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Na linha de frente da educação

Os desafios de ser orientador educacional em tempos tão desorientados e pouco educados.
Texto Ricardo Prado

“OS DESAFIOS DE
SER ORIENTADOR
EDICACIONAL EM TEMPOS TÃO DESORIENTADOS E POUCO EDUCADO”

“Que absurdo! Você viu isso?! Vou reclamar na escola agora mesmo!”; “Ele me bateu!”; “Sumiu meu estojo!”; “Ela me xingou de…”; “Você nem acredita no que essa professora fez!” Qualquer uma dessas frases, se dita em um contexto escolar, seja em uma escola pública ou particular, dita por criança, adolescente, jovem ou por seus pais, terá um destinatário certo: o orientador educacional.
Esse profissional da educação, que na rede pública geralmente tem o cargo de coordenador ou orientador pedagógico, se encontra no meio do tiroteio verbal que faz parte de qualquer escola. Agir como mediador de conflitos faz parte de sua função, já que é o educador responsável pelo vínculo entre os alunos, suas famílias e a instituição.

Porém, além dos conflitos naturais que sempre envolvem as aglomerações humanas, ainda mais quando nela se concentram crianças e adolescentes, com a imprevisibilidade e as transformações hormonais que trazem consigo, o ano de 2018 foi especialmente tenso em todo o país – e nas escolas também. Ao longo de um processo eleitoral marcado por discussões políticas crescentemente violentas, rachas familiares e rompimentos de amizades antigas, as escolas não passaram incólumes pelo vendaval. Discussões sobre o papel da escola, a proliferação de fake news envolvendo temas relacionados à educação, o crescimento do movimento conservador “Escola sem partido”, além de diversos temas de natureza comportamental afloraram de forma caótica, colocando em um confuso balaio questões de gênero, de pedagogia, discussões sobre o papel da escola e visões de mundo antagônicas.

Como se fazer entender em meio a tal cacofonia? Quais desafios esse profissional precisará superar para colocar um pouco de ordem na escola após esse ano tumultuado? São essas indagações que nortearam a conversa com cinco educadoras que refletiram, a partir de diferentes pontos de vista e experiências, suas próprias perplexidades diante de um cenário bastante nebuloso.

“Como educadora, eu penso que o grande desafio da pós-modernidade é conseguir flexibilizar o pensamento”, analisa Luciana Lapa, orientadora educacional na escola bilíngue Stance Dual, em São Paulo. “Em um momento de polarização, o que se observa é uma falta de empatia diante da perspectiva do outro”, constata. E busca um exemplo em outra seara para reforçar seu argumento. “Você pode pegar essa falta de empatia pelo viés do esporte. Quantas pessoas morreram simplesmente por serem de times diferentes? O que passa por essas agressões é a falta de tolerância, de empatia. E o grande desafio do educador é mediar essas relações na percepção de tomadas de perspectivas diferentes”, destaca a orientadora.
Quando é chamada a intervir por conta de um conflito entre os alunos, Luciana diz que “é preciso distinguir o que são conflitos interpessoais, atitudes de indisciplina e pequenas transgressões. Em geral, os conflitos mais comuns na faixa etária do primeiro ciclo do fundamental, ou seja, crianças entre seis e nove anos, envolvem disputas sobre jogos (quem ganhou, quem perdeu), o deboche, algumas reações mais explosivas e, eventualmente, uma situação de constrangimento que esteja se configurando em bullying”, destaca.

Ajuda entre pares

O grande desafio dos educadores é mediar relações a partir de perspectivas diferentes

Integrante do GEPEM (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral), formado por pesquisadores da Unesp e da Unicamp que estudam as questões da moralidade e da convivência, Luciana Lapa vem acompanhando uma experiência pioneira no Brasil na resolução de conflitos que tem tudo para encantar escolas e seus orientadores educacionais: o sistema de apoio por pares, chamado de equipes de ajuda.
As equipes de ajuda são formadas por alunos do 6o ao 9o ano, escolhidos por seus pares em uma dinâmica que elencará quais são as características de uma pessoa em quem se pode confiar. “A partir desses critérios, os próprios alunos indicam três nomes”, explica Luciana, destacando que a pessoa escolhida precisa ter a legitimidade do grupo. “É muito curioso porque entre os membros das equipes de ajuda existem autores, alvos e espectadores. O autor de bullying geralmente é um aluno popular, e estar na equipe de ajuda talvez dê a ele aquilo que lhe falte, ou seja, a sensibilidade moral. Uma vez que carece dessa sensibilidade, fazendo parte da equipe de ajuda, ele será regulado pelos próprios colegas e, também, entrará em contato com o sofrimento do outro. As pesquisas nacionais e internacionais estão mostrando que os pares procuram seus iguais para compartilhar um problema, antes dos adultos. E nessas situações a maior parte dos indivíduos se encontra na condição de espectador, agindo como oxigênio para a intimidação. Então, nada mais justo do que chamar os espectadores para se posicionarem. Eles sabem que aquilo é errado, mas não sabem exatamente o que fazer, nem a força que têm nessa situação”, explica.

Aplicada em caráter experimental desde 2015 em escolas públicas e particulares de São Paulo, Campinas e Paulínia, essa metodologia de intervenção escolar foi idealizada pelo educador José Maria Velez Martinez, da Universidade de Valladolid, na Espanha, que se inspirou em modelos já adotados na Finlândia, no Reino Unido e na Itália.

A Escola Municipal de Educação Integral Zeferino Vaz, em Campinas, faz parte da linha de frente dessa experiência. Ednéia Marques Mendes, diretora educacional da instituição, acompanha o projeto desde seu início. Ela avalia que a iniciativa fortaleceu os vínculos entre os alunos. “Percebo que o fato de os alunos da escola sentirem que tem um deles ali é muito positivo”, destaca. E relata o que mudou no cotidiano da Zeferino Vaz. “Muitos conflitos simples, que podiam ser resolvidos entre eles, acabavam vindo para a gente porque isso acontece muito na escola: tudo tem que ser resolvido por um adulto. Com as equipes de ajuda, eles aprendem que conseguem dar conta de resolverem esses conflitos”, relata Ednéia.

A implantação de uma equipe de ajuda demanda a mobilização da escola inteira. “A formação começa pela equipe gestora, pois é ela quem define: ‘Como é essa escola que eu dirijo?’”, explica Luciana Lapa. Em seguida ao alinhamento com os gestores, a formação envolverá a equipe de professores e os funcionários da escola, seguida de uma ação mais específica junto aos professores que irão acompanhar a implementação das equipes de ajuda. “Esse projeto interfere no clima da escola como um todo”, destacam Luciana e Ednéia.

Busca pelo poder

Lygia Maria Ramos Uchôa Cavalcanti, a Dudu, é orientadora educacional na Escola Vera Cruz, de São Paulo. Ela atende aos alunos do 6o ano, acompanhando-os até o 9o ano. Os problemas mais comuns nessa idade envolvem o sumiço de objetos ou problemas de relacionamento. Mas, às vezes, é preciso identificar também as disputas ocultas. “Existe entre eles uma busca de poder. Às vezes eu brinco que há classes aqui que só tem caciques. É uma época de grandes mudanças, e, nessa fase, começam os questionamentos de autoridade, e os conflitos com os professores ou com a organização da escola”, relata. Para ela, o mais importante em sua função é estabelecer um vínculo de confiança com os alunos, “até porque funcionamos como uma autoridade maior para eles”.
A cada quinze dias, Dudu tem um espaço na grade curricular para levar suas questões para os alunos ou ouvir as que eles eventualmente trazem. Quando não há um incêndio a ser controlado, ela propõe alguma dinâmica, um debate ou até mesmo um jogo. Um dos preferidos, dela e de seus alunos, se chama “Sem censura”. “Esse jogo traz diversos dilemas morais, do tipo: ‘Você está em uma loja, quebrou um objeto mas ninguém viu. Você paga?’ Eles adoram porque na dinâmica do jogo precisam imaginar o que o amigo vai responder. Também discutimos se aquela determinada resposta foi ética”, relata. Para o 7o ano, a orientadora educacional gosta de usar o livro Pequeno tratado das grandes virtudes, de André Comte-Sponville, cujos textos são ponto de partida para discussões sobre virtudes como tolerância, humildade etc. “Há uma hora em que também conversamos sobre drogas, isso mais para o 8o e 9o anos. Mas esse é um tema que vem dos alunos, assim como a sexualidade”, explica.

Adultos infantilizados

Os orientadores educacionais também precisam lidar com as famílias dos alunos. E nesse aspecto, muitas vezes o relacionamento pode ser ainda mais tumultuado. Com três décadas de experiência como orientadora educacional na mesma escola, Lygia tem observado algumas mudanças. “A gente sente crianças às vezes muito fragilizadas por serem muito protegidas. Coisas que uma criança teria condição de fazer sozinha, os pais vêm fazer no lugar delas. Ou há pais que vêm se queixar porque o professor falou mais rispidamente, ou deu uma bronca. E essa bronca, geralmente, vem em função de um comportamento que não foi legal do aluno. Então, a queixa do pai é como justificativa daquele tipo de comportamento do filho. São ações que fragilizam as crianças”, avalia.
Maria José Nóbrega, consultora de diversas escolas privadas e de redes públicas, observa o crescimento de uma pressão de cunho moral a partir da ação de uma minoria ruidosa, especialmente nos grupos de WhatsApp formados pelos pais. Ela cita casos como uma versão em quadrinhos dos Diários de Anne Frank, que mesmo com chancela da ONU e da Fundação Anne Frank, deixou de ser adotada em uma escola porque trazia uma passagem na qual a adolescente e um garoto percebem suas diferenças sexuais – tão somente isso. A educadora conta também outro caso de uma escola privada que enfrentou problemas por adotar o livro em quadrinhos onde a ativista Malala conta sua trajetória. Segundo algumas famílias, aquela obra, que relata a luta da adolescente pelo direito de estudar, incitaria os jovens a desobedecerem seus pais.

“Jovem de 15 anos não é categoria”

Se na rede privada as funções de orientador pedagógico e orientador educacional se encontram divididas entre dois profissionais, um deles mais colado aos professores e suas questões didáticas, outro próximo aos alunos e às questões sócio-comportamentais, na rede pública geralmente essa função é exercida pela mesma pessoa.
Mas tal concentração em um profissional não deve ser compreendida como pior em relação à duplicidade de funções observada em muitas escolas particulares, como destaca Adriana Marcondes Machado, do Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia da USP. “Não diria que essa é uma função ‘acumulada’ na rede pública porque seria partir do pressuposto de que seriam, de fato, duas funções para dois profissionais diferentes. As funções podem se tornar um acúmulo se esse profissional precisar dar conta de várias séries, ou se for um único coordenador para uma escola de mais de mil alunos, por exemplo. Mas é o coletivo da escola que precisa decidir se quer que essa função seja exercida por uma ou por duas pessoas. E não podemos dizer o que é melhor, mas sim o que pode funcionar para uma determinada escola”, pondera.

No Ensino Médio, o trabalho do orientador educacional ganha novos contornos, conforme destaca Maria José Nóbrega. “É quando entram em cena o projeto de vida do aluno e as ações de orientação profissional”.
Trabalhando com diversas instituições públicas de ensino há décadas, Adriana Marcondes observa esse trabalho de articular o jovem com seu projeto de vida e o mundo do trabalho sendo feito em diversas instituições públicas de Ensino Médio, mesmo com as dificuldades que essas escolas têm para promoverem saídas a museus ou estudos de meio, por exemplo. “Há hoje muitas escolas que têm projetos articulados com a comunidade. Não é raro achar uma escola que, sendo frequentada por um determinado grupo indígena que viva ali perto, tenha os seus projetos educacionais articulados com essa cultura. Nesse sentido, há bons exemplos tanto nas escolas públicas quanto nas particulares. E essas escolas trabalham com crianças e famílias que vivem situações bastante difíceis”, destaca a pesquisadora.

Adriana ressalta a importância de compreender a realidade do entorno da escola e as características de cada instituição de ensino para dialogar com a comunidade. “Um jovem negro fazendo fundamental 2 em uma escola localizada na periferia tem que lidar diariamente com questões que são muito complicadas. ‘Quem é esse jovem?’ Não existe “jovem de 15 anos” como categoria. É preciso criar outros recortes: de que raça, de que classe social, onde vive, e isso se configura em tema nas escolas. Eu diria que está presente na luta e no esforço de muitos professores e professoras. Mesmo naquelas escolas onde aparentemente não se faça nada nesse sentido, haverá um ou outro professor trabalhando essas questões com seus alunos”, assegura a psicóloga.

A função de orientador educacional está, portanto, umbilicalmente ligada à própria condição de professor, é aonde quer chegar o raciocínio da pesquisadora. Todo professor é um orientador educacional, no sentido de que ensina aquela criança, com aquela história, naquela escola, que também tem sua própria história. E Adriana tira da memória um exemplo que ficou para sempre gravado nela como paradigmático desse tipo de profissional que ensina a sua disciplina ao mesmo tempo em que acolhe o aluno. “Uma vez eu estava em uma escola onde aconteceu o caso terrível de um menino que viu o pai sendo queimado vivo [por ordem dos chefes do tráfico na comunidade]. Toda vez que eu imagino essa cena fico indignada. Três dias depois, esse menino estava de volta à escola e vem uma professora de Matemática falar com ele. Ela disse assim: ‘Olha, você tinha o direito de não ter vivido isso que você viveu. Não te deram esse direito. E sabe qual é a única coisa que eu posso fazer por você?’ O menino olhou para ela e perguntou: ‘Qual?’. ‘Eu posso te ensinar Matemática. Você quer?’. ‘Eu quero”, respondeu o menino. Com esse exemplo quero dizer que aquilo que você pode agir em relação à realidade do seu aluno não está fora do conteúdo que você ensina”, reflete a pesquisadora, para concluir: “Nesse sentido, todo professor é um orientador educacional.”

A função de orientador educacional está, portanto, umbilicalmente ligada à própria condição de professor, é aonde quer chegar o raciocínio da pesquisadora. Todo professor é um orientador educacional, no sentido de que ensina aquela criança, com aquela história, naquela escola, que também tem sua própria história. E Adriana tira da memória um exemplo que ficou para sempre gravado nela como paradigmático desse tipo de profissional que ensina a sua disciplina ao mesmo tempo em que acolhe o aluno. “Uma vez eu estava em uma escola onde aconteceu o caso terrível de um menino que viu o pai sendo queimado vivo [por ordem dos chefes do tráfico na comunidade]. Toda vez que eu imagino essa cena fico indignada. Três dias depois, esse menino estava de volta à escola e vem uma professora de Matemática falar com ele. Ela disse assim: ‘Olha, você tinha o direito de não ter vivido isso que você viveu. Não te deram esse direito. E sabe qual é a única coisa que eu posso fazer por você?’ O menino olhou para ela e perguntou: ‘Qual?’. ‘Eu posso te ensinar Matemática. Você quer?’. ‘Eu quero”, respondeu o menino. Com esse exemplo quero dizer que aquilo que você pode agir em relação à realidade do seu aluno não está fora do conteúdo que você ensina”, reflete a pesquisadora, para concluir: “Nesse sentido, todo professor é um orientador educacional.”

Todo professor é um orientador educacional, no sentido de que ensina aquela criança, com aquela história, naquela escola e naquele contexto.
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