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Avaliação diagnóstica na retomada pós-pandemia em turmas muito heterogêneas

Como criar estratégias para garantir a aprendizagem em contextos, realidades e etapas escolares distintas.

texto  Luís Carlos de Menezes

O longo título deste texto por si só demanda que se esclareça cada um de seus conceitos, como o sentido de uma avaliação diagnóstica, o caráter da retomada diante do que terá sido a pandemia para diferentes estudantes e como isso se reflete na heterogeneidade extrema de uma turma. A relevância dessa discussão tem a ver com questões bastante diferentes: uma imediata, que é o impacto escolar de uma crise de alcance mundial que envolve todas as escolas e sistemas; outra menos imediata, que é a nem sempre clara compreensão de avaliação como diagnóstico ou do que seria uma heterogeneidade extrema, já que qualquer turma é naturalmente heterogênea.

Comecemos com o sentido de avaliação diagnóstica, em qualquer circunstância a mais importante modalidade de avaliação escolar, usualmente chamada de avaliação formativa, que verifica o que foi realizado e o que falta realizar, apontando o que fazer para dar continuidade às ações, suprir lacunas ou corrigir rumos. Fazer um diagnóstico demanda estabelecer prognósticos e planejar ações. Portanto, é um primeiro movimento que orienta os demais, ou seja, não faz sentido deixar o diagnóstico desacompanhado de propostas de intervenção que ele possa suscitar.

Em seguida, é preciso entender de qual heterogeneidade se fala e de que forma ela condiciona a retomada. Toda turma de estudantes tem uma variedade de personalidades, de ritmos de aprendizagem, de contextos familiares e, especialmente em escolas públicas, de diferentes condições sociais e econômicas. Mas quando se discute a retomada das práticas escolares presenciais depois de dois anos de relacionamento majoritariamente remoto, a questão é verificar de que forma esses distintos contextos e condições poderão ter exacerbado a heterogeneidade preexistente. 

Certamente, os níveis de aprendizado dependem de como foi a participação efetiva de cada estudante nas atividades remotas durante a pandemia, mas as razões para essa participação ser maior ou menor são mais variadas do que se costuma apontar. Em função do poder aquisitivo das famílias, dispor ou não de um computador ou de um bom celular pessoal pode ter sido determinante. Alguns acompanharam as aulas com um único celular familiar, enquanto outros, por características pessoais, dispondo de celular próprio e de computador, não se adaptaram ao ensino remoto e chegaram a desistir. Ou seja, a heterogeneidade não deveria ser pensada como mero sinônimo de diversidade socioeconômica, ainda que também a expresse.

A situação de pandemia, que em alguma medida prosseguirá por mais tempo, atingiu e continuará atingindo a todos, mas de forma distinta. Crianças ou jovens com núcleo familiar e social envolvente, ou com irmãos em idade escolar, terão vivido esse período de forma não comparável com outros que não contam com cuidado ou acompanhamento afetivo em boa parte do dia, sendo deixados sós, com vizinhos ou, dependendo da condição social, com auxiliares domésticos. Para muitos destes, a escola pode ser bem mais do que lugar de aprender, mas igualmente sua referência de amizades, de atenção pessoal e, até mesmo, de alimentação. 

Compreender essas diferenças deve ser um dos aspectos iniciais centrais da retomada das aulas e, por isso, precisa significar um amplo e delicado diálogo coletivo em torno não somente do que foi a pandemia em sua cidade, em seu país e no mundo, mas do que ela significou para cada pessoa. Uma professora ou um professor que relate com franqueza os desafios que enfrentou para proteger a si mesmo e a seus filhos, ou sua dificuldade para aprender a conduzir seu trabalho de forma remota, pode iniciar essa conversa, dando margem a outros depoimentos dos bem ou malsucedidos. Especialmente importante nessa interlocução é acatar com naturalidade e compreensão aqueles que realmente se perderam no processo. Esse acolhimento dos desgarrados é talvez a parte mais importante da retomada. 

Por isso tudo, compreenda-se que a retomada envolve diagnóstico de aprendizagem, mas em muito transcende isso. Claro que interessa saber quantos e quais terão acompanhado com sucesso quais temas e objetivos formativos, quantos e quais terão lacunas relativas a que aspectos, antes de se poder conceber que métodos serão empregados para suprir carências e conceber continuidades, mas fundamental será garantir que a turma continuará sendo a turma, que todos se sintam recebidos e reconhecidos, com sua condição real aceita para ser tratada. 

Cabe aqui uma metáfora para enfatizar esse aspecto essencial da retomada: houve um gravíssimo acidente pelo qual ninguém foi pessoalmente responsável, mas que atingiu a todos, alguns mais gravemente do que outros; esse acidente é a pandemia. A retomada do percurso começa por dar mais atenção aos atingidos, que jamais poderiam ser abandonados, pois são os que demandam cuidados. Assim, retomando o título deste texto, a “avaliação diagnóstica na retomada pós-pandemia em turmas muito heterogêneas” de nenhuma forma deve ou pode segregar quem ficou para trás, e sim planejar formas eficazes de acolher e fortalecer quem mais precisa, possivelmente com a contribuição dos demais. Essa metáfora pode ser mesmo explicitada em sala de aula, com a linguagem adequada para cada etapa escolar.

A avaliação diagnóstica na retomada

Pode-se agora partir para a discussão sobre como fazer a avaliação diagnóstica na retomada, para em seguida complementá-la depois com o que fazer a partir do diagnóstico conhecido. Pois bem, comecemos por dizer que não há resposta única, já que tudo depende, por exemplo, da etapa escolar, da qualidade dos conselhos de classe, de expectativa na participação das famílias em reuniões convocadas em torno dessa problemática e, até mesmo, do efetivo envolvimento do corpo docente com o projeto pedagógico da escola.

Quando se trata da Educação Infantil, vale dizer que os aspectos emocionais, sociais e afetivos são determinantes, pois a heterogeneidade pode estar especialmente na diferença de atitudes entre crianças quanto a voltar a estar longe dos familiares, depois de ter permanecido ao lado deles durante tanto tempo. Por isso, o envolvimento destes será essencial para elaborar as formas de retornar à escola. Uma alternativa plausível, por exemplo, seria a escola convidar o responsável a entrar com a criança e ficar um tempinho com ela, em lugar de entregá-la na porta. De toda forma, o envolvimento da família é essencial para equacionar problemas dessa fase.

No início do Ensino Fundamental talvez o mais urgente seja identificar, com o cuidado de não estigmatizar, quem apresente defasagem maior relativa ao letramento, já se sabendo que estudos estatísticos apontam aumento expressivo de estudantes com esse problema ao longo da pandemia. Em nenhuma hipótese, esses estudantes devem ser separados dos demais. Exercícios de canto, desenho, relatos pessoais e outras formas de expressão oral e gestual podem ser de grande ajuda para atividades que envolvam todos os estudantes, e as atividades de retomada na alfabetização devem considerar todos os grupos, mesmo os já alfabetizados. Em outras palavras, sempre reconhecer e trabalhar as especificidades e nunca separar com base nesse critério.  

Nos Anos Finais do Ensino Fundamental, a heterogeneidade precisa ser tratada com abordagem orientada centralmente pela gestão escolar, por envolver uma variedade de componentes curriculares conduzidos por diferentes professoras e professores. Aliás, a atenção às aprendizagens específicas não se dará em detrimento da dimensão socioemocional, uma vez que aqueles com maior dificuldade na educação remota precisam se perceber acolhidos com ênfase. Mesmo em situações limítrofes, quando longo e explícito abandono no decorrer da pandemia possa recomendar reclassificação em termos de série, isso precisa ser tratado com os estudantes e suas famílias. Além de lidar com naturalidade e nenhuma perspectiva punitiva, cabe acenar com a possibilidade de volta à turma original em função de progressos revelados, o que pode ser reforçado por atividades de recuperação.

Essas atividades eletivas poderão envolver estudantes que tenham sido mantidos em suas turmas de origem, a despeito de eventuais defasagens em determinados componentes curriculares, recomendando-se ao corpo docente que delimite claramente aspectos essenciais de seus componentes que demandem reforço específico e de outros, menos centrais, que possam ser temporariamente adiados e retomados em oportunidades posteriores. Em outras palavras, a retomada das atividades não pode ser pensada como simples continuidade, e sim como um período de transição para o que venha a significar uma nova normalidade. 

Por falar em nova normalidade, o emprego de recursos digitais, tão relevantes ao longo do período de aprendizagem remota, certamente virá a ter função no ensino presencial bem mais do que acontecia antes da pandemia. Dependendo das condições da escola e do seu contexto socioeconômico, pode ser mais ou menos praticável a combinação das modalidades presenciais e remotas, o chamado ensino híbrido. Relativamente a esse aspecto, cabe uma observação de outra natureza, que merece especial destaque. Aprender a utilizar meios digitais de informação e comunicação, como a busca de informação em sites especializados, a troca de mensagens ou a redação e o envio de relatórios, cartas afetivas e textos autorais, deve ser mais do que um recurso da educação básica; é igualmente objetivo formativo dessa etapa escolar. 

Voltando à temática central da avaliação diagnóstica para a retomada, há instâncias escolares que terão papel determinante para as etapas finais de Ensino Fundamental e para o Ensino Médio, como os conselhos de classe, em que os estudantes são percebidos em suas características individuais que transcendem seu desempenho em cada componente, e em que os diferentes componentes curriculares têm sua condução comparada com a dos demais. Por isso, o diagnóstico ali possibilitado tem duas vias, ao permitir avaliar tanto estudantes como educadores. Pressupõe-se que os responsáveis pela condução de cada componente tragam fichas dos estudantes, com foto e observações de desempenho e atitudes. A orientação da gestão escolar a esses conselhos seria de maior ênfase à verificação de competências e habilidades dos estudantes, a partir das quais eles retomarão a continuidade de sua aprendizagem, orientação que também se aplica às avaliações nos componentes.

A etapa do Ensino Médio tem mais de uma razão para merecer considerações apartadas. É a que mais sofreu evasão e a que já era a mais problemática em termos de componentes com os quais os estudantes não se identificam (também por isso não completada por muitos), além de ser a etapa mais impactada pela reforma educacional já encaminhada na maior parte dos estados. Esse último aspecto, ainda que problemático, por exemplo, pela falta de professores de áreas de conhecimento, pode ser pensado como parte da solução dos problemas. O fato de boa parte do Novo Ensino Médio ser orientada por itinerários formativos, de discussões de projetos de vida e de componentes eletivos a serem escolhidos, é algo que facilitará a recepção e o acolhimento para essa nova fase de estudantes com distintos envolvimentos na fase remota. Além disso, vale para essa etapa o que se disse para as demais.

Como conclusão, é natural que se aponte de que forma a instituição escolar deverá considerar os resultados dessa avaliação diagnóstica para conduzir a retomada sistemática da educação presencial, ou eventualmente combinada com alguma atividade remota, no período de pós-pandemia ou de transição para isso, não somente mas também em função da heterogeneidade das turmas. Admitido o encaminhamento mesmo que parcial das sugestões alinhavadas nos parágrafos anteriores, é preciso pensar como a escola, considerada um todo sistêmico, encaminhará as decorrências de sua avaliação diagnóstica para toda a comunidade escolar. 

A instância institucional para analisar quanto o Projeto Político Pedagógico escolar foi ou não cumprido ao longo da pandemia é o conselho de escola, apreciando-se os diagnósticos das turmas das etapas iniciais e dos conselhos de classe das demais etapas, sem precisar se limitar aos impactos da pandemia em turmas heterogêneas, podendo atender a reformas educacionais em curso ou a recomendações do sistema escolar. No entanto, em resposta ao diagnóstico, seriam desejáveis ações empreendidas autonomamente pela escola, como orientações gerais para lidar com a heterogeneidade das turmas na retomada do ensino presencial, ou como uma proposta de rediscussão do Projeto Político Pedagógico em função das novas circunstâncias e do que se aprendeu com a pandemia.


Luís Carlos de Menezes é físico e educador na Universidade de São Paulo, coordenador acadêmico de Cátedra de Educação Básica junto ao Instituto de Estudos Avançados dessa Universidade.
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