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Afinal, qual é o mundo que queremos a partir da educação?

O trabalho com temas contemporâneos na escola, previstos na BNCC, pode ser um aliado na formação cidadã e consciente em prol de uma sociedade mais igualitária e justa.

Texto: Nicole Stallivieri

Os dilemas atuais acerca do desenvolvimento da sociedade e da capacidade da Educação Básica de formar indivíduos críticos e conscientes são impulsionadores de reflexões cada vez mais necessárias no ambiente educacional. Nós, professores, sabemos bem: o mundo muda tão rápido que nem conseguimos prever que tipo de sociedade ou quais profissões nossos alunos vão encontrar no futuro, mas precisamos alfabetizá-los agora. A forma como nos comunicamos, relacionamos, consumimos e agimos passou por transformações, e, portanto, debater sobre esses aspectos é essencial, para ampliar nossas perspectivas didático-pedagógicas ao lidar com os desafios contemporâneos. Mas, afinal, como podemos preparar nossos estudantes para esse novo mundo?

A escola assume uma função que transcende os conteúdos programáticos dos componentes curriculares. No livro O que É Preciso Aprender Hoje: Da Escola das Respostas à Escola das Perguntas, publicado pela Fundação Santillana no Brasil, Axel Rivas enfatiza que em tempos de Google, que parece responder sobre qualquer assunto, não se trata somente de treinar os estudantes como buscadores da web. Fazer boas perguntas implica questionar o mundo usando o conhecimento e desenvolver não apenas a capacidade de pensar de modo crítico e autônomo, mas também racionalidade científica e uma série de habilidades cognitivas para abrir caminho conquistando conhecimentos.

Temas Contemporâneos Transversais: A Ponte Entre a Escola e o Mundo Real

É nesse contexto que os Temas Contemporâneos Transversais (TCTs) ganham mais relevância. Eles são uma possibilidade de abordagem que visa auxiliar professores e escolas no desafio de preparar estudantes aptos a enfrentar as problemáticas da sociedade atual conquistando dignidade, cidadania, liberdade e compreendendo seus direitos e deveres para uma vida social mais emancipatória, justa e igualitária.

Os TCTs não representam uma novidade. Desde 1997, com os Parâmetros Curriculares Nacionais, os Temas Transversais surgem como um modo de abordar a ética e a cidadania como eixos norteadores da educação. Em 2013, as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Básica tornaram os Temas Transversais obrigatórios, mencionaram a importância de trabalhar o conhecimento da realidade contextual e incluíram aprofundamentos em relação à Educação para os Direitos Humanos, à Educação Ambiental e à Educação para as Relações Étnico-Raciais, por exemplo. Na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), em 2018, eles assumem o nome de Temas Contemporâneos Transversais (TCTs), permanecem obrigatórios e passam a ser considerados como conteúdos a ser integrados aos currículos da Educação Básica, a partir das habilidades a ser desenvolvidas pelos componentes curriculares.

Segundo a Base, os Temas Contemporâneos “afetam a vida humana em escala local, regional e global, preferencialmente de forma transversal e integradora”. Entre esses temas, destacam-se: direitos da criança e do adolescente; educação para o trânsito; educação ambiental; educação alimentar e nutricional; processo de envelhecimento, respeito e valorização do idoso; educação em direitos humanos; educação das relações étnico-raciais; e ensino de história e cultura afro-brasileira, africana e indígena, bem como saúde, vida familiar e social; educação para o consumo; educação financeira e fiscal; trabalho, ciência e tecnologia; e diversidade cultural. Todos alicerçados em leis, pareceres e resoluções do Conselho Nacional de Educação (CNE).

Os TCTs no processo educacional abrangem diversos assuntos que integram a realidade do estudante e buscam uma contextualização do que é ensinado, apresentando tópicos de interesse dos estudantes e de relevância para seu desenvolvimento como cidadão. O principal objetivo é que o estudante reconheça e aprenda sobre os temas pertinentes para sua atuação em sociedade. Os TCTs contemplam seis áreas temáticas: Cidadania e Civismo; Ciência e Tecnologia; Economia; Meio Ambiente; Multiculturalismo; e Saúde, que englobam 15 temas contemporâneos. Por exemplo, dentro de uma área como “Multiculturalismo” há uma subdivisão em temas como Diversidade cultural e Educação para a valorização do multiculturalismo nas matrizes históricas e culturais brasileiras. A área “Economia” inclui as subáreas Trabalho; Educação financeira; e Educação fiscal.

De acordo com o documento “Temas Contemporâneos Transversais na BNCC: Contexto Histórico e Pressupostos Pedagógicos”, publicado pelo Ministério da Educação em 2019, esses assuntos não pertencem a uma área do conhecimento em particular, mas perpassam todas elas, pois fazem parte da realidade do estudante. Na escola, são os temas que dialogam com as demandas da sociedade contemporânea, ou seja, aqueles que são intensamente vivenciados pelas comunidades, pelas famílias, pelos estudantes e pelos educadores no dia a dia, que influenciam e são influenciados pelo processo educacional. Cabe aos sistemas e às redes de ensino, assim como às escolas, em suas respectivas esferas de autonomia e competência, incorporar os TCTs aos currículos e às propostas pedagógicas de cada instituição, de modo a contemplar as habilidades dos componentes curriculares de forma contextualizada e transversal.

Quebrando as barreiras do conhecimento: Conexões e Possibilidades

A transversalidade é uma das grandes potências dos TCTs, mas também um desafio. Em um sistema educacional que, historicamente, fragmenta o conhecimento em componentes curriculares, como podemos trabalhar esses temas que “atravessam” todas as disciplinas?
Primeiro, é importante pensar que essa perspectiva pode auxiliar na reflexão sobre a possibilidade real de contextualização do conhecimento. Filósofos como Gilles Deleuze e Félix Guattari cunharam o conceito de rizoma. Para os autores, o rizoma é uma metáfora para reforçar a subversão de uma ordem linear, ou seja, propõe uma inter-relação entre diversas áreas do saber, conectando e remetendo a ideias e conceitos.

Por isso, para além da questão interdisciplinar, que leva em consideração uma perspectiva epistemológica da relação entre disciplinas e áreas do conhecimento, a transversalidade preocupa-se em abordar assuntos que são atravessados pelo saber científico e por questões contextuais e sociais. Por esse motivo, não há necessidade de uma hierarquia ou linearidade de saberes, mas de relações estabelecidas para compreender o mundo de maneira mais disruptiva e conectada.

Nessa linha de raciocínio, é possível refletir sobre a transversalidade como uma forma de contribuir para a construção de um conhecimento que transcenda o conteúdo disciplinar, que atravesse os saberes, favorecendo a flexibilização das barreiras que possam existir entre as diversas áreas do conhecimento, possibilitando a abertura para a articulação entre elas, além de debater criticamente sobre a realidade do aluno. Essa abordagem se propõe a reduzir a fragmentação do conhecimento, ao mesmo tempo em que busca compreender os múltiplos e complexos elementos da realidade que afetam a vida em sociedade.

São evidentes os desafios e as questões burocráticas em relação à divisão curricular por disciplinas nas escolas, bem como da formação específica dos professores. No entanto, cabe a reflexão de como podemos conceber uma educação que prepare os alunos para os desafios contemporâneos, de que maneira a contextualização desses conteúdos programáticos a partir de temas contemporâneos favorecem o processo educacional, considerando, em uma perspectiva freireana, a leitura de mundo e a realidade do aluno como estímulos para a construção do conhecimento de forma integrada.

Libâneo propôs a reflexão sobre as formas de organização curricular, em que se contrapõem, de um lado, um currículo baseado na formação do pensamento científico e, de outro, um currículo baseado na experiência sociocultural. Sabemos que esse impasse entre conteúdo e temáticas é motivo de preocupação de muitos professores. Para o autor, é interessante pensar a perspectiva de aliar, dentro da cultura escolar, uma universalidade que combinasse o trabalho com os conteúdos e os saberes essenciais e, ao mesmo tempo, considerasse a experiência sociocultural, a diversidade e a coexistência das diferenças e a interação entre indivíduos de identidades culturais distintas. E, nessa proposta, os TCTs podem auxiliar nas reflexões sobre aspectos intrínsecos à vida dos estudantes.

Da reflexão à ação: Apoio ao Professor é Fundamental

Em uma pesquisa realizada em 2021, publicada na revista Educação: Teoria e Prática da Unesp, 50,9% dos professores participantes apontaram que um dos fatores necessários para que os docentes se sintam preparados para o ensino dos Temas Contemporâneos Transversais seria o material didático, seguido de 65,9% que indicaram a capacitação e o treinamento nos assuntos e de 66,7% que mencionaram o conhecimento sobre as temáticas.

Nesse contexto, é fundamental abordar as temáticas com materiais e formações, para que os professores se sintam mais preparados a trabalhar os TCTs em sala de aula. Além disso, os educadores e as redes de ensino devem estar atentos aos recursos pedagógicos e aos materiais didáticos que abordem os TCTs de forma contextualizada aos conteúdos, oportunizando discussões sobre assuntos importantes para apoiar o trabalho do professor. Sendo assim, é interessante pensar em formas de abordar os temas de maneira que valorize as sugestões de alunos em sala de aula por meio de discussões e rodas de conversa que estejam aliadas à realidade dos estudantes e que emerjam das situações cotidianas.

De acordo com Maria Clara Antonelli, editora-executiva da área de Ciências Humanas na Editora Moderna, “o trabalho com os TCTs nos materiais didáticos apresenta-se como desafio, visto que os livros são pensados de forma a atender a múltiplas realidades escolares. Contudo, mesmo com tal limitação – o de ser um material ‘nacional’ e abrangente –, os livros didáticos contribuem de forma fundamental na criação de oportunidades, para que o professor trabalhe em sua prática pedagógica os TCTs. Assim, os temas perpassam e se integram aos assuntos trabalhados com os alunos pelos diferentes componentes, de modo geral, informados ao professor por meio de orientações de trabalho em sala de aula”.

Ainda sobre as possibilidades de abordagem no material didático, Maria Clara destaca alguns exemplos de aplicabilidade: “Ao trabalhar o conteúdo sobre a escravidão transatlântica da Idade Moderna, apresenta-se o problema do racismo de modo que se permita uma reflexão e discussão sobre a temática, tão sensível em um país como o nosso”. É possível, também, aliar o trabalho com as temáticas de direitos humanos e de valorização do multiculturalismo propondo uma “atividade prática, em que estudantes discutam, se posicionem e criem uma minienciclopédia antirracista em que irão valorizar exemplos de negros e negras que lutaram em prol da igualdade racial em nosso país”.

Nesse sentido, Ângelo Xavier, diretor-geral da Editora Moderna, corrobora o trabalho realizado pelo editorial, ressaltando a importância de abordar temas atuais e a preocupação da editora em produzir materiais didáticos que contribuam com o dia a dia do professor: “Para nós, da Editora Moderna, mais do que produzir obras de qualidade, alinhadas com as necessidades e as demandas dos educadores, temos como princípio norteador do processo editorial a atualização dessas obras. Todas as nossas obras têm um ‘ciclo de vida’, ou seja, a cada edital do PNLD essas obras são revisadas, reescritas, atualizadas, para que os educadores tenham sempre em mãos a versão mais recente, para que o trabalho com os alunos possa fluir de maneira produtiva e com qualidade”.

A essência da educação: As Relações Sociais na Construção do Amanhã

Na era da Inteligência Artificial, a escola tem como desafio gerar reflexões profundas e críticas, bem como estimular o interesse dos estudantes dentro de um cenário em que a atenção é cada vez mais prejudicada, por conta das informações pulverizadas e dos estímulos rápidos e fragmentados oriundos das mídias digitais. Na visão de neurocientistas, terá mais chance de ser considerado como significante e, portanto, alvo da atenção, aquilo que faça sentido no contexto em que vive o indivíduo, que tenha ligações com o que já é conhecido. Por isso, a abordagem dos TCTs em sala de aula pode ser um recurso importante para desenvolver o pensamento crítico e facilitar a assimilação do conteúdo pelos estudantes.

Para Hattie, em seu livro Aprendizagem Visível para Professores, entre os objetivos mais importantes da escolarização está justamente o desenvolvimento de habilidades de avaliação crítica, de modo que desenvolvamos cidadãos com mentes e disposições desafiadoras, que se tornem ativos competentes e pensadores críticos em nosso país com tanta diversidade de culturas e desafios. Nesse aspecto, a implantação dos TCTs no currículo das escolas é parte integrante de uma educação atenta às necessidades atuais com direcionamento da reflexão à ação, reforçando a essência do trabalho docente no que tange ao seu caráter social e coletivo, uma vez que a aprendizagem acontece a partir das relações sociais construídas e oportunizadas na vivência dentro da escola e nas discussões estimuladas por todos os professores.

Dessa forma, o reconhecimento de que a aprendizagem ocorre precisamente por meio da alteridade, do encontro com o outro, sempre é válido resgatar aquilo que nos faz humanos. As palavras de Clarice Lispector em uma passagem do livro Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres reforçam o caráter humanizador da educação: “Quem ensina faz milagre todos os dias. É uma grande aventura que exige coragem, devoção e humildade”. Coragem para enfrentar os desafios; devoção para nunca esquecermos a importância do papel do professor na formação de sujeitos livres e críticos; e humildade para continuarmos sempre em busca de aprimoramento, porque, nas palavras de Paulo Freire, “ensinar inexiste sem aprender”, e assim seguimos juntos nessa jornada.


Nicole Stallivieri
é graduada em Letras pela Uerj, especialista em Língua Portuguesa e Mestre em Estudo da Linguagem. Atualmente, atua como assessora pedagógica na Editora Moderna e é doutoranda em Linguística na Uerj.

Para Saber Mais

  • BRASIL, Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular: Educação é a Base. [S. l.]: Ministério da Educação, 2017. Disponível em: https://mod.lk/ed27_pn1. Acesso em: 30 ago. 2025.
  • BRASIL. Ministério da Educação; Secretaria de Educação Básica; Diretoria de Políticas e Regulação da Educação Básica. Temas Contemporâneos Transversais na BNCC: Proposta de Práticas de Implementação. [S.l.:s.n.], 2019. Disponível em: https://mod.lk/ed27_pn2. Acesso em: 30 ago. 2025.
  • COSENZA, Ramon M. Neurociência e educação: como o cérebro aprende. Porto Alegre: Editora ArtMed, 2011, p.49.
  • DELEZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. v. 1. São Paulo: Ed. 34, 1997. p. 10-36.
  • FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2019.
  • HATTIE, John. Aprendizagem visível para professores: como maximizar o impacto da aprendizagem. Porto Alegre: Penso, 2017.
  • LIBÂNEO, José Carlos. A aprendizagem escolar e a formação de professores na perspectiva da psicologia histórico-cultural e da teoria da atividade. Educar em Revista, Curitiba, n. 24, p. 113-147, 2004b. Editora UFPR. Disponível em: https://mod.lk/ed27_pn3. Acesso em: 1º set. 2025.
  • LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 2023.
  • RIVAS, Axel. O que é preciso aprender hoje? – Da escola das respostas à escola das perguntas. São Paulo: Fundação Santillana, 2019.
  • VIEIRA, Kelmara Mendes, et al. Os temas transversais na Base Nacional Comum Curricular: da legislação à prática. Educação: Teoria e Prática, Rio Claro, v. 32, n. 65, e04, 2022. DOI:10.18675/1981-8106.v32. n.65.s15719. Disponível em: https://mod.lk/ed27_pn4. Acesso em: 1º set. 2025.
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