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Cultura digital? E agora?

Vinte anos adentro do século 21, as mudanças nos acompanham no mundo real e no virtual.

Texto Renata Condi  
Ilustração Pedro Hamdan

As mudanças acontecem cada vez mais rápido. Esta parece ser uma das poucas certezas que temos sobre a nova década. Harari (2018) chega a sugerir que a mudança é a única constante no século 21. Possibilidades impensáveis até dez ou vinte anos atrás fazem parte do nosso cotidiano: tecnologia assistiva, computador que cabe na palma da mão, comunicação por vídeo, aprender on-line – tudo isso já chegou. Com os avanços tecnológicos, vimo-nos diante da iminente necessidade de olhar além da distinção tão marcante e discutida entre nativos digitais e imigrantes digitais (prensky, 2001) e as políticas de introdução de letramento digital nas escolas (unesco, 2005), ambas marcantes desde o início dos anos 2000. Caminhamos para a necessidade de usar bem a tecnologia e incorporamos um novo conceito na escola e nas nossas vidas: a cultura digital. 

Cultura digital: afinal, o que é isso?

As inovações tecnológicas e a internet mudaram não apenas o mundo, mas também o modo como interagimos nele. Novas práticas sociais emergiram e com elas vieram oportunidades e rupturas (rowles e brown, 2017), que, no entanto, não o tornaram mais simples, afinal os desafios de hoje não são resolvidos dentro de uma única disciplina: precisam ser vistos, estudados e solucionados de maneira multidisciplinar. É como se os problemas fáceis tivessem acabado e tivéssemos iniciado uma era de interdependência entre conhecimentos.  

Pérez Gómez (2015) reforça essa ideia ao afirmar que vivemos contextos complexos, dos quais decorrem transformações consideráveis em três grandes áreas da vida social: no âmbito da produção e do consumo (economia), no âmbito do poder (política) e no âmbito da experiência cotidiana (sociedade e cultura). A convergência entre elas delineia novos contextos, que, por sua vez, transmudam a vida cotidiana, os Estados, as instituições, as comunidades e as culturas. 

Seja no formato de rupturas com modelos anteriores, seja como transformação, “a mudança que […] melhor se identifica com a transformação substancial da vida cotidiana se refere à onipresença da informação como entorno simbólico da socialização” (pérez gómez, 2015, p. 17).

Em termos tecnológicos, tal mudança começou com a primeira era da internet, a Web 1.0, com o acesso e o consumo de informação por meio de um computador. Em seguida, na Web 2.0, evoluímos para a produção de conteúdos por parte dos usuários e a socialização em contexto digital (vossen; hageman, 2010). Já a era atual, a Web 3.0, resulta da transformação digital, traz o uso de algoritmos e, de maneira “inteligente”, envolve o usuário. 

Os indícios mais marcantes de uma cultura digital talvez tenham surgido na Web 2.0, e foi na Web 3.0 que eles passaram a ser usados de maneira a agrupar pessoas por interesses e perfis. Nessa junção entre eras Web, a cultura digital se configurou como síntese das relações entre cultura e tecnologia da informação e das mudanças da sociedade (nonato, 2020). O “informacionalismo” oriundo dessa junção contribui tanto para a transformação cultural como para o cotidiano, uma vez que promove novos espaços e formas de interação e de produção de cultura (castells, 2005). 

Destaca-se, assim, que a tecnologia, em constante mudança e adaptação, não deve ser vista como apenas uma maneira de transportar informação de um lugar para o outro. Ela é um meio de participação em um espaço que se modifica e se reconfigura reiteradamente como resultado da interação e da colaboração das pessoas, da produção e do consumo de conteúdos, da atualização e de práticas de aprendizagem, escrita, leitura, oralidade e pensamento que se alteram com ela (pérez gómez, 2015; thomas; brown, 2011).

  • Cultura digital na prática. A ONG Casa da Árvore (www.casadaarvore.art.br) promove ações que objetivam o exercício da cidadania a partir da cultura digital, divididas em quatro projetos: Biblioarte Lab, inovação e cultura digital em bibliotecas; Telinhas de cinema, laboratórios comunitários de audiovisual e mídias móveis; E se eu fosse autor?, de incentivo à leitura e letramento digital; e Escola Criativa Digital, de estratégias de inovação e cultura digital na escola.

A cultura digital, nascida com a era digital a partir de 2000, também passa por transformações, muitas atreladas aos diferentes perfis socioculturais dos usuários da internet, que assumem o papel de “produmidor”, isto é, produtor e consumidor de tecnologias e conteúdos, e às formas como eles interagem e colaboram com informações e com os outros. 

Um elemento marcante da cultura digital e da maneira como consumimos e produzimos conteúdos é o meme, pequenas unidades de cultura espalhadas entre os usuários da internet (shifman, 2013). Ele é característico da Web 2.0, em que, segundo Shifman (2013), a práxis do mimetismo tornou-se um fenômeno visível e o papel de “produmidor” tem destaque, visto que os usuários têm a possibilidade de criar seus próprios conteúdos — aqui novamente os memes — e assim o fazem. Além disso, o compartilhamento da produção (sharing) se evidencia como um elemento constitutivo da Web 2.0. Ao fazer uma publicação on-line ou compartilhá-la, o usuário está distribuindo um item cultural ao mesmo tempo em que expressa como se sente em relação a ele. A ação intenciona que usuários com o mesmo sentimento continuem compartilhando esse item cultural, completando a experiência dos usuários no mundo digital. Para que um meme seja compreendido e repassado a outros usuários, é preciso que algumas habilidades sejam aplicadas, tais como a capacidade de relacionar informações, de identificar mimetização e recriação e de compreender conteúdos multimodais. Quando isso ocorre, há uma sensação de pertencimento, de identificação e de comunidade, em especial quando o que é compartilhado adapta-se ao ambiente sociocultural em que é divulgado.

Felizmente, é possível desenvolver habilidades e competências que permitam adentrar uma cultura digital. Quando inserida no contexto escolar atual, a cultura digital figura como um veículo de mudanças dos processos educativos (malaggi, 2019): gêneros digitais são incorporados às leituras e tornam-se foco das produções; a colaboração com pessoas de outras comunidades e culturas torna-se uma possibilidade concreta; e a língua de nascimento ou adicional é aplicada em contextos autênticos de prática social. 

Cultura digital na escola 

A cultura digital precisa fazer parte do currículo da escola. A Base Nacional Comum Curricular (brasil, 2018) a coloca como uma das dez competências gerais que devem ser desenvolvidas ao longo da Educação Básica. Mais especificamente, objetiva a compreensão, a utilização e a criação de tecnologias digitais de forma crítica, significativa e ética para que os estudantes possam acessar, comunicar e produzir conhecimentos e informações, exercer autoria e protagonismo e resolver problemas. A Cultura Digital busca, dessa forma, abraçar a visão do estudante como consumidor e produtor de conhecimentos e culturas por meio do uso coerente, crítico e proficiente dos recursos tecnológicos. 

Conhecer e desenvolver a Cultura Digital na escola pode contribuir na formação de um cidadão reflexivo, investigativo e aberto ao novo. Organizada de modo a incluir questões referentes ao uso de tecnologias digitais, ela entra na escola em três dimensões: 

Computação e programação 

Aborda o uso de ferramentas digitais, produção multimídia e linguagens de programação no aprendizado, na produção de conhecimento e na resolução de problemas.

Pensamento computacional

Engloba o domínio dos algoritmos e a visualização e análise de dados. Ainda que pareçam ser dimensões mais técnicas, as expectativas atuais para a educação no Brasil colocam-nas bem distantes disso, pois pretendem que os alunos possam desenvolver-se e aplicá-las em contextos que repliquem e integrem o mundo real e o virtual.

Cultura e mundo digital

Diz respeito ao mundo digital, à compreensão do impacto das tecnologias nas relações culturais, comerciais e sociais e ao uso ético das tecnologias, mídias e dispositivos de comunicação. É a partir dos itens desta dimensão, por exemplo, que podemos promover discussões sobre pontos positivos e negativos do uso de tecnologia na vida das pessoas, nos anos iniciais do Ensino Fundamental, até estudos, pesquisas e debates sobre cidadania digital, rastreio de produtos, uso de algoritmos em redes sociais, e-commerce e comunicação intercultural, no Ensino Médio. 

Mas como colocar a cultura digital em prática na escola? 

O primeiro passo é considerar o alcance da tecnologia no cotidiano dos estudantes. Ainda que eles tenham nascido no século 21, precisam aprender a usar os recursos tecnológicos e a fazer bom uso deles. Como educadores, devemos nos lembrar de que a aprendizagem acontece quando os estudantes podem experimentar, criar e testar hipóteses, resolver problemas, discutir e refletir. Logo, é essencial prever momentos de uso de tecnologia na escola, de formas mediadas e livres. 

Um segundo passo deve ser conhecer seus estudantes, o que é interessante para eles, o que os motiva e o que eles têm curiosidade em saber. A sala de aula é o espaço para buscarmos contribuir com o letramento digital e crítico dos estudantes para que tenham acesso às oportunidades que a cultura digital e a internet podem lhes oferecer. A sala de aula também é o espaço para a busca pela equidade: a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Tecnologia da Informação e Comunicação (Pnad Contínua TIC) 2018, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que um em cada quatro brasileiros ainda não tem acesso a internet. Mais uma vez, é a escola que pode fazer a diferença. 

RENATA CONDI trabalha na área de Educação desde 1993. Atualmente, é coordenadora pedagógica na Educação Básica, professora universitária e autora de livros didáticos. É doutora e mestre em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, especialista em Educação e em Tecnologia Educacional e graduada em Pedagogia, Letras e Tradução. É certificada como Google Educator, Apple Teacher e Microsoft Innovative Educator.

PARA SABER MAIS

  • BOLLMER, G. Theorizing Digital culture. London: Sage, 2018.
  • BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC/SEB, 2018.
  • BUZATO, M. Cultura digital e linguística aplicada. Travessias em linguagem, tecnologia e sociedade. Campinas: Pontes, 2000. 
  • CASTELLS, M. Sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2005. 
  • GERE, C. Digital culture. London: Reaktion Books, 2008.
  • HARARI, Y. 21 lições para o século 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. 
  • MALAGGI, A. Comunicação, tecnologias interativas e educação. (Re)pensar o ensinar-aprender na cultura digital. Curitiba: Appris, 2019.
  • MILLER, V. Understanding digital culture. London: Sage, 2020.
  • MOVIMENTO pela Base Nacional Comum; Center for curriculum redesign. Dimensões e desenvolvimento das competências gerais da bncc. Disponível em: http://mod.lk/edu20ps1. Acesso em: 25 jan. 2021. 
  • NESCO. Hacia las sociedades del conocimiento. Paris: UNESCO, 2005. 
  • NONATO, E. Cultura digital e ensino de literatura na educação secundária. Caderno de Pesquisas, 50, n. 176. São Paulo, abr./jun. 2020. Disponível em: http://mod.lk/edu20ps2. Acesso em: 25 jan. 2021. 
  • PÉREZ GÓMEZ, A. Educação na era digital. A escola educativa. Porto Alegre: Penso, 2015. 
  • PRENSKY, M. Digital natives, digital immigrants. Disponível em: http://mod.lk/edu20ps3. Acesso em: 25 jan. 2021. 
  • ROWLES, D.; BROWN, T. Building digital culture. A practical guide to successful digital transformation. London: Kogan Page, 2017. 
  • SAVAZONI, R.; COHN, S. (Orgs.). Cultura digital.br.
  • Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009.
  • SHIFMAN, L. Memes in digital culture. London, England/Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 2013. 
  • THOMAS, D.; BROWN, J. A new culture of learning. Cultivating the imagination for a world of constant change. Nova York: Soulellis Studio, 2011.
  • VOSSEN, G.; HAGEMAN, S. Unleashing web 2.0. Burlington: Morgan Kaufmann, 2010.  
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