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Dossiê Currículo | Desafios para a gestão: Novo Ensino Médio: crise ou programa?

Ainda dividindo opiniões, as perspectivas vindas do novo formato já estão ligando o sinal para as mudanças na gestão escolar.

Por André Lázaro

No dia 17 de fevereiro de 2017 marcou os 20 anos da morte de Darcy Ribeiro e o primeiro dia de vigência da Lei 13.415/2017 que define o Novo Ensino Médio. Para os defensores da medida, uma revolução na educação. Para seus críticos, mais uma reforma que ficará no papel e não será capaz de fazer com que as intenções declaradas se realizem nas mais de 27 mil escolas de Ensino Médio do país. Para críticos mais ferrenhos, talvez essa seja a única boa notícia da reforma: ela será inviabilizada na prática por falta de condições objetivas. Afinal, o Novo Ensino Médio é uma proposta que vai fortalecer a educação básica ou mais um evento do “programa crise”, como previa Darcy Ribeiro?

Darcy Ribeiro participou de momentos decisivos da educação nacional, como a criação das Universidade de Brasília (UnB – 1962) e a do Norte Fluminense (UENF – 1991), a realização do projeto Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs – 1983-1987) no Rio de Janeiro e a redação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996. Vulcânico, loquaz, polêmico e decidido, ele mesmo se empenhou para que a frase de 1986, epígrafe desse texto, fosse desmentida. Aliás, os educadores e educadoras desse país se empenham para que a “crise (…) da qual tanto se fala” não seja um programa, mas um acidente de percurso. Será?

A crise educacional do Brasil da qual tanto se fala, não é uma crise, é um programa. Um programa em curso, cujos frutos, amanhã, falarão por si mesmos.”

Darcy Ribeiro – Sobre o óbvio – p.10

Em 2014, o Brasil aprovou o Plano Nacional de Educação (PNE) com 20 metas, duas diretamente relacionadas ao Ensino Médio. A meta 3 propõe: “Universalizar, até 2016, o atendimento escolar para toda a população de 15 a 17 anos e elevar, até o final do período de vigência deste PNE [2024], a taxa líquida de matrículas no Ensino Médio para 85%”.
Os dados de 2015 sobre os objetivos da meta 3 informam que 82,6 % dos jovens de 15 a 17 anos estão na escola, e pouco mais de 61% frequentam o Ensino Médio.

Já, a meta 8 estabelece: “Elevar a escolaridade média da população de 18 a 29 anos, de modo a alcançar no mínimo 12 anos de estudo no último ano de vigência deste Plano [2024], para as populações do campo, da região de menor escolaridade no País e dos 25% mais pobres, e igualar a escolaridade média entre negros e não negros declarados à Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)”.

Em 2015, a escolaridade média da população de 18 a 29 anos registrava 10,1 anos. A juventude do campo alcançava 8,3 anos, os jovens do segmento dos 25% mais pobres acumulavam 8,5. No Nordeste, a média era de 9,3 anos e a juventude negra tinha 9,5 anos de escolaridade média. Em 2005, a média nacional da população de 18 a 29 anos marcava 8,6 anos de estudo, ou seja, em 10 anos, a escolaridade média desse grupo cresceu 1,5 ano. Mantido esse ritmo, os resultados da meta 8 não serão alcançados no prazo.
Como podemos perceber, as desigualdades que afetam nossas juventudes são intensas. A Novo Ensino Médio permitirá superar as exclusões atuais e poderá garantir o direito anunciado no PNE?

Mudança necessária: em que direção?

A aprovação da lei do Novo Ensino Médio torna atual o desafio posto por Darcy Ribeiro: as respostas aos problemas da educação brasileira acabam por torná-los ainda mais graves?

Dois pontos unem todos os participantes do debate: é preciso mudar, e estamos atrasados. O país deu passos importantes ao definir o direito à educação básica e sua obrigatoriedade para todas as pessoas da faixa etária de 4 a 17 anos. Isso significa que as famílias devem garantir que crianças, adolescentes e jovens frequentem a escola e, por outro lado, municípios, estados e o Distrito Federal têm a obrigação de oferecer as vagas gratuitamente, mesmo para aqueles que, além da faixa etária, não concluíram a educação básica.

O Ensino Médio é a etapa final do período obrigatório. A partir daí, os estudantes têm como alternativas: prosseguir estudos na educação superior (bacharelado, licenciatura ou tecnológico); complementar a educação profissional de Ensino Médio, caso ela não tenha sido cursada de modo concomitante; ou, por fim, concluir seus estudos e ingressar no mercado de trabalho.

O modelo atual do Ensino Médio não atende bem a nenhuma das alternativas. O ingresso na universidade impõe atravessar processos seletivos que exigem conhecimentos enciclopédicos e são desfavoráveis aos estudantes das escolas estaduais, que correspondem a 84,8% das 8,1 milhões de matrículas (2015) no segmento de ensino. A profissionalização, com raras exceções, não prepara os jovens para o mundo do trabalho, cada dia mais restrito e exigente. E, caso encerrem seus estudos, os jovens concluintes levam uma base frágil tanto no domínio da matemática como da língua portuguesa. Então, sabemos que mudar é preciso, mas para qual direção?

A reforma foi apresentada pelo Ministério da Educação (MEC) como o caminho necessário para adequar esse nível de ensino às exigências do mundo atual. Dentre os benefícios destacados estão a flexibilização do itinerário formativo, possibilitando que o jovem escolha as disciplinas que quer cursar; o aumento da carga horária de 4 para 5 horas e a perspectiva do tempo integral; maior autonomia para escolas, redes e sistemas na organização do currículo, entre outras medidas.

O conteúdo vem sendo debatido desde a apresentação, em 2013, de um projeto que serviu de base para a medida provisória (MP), posteriormente convertida na Lei 13.415/2017 pelo Congresso Nacional. A MP recebeu inúmeras críticas, inclusive do Procurador-Geral da República que arguiu a inconstitucionalidade do processo por não haver motivo de urgência, já que a implantação depende da aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) cuja conclusão, para o Ensino Médio, está prevista para 2018. As mudanças, na prática, ocorrerão a partir de 2020.

Para analistas, a urgência está relacionada ao desejo do novo governo de deixar um marco de sua passagem pelo Ministério, principalmente porque o conteúdo está em discussão desde 2013, assim, não teria nenhum atropelo, embora o projeto tenha ignorado as mudanças sugeridas nas audiências realizadas. Por outro lado, a medida provisória autorizou a imediata transferência de recursos para que os estados fortaleçam iniciativas de tempo integral. A rigor, o conteúdo e a velocidade da mudança atendem a demandas formuladas pelos secretários estaduais de educação, que convivem com severas restrições fiscais.

Problema ou solução?

As mudanças desejadas por praticamente todos os participantes do debate sobre o Ensino Médio não vão na mesma direção. O governo aponta o currículo inchado e fragmentado como a razão para os baixos indicadores educacionais e o desinteresse dos jovens pela escola tal como ela é hoje. Oferecer aos jovens alternativas para suas escolhas tem sido o ponto da defesa da nova lei.
Os críticos da proposta alertam que as justificativas ignoram dois aspectos centrais: a precariedade da infraestrutura escolar das redes públicas e a natureza do Ensino Médio como conclusão da educação básica. Esse aspecto fica decididamente comprometido quando o artigo 4o da Lei 13.415/2017 reformula o artigo 36 da LDB e determina: “O currículo do Ensino Médio será composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários formativos, que deverão ser organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino, a saber:

  1. Linguagens e suas tecnologias; 
  2. Matemática e suas tecnologias; 
  3. Ciências da Natureza e suas tecnologias;  
  4. Ciências Humanas e Sociais aplicadas;
  5. Formação técnica e profissional”

Os itinerários formativos supõem uma estrutura inexistente mesmo nas melhores escolas privadas do país e, certamente, na maioria das escolas públicas. Poucas instituições poderão oferecer mais de um itinerário e a formação técnica e profissional prevista será um desafio ainda maior. Cidades médias e pequenas terão maior dificuldade em oferecer alternativas para a formação profissional dos estudantes.

O anúncio da medida provisória motivou manifestações de instituições, como o Observatório do Ensino Médio da Universidade Federal do Paraná, a Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), o Fórum Nacional de Educação (FNE) e a União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES). Os estudantes, em diversas cidades do país, ocuparam escolas em protesto contra a proposta, argumentando que não é crível um projeto feito em nome dos estudantes que não considera o que eles pensam.

O argumento de defesa torna-se, segundo esse ponto de vista, a parte mais frágil da nova lei. O sentido do Ensino Médio como conclusão da educação básica teria sido, desse modo, distorcido, pois apenas parte da carga horária estará destinada à formação geral e as formações específicas nas 5 áreas não serão universalmente oferecidas pelas redes de ensino.

A crítica destaca que o novo projeto deve aprofundar as desigualdades educacionais. Enquanto as escolas privadas poderão transferir o aumento dos custos para as mensalidades, o setor público estadual continuará limitado aos recursos disponíveis nos estados, em crise fiscal. O próprio governo federal está submetido à contenção de gastos já que, por vinte anos, limitará o reajuste dos recursos da educação ao percentual da inflação do ano anterior.

Se hoje faltam professores de diversas disciplinas, como atender à diversificação dos itinerários formativos? Qual será a política de formação de professores para o novo desenho? O Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio será redesenhado para atender às novas configurações curriculares?

Não são poucas as dúvidas. A própria lei que altera a LDB deixa em aberto um conjunto de regulamentações que serão atribuição do Conselho Nacional de Educação (CNE), dos Conselhos Estaduais de Educação, dos sistemas de ensino e da própria escola.

E a gestão escolar, o que fazer?

As mudanças legais, necessárias num período de intensa transformação econômica e tecnológica, dão amparo para que os gestores possam adequar os meios de que dispõem aos objetivos a serem alcançados. As novas exigências do Ensino Médio trazem grandes desafios para os gestores, sejam de redes de ensino ou de escolas, públicas e privadas. E como muitas das mudanças dependem do que será aprovado na BNCC, o que podem fazer nesse tempo de espera?

Em primeiro lugar, é preciso ter claro que as finalidades da educação básica permanecem tal como as descreve o artigo 22 da LDB: “a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e no prosseguimento de estudos”. Seja qual for o desenho da BNCC, é fundamental que os gestores e suas equipes formulem a questão a partir dos direitos dos estudantes e das finalidades da educação básica. Como garantir que o Ensino Médio seja, de fato, o período conclusivo, utilizando os distintos itinerários?

Em segundo lugar, a ampliação da carga horária de 800 para 1.000 horas anuais está prevista para ser implantada em até 5 anos, contando a partir de março de 2017. Portanto, a tarefa já está posta para todos os gestores. Como planejar o aumento de 20% na carga horária? Não será simples, pois deve implicar em aumento de custos para as escolas privadas e exigência de maior investimento nas redes públicas, já carentes de professores em diversas áreas de conhecimento.

Gestão democrática: é possível?

A Constituição Brasileira prescreve a gestão democrática da educação em duas dimensões: a dos sistema de ensino e a escolar. Cada uma delas envolve diferentes comunidades e responsabilidades, mas em ambas a participação pode ser a diferença entre o sucesso e fracasso do projeto educacional.

A gestão democrática dos sistemas de ensino conta, entre outras instâncias, com os Conselhos Estaduais de Educação, que assumem papel maior a partir da reforma. Ter Conselhos representativos, transparentes e acessíveis será um fator decisivo para a transição.

A gestão escolar democrática conta com outros instrumentos, como o Conselho Escolar e diversos processos de escolha dos dirigentes. Ela não se realiza pela simples eleição do diretor, embora os processos de formação de lideranças sejam fundamentais. A gestão democrática vai além e propõe que o conjunto da comunidade escolar participe dos processos de avaliação, organização e implementação das medidas que garantem que a escola cumpre, para sua comunidade, a finalidade prescrita no artigo 205 da Constituição Federal: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”

É por meio da gestão democrática que as escolas preparam seu Projeto Político Pedagógico (PPP), no qual registram a análise do contexto em que atuam, formulam desafios à luz da legislação vigente e definem métodos, procedimentos, processos e resultados que pretendem alcançar. Regularmente, o PPP da escola deve ser revisto, já que se alteram as condições e normas que orientam a organização do sistema escolar.
Esse momento é mais um estímulo para colocar em prática a gestão democrática e tratar o PPP como um instrumento dessa gestão. Se o processo de decisão que impôs o Novo Ensino Médio tem sido criticado pela falta de participação, a gestão escolar deve assumir a responsabilidade de criar ambientes de diálogo, de forma que a adaptação às novas condições seja também um processo educativo, de conhecimento da realidade em que a escola atua, os sonhos e desejos da comunidade escolar, seus compromissos e responsabilidades.

Tem sido frequente o apelo ao conhecimento produzido pelas ciências de ponta, em particular as neurociências, para orientar decisões sobre o que aprender, como aprender e com que métodos. O terreno ainda está sendo desbravado, mas as pesquisas já permitem algumas conclusões, entre elas uma bastante óbvia: aprendemos o que faz sentido para nós, e aprendemos com emoção.

Neste momento de incerteza quanto ao futuro, a emoção de participar das decisões que vão definir caminhos da vida de nossos estudantes e de suas famílias certamente deve ser um ingrediente fundamental para que a gestão democrática permita avançar com olhos fixos nos direitos de nossos jovens e as mãos livres para promover a participação solidária nos destinos da escola. Afinal, contestando Darcy Ribeiro, nosso programa não é a crise, mas a garantia do direito à educação de qualidade para todos. E a escola é o lugar onde tal direito se realiza.

Fernanda Furia
Mestre em Psicologia de Crianças e Adolescentes pela University College London na Inglaterra. Fundadora do Playground da Inovação – Consultoria de Inovação em Psicologia e Educação. Professora do curso de “Psicologia da Inovação” da FIAP (SP). Professora do curso de Pós-Graduação “Formação Integral” do Instituto Singularidades. Membro da The British Psychological Society da Inglaterra

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