problemáticas ou disfuncionais, o que é completamente falso. Outra forma, não expressa na Carta Magna, são as formas homoafetivas, também cada vez mais comuns, e que implicam novos desafios para se pensar a relação entre o que é família e qual seu papel na educação de filhos e filhas.

A questão da legalidade do ensino domiciliar foi recentemente julgada pelo Superior Tribunal Federal, que a considerou ilegal, considerando ser necessária uma lei para regulamentar tal prática – ela não é expressamente proibida pela Constituição Federal. O atual governo tem como prioridade a regulamentação desta prática educativa. Refletir sobre isso é saudável, mas o país precisa, antes de mais nada, de investimento real e bem feito.

A família e a escola

Se o papel da família, em suas diferentes formas, pode ser discutido, também pode ser discutida aquela afirmação popular de que “a família educa, e a escola instrui”. Esse quase adágio remete àquela família transmissora de valores, dos bons costumes, da observância religiosa, e que só caberia à escola ensinar “determinados conteúdos” de português, matemática, química, física… tudo que sirva para instruir. A escola deveria ser um ambiente “neutro” – como isso sequer fosse possível – que expusesse os assuntos de forma objetiva. Assim, por exemplo, o tão atual e debatido tema da educação sexual teria que ser discutido apenas em casa, pois “escola não é lugar para essas coisas”. De modo parecido, também as questões políticas. Ora, esse tipo de discurso parte de um desconhecimento ou de uma negação de que o ambiente escolar é crivado de questões sexuais, políticas e morais.

Muitas vezes, podemos observar pais e mães que pretendem dizer o que a escola deve ensinar, propondo vetos a livros, tentando censurar esse ou aquele tema. Salta aos olhos, nestas atitudes, aquela ideia de controle familiar em toda a vida da criança e do adolescente. Existe uma onda atual, fruto de muita irreflexão, que aponta a escola como um lugar onde se doutrina e isto é desconhecer a própria realidade escolar e as finalidades da educação. Nessas intromissões, muito distantes da participação na vida escolar de filhos e filhas, discutindo o que é estudado, pode-se entrever o antigo medo de que os descendentes não sejam exatamente aquilo que pais e mães querem que eles sejam.

A família, instância fundamental da nossa sociedade, muitas vezes formadora de muito do que somos, não é um lugar sagrado onde tudo seja perfeito. É preciso muito diálogo para que não haja sufocamentos, a gestação de medos e intolerâncias que vão se repetir também na vida fora da família. O processo educativo que ocorre também na família não pode ser o único, e tem na escola um contraponto fundamental. Refletir constantemente sobre o que é a família e sua relação com a educação é tarefa de todos que se preocupam realmente com um futuro melhor.

Cauê Cardoso Polla
Possui graduação, mestrado e doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é professor de Filosofia da Educação no Departamento de Filosofia e Ciências da Educação, da Universidade de São Paulo. 


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