A formação do professor para o período pós-pandemia
Nesses quase dois anos de pandemia, pesquisadores e professores recém-formados avaliam as
lições aprendidas sobre formação docente.
texto Ricardo Prado
Em março de 2020 a pandemia da covid-19 estava em plena expansão no Brasil e no mundo. Ainda sem a perspectiva de uma vacina à vista, as aulas em todo o país foram suspensas. Àquela altura já eram 202 mortes provocadas pelo novo coronavírus, o início de uma escalada trágica que um ano e meio depois ultrapassaria o meio milhão.
Naquele mês de março, Maria do Socorro Nunes Macedo, professora do Departamento de Educação da Universidade Federal de São João Del Rey (MG), resolveu acionar dois fóruns de educadores aos quais está ligada como pesquisadora: a Associação Brasileira de Alfabetização (ABF) e o grupo de trabalho de Alfabetização da Anped (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação). Queria formar um grupo para analisar como estava se dando (ou não) a alfabetização durante a pandemia. “Por meio de pessoas-chave que nos informavam sobre o que estava acontecendo na educação básica, rapidamente percebemos que o ensino remoto já havia se instalado nos estados. Diante disso, propus que, em vez de realizarmos um estudo, partíssemos para uma pesquisa com algum instrumento que pudesse capturar o que se passava naquele momento. Já era o ensino remoto emergencial, mas ainda não tínhamos um nome para isso quando começamos a pesquisa”, relata a coordenadora do estudo “Alfabetização em rede: uma investigação sobre o ensino remoto da alfabetização na pandemia covid-19”, iniciado em maio de 2020.
Ensino remoto emergencial
O grupo de educadores — inicialmente ligados a oito universidades federais e que três meses depois reuniu 28 instituições públicas e uma confessional (PUC-Campinas) — preparou e aplicou uma pesquisa quantitativa em setembro de 2020. “Com a ajuda da Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação) e de coletivos de professores, fizemos esse instrumento de avaliação chegar a cerca de 15 mil professoras alfabetizadoras da educação básica em três meses!”, destaca Maria do Socorro. A pesquisa abarcava docentes da Educação Infantil e dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, já que, pela concepção do grupo, a alfabetização não acontece em um único ano.
Depois de captar o quadro geral e tratar os dados com a ajuda de três estatísticos, a segunda fase da pesquisa foi composta de rodas de conversa. O objetivo era gerar a compreensão qualitativa dos dados, sempre buscando compreender o impacto da pandemia na escola pública, especialmente nas classes de alfabetização que, à primeira vista, pareciam ser as turmas mais prejudicadas com a situação. “Fizemos grupos focais seguindo um roteiro igual em todo o país, para conferir se aquelas tendências observadas na pesquisa se confirmavam na voz dos professores reais. E isso tem sido bastante confirmado”, afirma a coordenadora do estudo, cujos resultados preliminares foram publicados em novembro de 2020.
Educação via WhatsApp
A primeira constatação foi que, felizmente, a educação não havia parado no país. Mais de 90% dos docentes confirmaram a migração para o ensino on-line, praticamente da noite para o dia, nas diversas redes de ensino. Se a educação, mesmo com variáveis regionais, não sofreu interrupção, isso aconteceu basicamente devido a um aplicativo: o WhatsApp. “A gente pode dizer, em linhas gerais, que o ensino remoto emergencial no Brasil, pelo menos nas escolas públicas, vem se dando por meio do WhatsApp. A ferramenta se tornou o contato da criança, ou da família, com a professora e a escola”, afirma Maria do Socorro Nunes, destacando, no entanto, que tal uso não se dá em tempo real. “É um tempo assíncrono, ou seja, não existe aquele contato direto do docente com a criança. São mensagens, atividades fotografadas da internet, do livro didático ou escritas à mão pela professora, porque muitas não têm impressora em casa. Quando se pensa nesse tipo de educação, ela em nada se assemelha ao ensino presencial.”
É hora de valorizar a escola! Foi preciso vivermos a impossibilidade da escola presencial para que, socialmente, ela fosse mais valorizada”
Andréa Luize, coordenadora do Instituto Superior de Educação Vera Cruz.
Outra constatação sobre o aplicativo indica que seu uso majoritário não é fruto de uma soma de decisões individuais dos professores, mas partiu das próprias Secretarias, segundo os docentes revelaram nas rodas de conversa. Seja por ser bastante disseminado, seja por seu uso gratuito ou por não exigir um pacote de dados robusto, o WhatsApp tornou-se a escolha natural para se adaptar à nova realidade.
Na conta do professor
As adaptações ao ambiente virtual acontecem de diversas formas, dependendo das condições sociais, econômicas e geográficas dos municípios. Enquanto sistemas de ensino e escolas privadas rapidamente adotaram ferramentas digitais antes usadas em videoconferências, e algumas redes públicas mais ricas, como São Paulo e Minas Gerais, criavam seus próprios ambientes de aprendizagem virtual, em outros contextos tais plataformas ainda não chegaram. E estão longe de chegar, principalmente na zona rural, onde sobram problemas de conexão e faltam equipamentos escolares.
Mas não falta vontade de manter a educação funcionando. É o caso da região do sertão do Araripe (CE), onde os monitores dos ônibus, antes responsáveis pela vigilância ou transporte das crianças, se tornaram, nas palavras das professoras, “o braço da escola alcançando a casa da criança”. A coordenadora do estudo explica como isso se dá, a partir dos relatos nas rodas de conversa na fase qualitativa da pesquisa. “Eles passam no início da semana distribuindo as atividades nas casas das crianças e na sexta fotografam as lições e enviam para o celular da professora, via WhatApp. Portanto, sem WhatsApp não haveria educação no Brasil para as camadas mais populares”, conclui. A epidemia escancarou a desigualdade social do país, afetando radicalmente as possibilidades de educação remota que as redes podem oferecer. “Você pode ter um bom professor, com sensibilidade e preparo para se adequar ao ensino remoto, mas na outra ponta há um aluno excluído socialmente, que não tem o uso exclusivo de um celular, pois numa família numerosa há três ou quatro crianças para um único aparelho, compartilhado também pelo pai ou pela mãe”, observa Maria do Socorro.
A educadora Maria José Nóbrega, consultora pedagógica de escolas da rede municipal de ensino de São Paulo e da editora Moderna, destaca um aspecto importante nesse ingresso à força no ambiente virtual. “A pandemia mostrou uma capacidade dos professores de aprenderem novas ferramentas em movimento, porque, enquanto davam suas aulas do jeito que conseguiam, muitos foram aprendendo por conta própria a editar vídeos, a manejar ferramentas de produção coletiva, a criar avatares e outros truques para chamar a atenção dos alunos”. A educadora salienta que, embora seja voz corrente que os alunos, por serem nativos digitais, têm mais familiaridade com as tecnologias de informação e comunicação, tal intimidade acontece em áreas de interesse mais específicas, como jogos ou redes sociais. “As crianças também precisaram aprender a lidar com as novas tecnologias nos ambientes virtuais de aprendizagem e têm os seus desafios nesse momento”, observa Maria José Nóbrega.
Além de se reinventar pedagogicamente, as professoras da Educação Básica precisaram investir, com recursos próprios, em um celular mais adequado, ou se viram obrigadas a ampliar a memória de seus computadores, agregando novos recursos. “Como os professores também estão bancando, com o orçamento doméstico, o pacote de dados para se manterem conectados às suas turmas, pode-se afirmar que os custos da educação remota hoje estão sendo bancados pelos próprios docentes, o que é ainda mais injusto”, destaca Maria do Socorro Nunes.
A formação inicial e o preparo docente
A situação da pandemia como um todo trouxe à tona o debate sobre como a formação inicial prepara os futuros educadores. Como os cursos de Pedagogia e as licenciaturas poderiam preparar esses professores para uma situação tão adversa? Há também que se olhar para os docentes que se formaram durante o período de pandemia.
Para Maria do Socorro Nunes Macedo, é preciso observar que alguns limites da formação docente são incontornáveis. Inevitavelmente um professor recém-formado vai se deparar com um campo de trabalho e com questões que jamais um curso de graduação poderá prever. “É da ordem da profissão aprender na prática e de forma coletiva. Não é algo que se desenvolve sozinho. As ferramentas conceituais que os professores adquirem na sua formação podem potencializar a construção de uma prática, mas jamais conseguirão ofertar uma prática pronta. É da natureza de ser professor aprender processualmente, com a experiência”, explica.
Andréa Luize, coordenadora do Instituto Superior de Educação Vera Cruz (SP), explica que os cursos oferecidos pela instituição passaram por mudanças para colaborar com os desafios impostos aos educadores. “No curso de Pedagogia, tínhamos 20% da carga horária com disciplinas EAD no curso presencial. Nossa intenção é aproximar os futuros educadores das tecnologias, recursos e possibilidades para o ensino escolar. Isso, claro, teve que ser ampliado para todas as disciplinas com as aulas em contexto virtual. Não é a mesma coisa dar uma disciplina presencial e virtualmente. São linguagens diferentes, que demandam estratégias distintas e reorganização de conteúdos”, ressalta.
A prática docente precisa ser exaltada por todos os agentes. Dessa maneira, a formação continuada precisa fazer parte do dia a dia do professor, da coordenação e da gestão escolar. “São vários conhecimentos que contam para o fazer docente: a experiência em sala de aula, as experiências de vida e o saber da universidade (técnico, conceitos e teorias). Tudo isso colabora para se tornar professor. Ninguém se torna professor de uma hora para outra. Sobre essa demanda de que a Pedagogia não forma para a sala de aula, não é possível o professor chegar pronto na sala de aula. Cada sala de aula, cada turma, é um desafio específico. Nunca vai haver essa situação ideal de em 4 ou 5 anos se formar um professor preparado para enfrentar todos os desafios que ele terá pela frente”, reforça Maria do Socorro.
Como será a volta ao presencial?
A pandemia trouxe grandes impactos para as abordagens didáticas. De maneira geral, as tecnologias digitais não estavam integradas ao ensino presencial, ao cotidiano das práticas pedagógicas. Os professores, em sua maioria, não tinham domínio de recursos, ferramentas e possibilidades para assegurar condições didáticas mais próximas às vividas na escola presencial. Apesar das dificuldades, em algumas regiões, o ensino remoto emergencial teve êxito. Em outras, os professores tiveram que mergulhar no ensino remoto cada qual a seu modo, literalmente correndo atrás de aprender sobre o uso das tecnologias digitais para o ensino. Alguns investiram nisso, outros se apoiaram no mínimo para dar conta. “Infelizmente, em alguns casos (não poucos!) se viu um retrocesso de práticas e de metodologias, e isso se deu, inclusive, com o uso das tecnologias. Na tentativa de fazer algo, muitas escolas apelaram para métodos mais tradicionais, deixando as crianças e os adolescentes com inúmeras atividades a fazer, sem trocas entre pares, sem intervenções sistemáticas do professor”, explica a coordenadora do ISE Vera Cruz.
Com base em suas experiências, cabe às instituições observar os resultados e entender seus aprendizados. Quais recursos foram potentes? Quais estratégias foram efetivas? Quais áreas ou conteúdos? O que for avaliado, coletivamente, como potente precisará ser inserido no contexto regular de ensino e na formação docente.
Para o futuro, Andréa Luize acredita que qualquer espaço será espaço para aprendizagem. “A demanda por isolamento, pelo uso de espaços mais abertos ampliou o olhar da escola sobre espaços já existentes ou minimamente adaptados e com amplos potenciais de trocas entre as crianças. Repensar o espaço escolar, seus tempos e agrupamentos tende a ser uma consequência.” Para finalizar, ela destaca que apostar no potencial das crianças com o uso de recursos digitais também deve ser outro efeito. “É hora de repensar as funções da escola, seu papel social, suas prioridades, seu currículo, suas práticas e, definitivamente, olhar para os estudantes como sujeitos de seus processos de aprendizagem. É hora de valorizar os educadores e investir na formação docente. E, claro, hora de valorizar a escola! Foi preciso vivermos a impossibilidade da escola presencial para que, socialmente, ela fosse mais valorizada.”
A teoria na prática: experiências reais de quem está começando
Confira a seguir o depoimento de quatro professoras recém-formadas e que enfrentam um duplo desafio: iniciar sua carreira com um cenário inédito de salas virtuais.
Para mim a pandemia significou trabalhar como nunca havia experimentado antes. Está sendo um grande desafio criar modelos de aulas remotas, utilizando recursos digitais e entrando na casa do estudante. Os alunos parecem sempre cansados, com saudades dos amigos, ansiosos para voltar à escola. Dá para perceber na fala, no olhar de cada um, e cabe a nós, educadores, reinventar tarefas. A tecnologia sempre esteve presente nas nossas vidas, mas a maioria dos professores teve que se adequar, assim como pais e alunos em suas casas. Isso se tornou um grande desafio para todos.”
Roseane Alves dos Santos (formada em 2020)
Se pudesse voltar à formação, trocaria horas de teoria por mais prática. A gente aprende mais na prática. Gostaria de ter aprendido mais sobre o brincar. Como a primeira possibilidade de trabalho geralmente é na Educação Infantil, muitos desistem da profissão porque em uma creche não há só a questão pedagógica; tem também a questão dos cuidados e do brincar. Se a pessoa vai com a expectativa de atuar só no pedagógico se frustra demais. Se ela não valorizar o brincar para o desenvolvimento educacional, cognitivo e emocional da criança, fica difícil.”
Mariana Portis (formada em 2015)
Ainda como estagiária, precisei ficar dois dias cuidando de uma sala, que nem era a mesma em que eu trabalhava. Foi uma emergência porque não havia nenhum professor para assumir naquele momento, e tive que encarar a situação, sem planejamento. Entrei na sala de aula sem nenhuma atividade em mãos. Percebi que é ali, no embate, no improviso, que o professor se forma, e não na universidade. O professor não é preparado, não é acolhido, não há na nossa profissão um período de residência, como com os médicos, que estão em contato com profissionais mais experientes durante o trabalho. Depois de formados, somos jogados na sala de aula.”
Laís Lima (formada em 2020)
Vejo muitos problemas de ordem interpessoal na escola, entre os professores. Teria que existir uma disciplina voltada ao relacionamento comigo mesma e com o outro. Resumindo em uma palavra: autoconhecimento. Tive que buscar isso aos 45 do segundo tempo, quando me dei conta que o meu relacionamento não estava bom, nem comigo nem com os colegas. Isso faz falta na formação e teria que ser inserido lá no primeiro semestre, como se fosse um aviso: ‘Olha, você vai trabalhar com gente!’. As pessoas precisam aprender a se relacionar”.
Daiane Soares (formada em 2020)
Ricardo Prado é jornalista e roteirista freelancer, editor da revista digital de educação Veras e autor do romance A fala do céu (Global) e dos livros infantis Uma cor só minha: o diário de um daltônico (Moderna) e No meio da bicharada (Moderna).