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Silvio Meira: Inovação, método científico e zumbis digitais

Nesta entrevista à Educatrix, o cientista Silvio Meira fala sobre a importância do método científico para se inovar, de fato, na Educação. 

texto Paulo de Camargo

Doutor pela University of Kent, Silvio Meira é um pesquisador com sólida trajetória, que inclui passagem pelo Berkman Klein Center, da Harvard University. É conhecido por sua ação empreendedora, na criação do internacionalmente renomado Cesar – Centro de Estudos e Sistemas Avançados no Recife. Centro de inovação sem fins lucrativos com 1,2 mil colaboradores e faturamento anual de R$ 250 milhões, o Cesar já expandiu suas ações para a educação, com a inovadora Cesar School, que atua desde a educação básica até a pós-graduação. Lá, Meira é professor-extraordinário.

Silvio Meira participou da concepção e hoje preside o conselho do Porto Digital, parque tecnológico instalado na zona central – antes degradada – do Recife, e compartilha seus conhecimentos em conselhos como o do Magazine Luiza ou da construtora MRV. 

Apesar do título, este cientista em nada parece o clichê do compenetrado acadêmico, tampouco do engravatado executivo. Entre as principais referências da cultura brasileira para compreender o novo mundo do século 21, Meira continua sendo o mesmo gentil professor que muitas vezes faz suas conferências de bermudas e atende a todos como se estivesse em casa. Fala com profundidade sobre o impacto de inovação na economia, nas empresas, nas sociedades, nos indivíduos – e, claro, também na educação. Em meio a uma agenda atribulada, Silvio Meira recebeu virtualmente a Educatrix para a seguinte conversa.

Na pandemia, descobrimos apenas que podemos dar a mesma aula da Idade Média, mas on-line. A sala
de aula morreu e agora continua como zumbi digital”

Silvio Meira
Educatrix | Vamos começar do começo. Ao falar de inovação para educadores, quais seriam os conceitos-chave?

Silvio Meira: Em primeiro lugar, vamos definir o termo inovação apropriadamente. Olhando pelos olhos de um educador: se você não tem a visão apropriada de um conceito, como vai criar oportunidade de aprendizado para que as pessoas o entendam e o apliquem? Inovação é uma das leis da gravidade do empreendedorismo. Tenho as minhas próprias definições, mas resolvi propagar para sempre a de Peter Drucker (1974) porque é simples, direta e leva em conta os agentes que participam do processo, em qualquer contexto. Drucker diz que inovação é a mudança de comportamento de agentes, no mercado, como fornecedores e consumidores, do que quer que seja. Pode ser um mercado de ideias, de propostas políticas, de alternativas práticas de processos de aprendizado. Se usarmos essa definição na educação, vemos que a introdução de muitos artefatos tecnológicos no sistema não trouxe inovação. Que mudança o quadro branco digital, ou smartboard, promoveu no comportamento de alunos e professores? Absolutamente nenhuma.

Educatrix | Você falou em mercado. Quando se refere à educação, à escola, mercado significa qualquer ambiente de trocas?

Meira: Mercado é uma dessas ideias que a gente teima em não entender. É, simplesmente, todo lugar onde um agente oferece e outros demandam algo. Mercados não existem em isolamento: no mercado do aprendizado, as escolas oferecem oportunidades de aprender e os aprendizes querem aprender alguma coisa. Nesse caso, a competição não se dá entre formas diferentes de ensino ou estilos de aprendizagem: há uma competição com os games, a Netflix, o WhatsApp, porque nesse mercado o elemento escasso é o tempo. Se eu dedicar 30% do meu tempo para jogar, outros 30% para redes sociais, mais 30% para eu fazer outras coisas, sobra 10% para eu aprender alguma coisa. Dentro desse mercado amplo, esse ecossistema em que passo uma parte do tempo, há o submercado de aprendizado, de educação, de conhecimento e, dentro dele, tenho outra miríade de mercados. 

Educatrix | Depois de entender o que é inovação, o que fazer?

Meira: A segunda parte é decidir como chegar lá. Como você muda o comportamento das pessoas? Aqui, temos o bom e velho método científico: mudamos o comportamento das pessoas não por tentativa e erro, mas investigando, criando hipóteses, fazendo experimentos para testar a validade dessas hipóteses em pequena escala (como um subconjunto de alunos em uma sala de aula), e depois disso, uma vez validadas as hipóteses, escalando para turmas, escolas, sistemas educacionais. Isso está tudo codificado há pelo menos 150 anos. Só que, infelizmente, a gente não usa. 

Educatrix | E se aplicarmos esse raciocínio ao que aconteceu durante a pandemia?

Meira: Vamos lá: o número total de novas tecnologias introduzidas na pandemia é… zero, certo? Sabemos disso. Houve, sim, uma supressão dramática e global do espaço físico. As medidas de isolamento social, no começo da pandemia principalmente, levaram todo mundo para casa. A consequência foi a realização de um grande experimento global, ou de redes de experimentos globais, não necessariamente conectados uns com os outros, que levaram as pessoas a entender ferramentas que estavam disponíveis desde o início da internet: streaming, ambientes interativos, ambientes de discussão, whiteboards compartilhados, sistemas de escrita compartilhada. Temos isso desde o início da web com um nome bonito: sky writing! De repente, todo mundo aprendeu a usar conference call, streaming, Google Docs, PowerPoint compartilhado, a submeter exercícios e provas on-line etc. As pessoas tiveram de aprender a usar o digital como em um choque, todo mundo ao mesmo tempo. De resto, porém, descobrimos que os professores continuam dando a mesma aula da Idade Média, agora on-line. Isso não mudou nada.

Educatrix | Nas discussões sobre o retorno às aulas, é inevitável surgirem estudos comparativos entre a aprendizagem no ensino remoto e no presencial. Como vê isso?

Meira: Fazendo educação on-line com o grau de incompetência que temos feito, é bem capaz que a educação presencial seja realmente mais eficaz, se usarmos as medidas clássicas de eficácia. Mas, novamente, seguindo o método científico, é preciso saber o que estou medindo, com o que estou medindo e com o que estou comparando. É muito fácil sair por aí e dizer que a educação presencial é muito mais eficaz do que a educação on-line. Para contrapor essa ideia, poderíamos, por exemplo, fazer uma simulação para testar uma hipótese: vamos imaginar que eu tivesse desenhado uma metodologia em que o digital já parte com mecanismos de comunicação, colaboração e ferramentas apropriadas, com um conjunto de vetores de aprendizado, de sistemas de provocação, de avaliação e assim por diante, construídos e testados, apropriados para esse ambiente. Isso é muito diferente de repetir a mesma aula, só que de forma remota. A aula presencial pensada na sua plataforma física e o aprendizado digital, on-line, na sua.

Educatrix | Em outras palavras, o que podemos comparar é simplesmente o resultado de aulas expositivas, uma na forma presencial e outra na forma remota.

Meira: A sala de aula, como parte do processo de aprendizado, deriva dos mosteiros da Idade Média, da linha de produção de Henry Ford, das métricas de Frederick Taylor, tudo isso em um ambiente prisional, cercado por uma grade curricular. Na pandemia, você pega esse ambiente e coloca on-line. O que acontece? O aluno, do qual o professor poderia reclamar em sala de aula, fisicamente, agora está em casa, vendo um professor dar a mesma aula de 1972, mas com a câmera fechada. Aí você diz: a aula presencial é muito melhor do que a aula on-line! Essa deve ser mesmo mais efetiva provavelmente, porque o que estamos vendo é a aula dada antes da imprensa de Gutemberg (1439), agora em um ambiente digital de 2021. O professor copia o livro no quadro para que os alunos o copiem no caderno. Já deveríamos ter um ambiente de aprendizagem diferente, em que o aluno lê o texto como fundamento para discutir com o professor e elaborar suas dúvidas em ambiente de construção coletiva de conhecimento, não é? Acho que 90% das aulas que acontecem no mundo são patéticas, independentemente de quem seja o professor. Pode ser Albert Einstein redivivo. 

Educatrix | Tudo fica mais complicado quando se tem tanta disponibilidade de informação na internet, não é?

Meira: Se vivemos em um ambiente de abundância de conhecimento, onde há incontáveis vídeos em repositórios como YouTube, sobre qualquer tema, você vai para a aula virtual ouvir um professor que está tentando construir uma demonstração de Pitágoras? Os alunos ficam perdidos sem saber o que está acontecendo e nunca mais vão aprender aquilo, e nós realmente não estamos falando de ambiente de aprendizado. No digital, fica tudo pior porque é óbvio que o aluno terá uma segunda tela, se puder, na qual vai jogar ou conversar com os amigos. Quem podia, adquiriu uma segunda tela: em uma você coloca o que é obrigado a fazer e na outra, aquilo que quer. Na sala de aula presencial não dá para fazer isso, e ficamos presos à representação monástica do professor, sem sentido até para o próprio educador. O problema é que estamos presos nesse modelo, que não funciona mais há muito tempo. Meu irmão Luciano Meira costuma dizer que a sala de aula morreu. Eu gosto de complementar dizendo: morreu e virou um zumbi – digital – na internet. 

Educatrix | De certa forma, a pandemia proporciona uma oportunidade para rever modelos e estratégias. Como seria isso?

Meira: Tivemos uma oportunidade gigantesca de aprender que a sala de aula não funciona mais. Dizer que temos de voltar à sala de aula é dizer que temos de voltar para 1400, e esse é o grande dilema dos sistemas educacionais. Não existem modelos únicos, mas podemos pegar o caso da Cesar School, que utiliza uma combinação de Problem Based Learning (Aprendizagem Baseada em Problemas), em cima de projetos “quase” reais, e sempre em times. Os alunos que entram não querem sair mais. A cabeça do educador é outra, pois ele não vai lá “dar aulas”. Os alunos estudam, debatem com o professor, tudo em cima de projetos. Tem uma defesa de projeto por semestre e os alunos estão o tempo todo aprendendo e aprendendo a trabalhar. Comparando, em uma escola de Medicina que usa essas metodologias, os alunos não precisam estudar 2.742 páginas para decorar cada músculo do corpo humano, eles atuam em postos de saúde da família desde o primeiro dia. No primeiro dia de aula na educação básica, os alunos deveriam começar a aprender por que e como fazer buscas na internet, conscientemente. Isso deveria ser obrigatório. Fico surpreso com alunos de doutorado que não sabem fazer busca na internet. É incrível! Os alunos só sabem ficar clicando nos dispositivos e, com tempo e sem medo de errar, acabam descobrindo. Mas construir uma hierarquia de qualidade para as respostas exige método, técnica, fundamentos. Exige um conhecimento mínimo do método científico.

Educatrix | O digital abre uma nova forma de criar conhecimentos de aprender?

Meira: Não apenas novos modos de aprender, mas de criar conhecimento e fazer experimentos. Hoje, em uma empresa de fármacos, há profissionais de computação química para fazer experimentos virtuais. Em vez de ficar no laboratório para testar se tal composto funciona, ele identifica o que se quer atacar em uma certa doença, e busca as moléculas que podem fazê-lo. O algoritmo busca entre as bilhões de combinações possíveis e seleciona: testa essas aqui. Você vai para o laboratório físico para fazer o experimento químico. Foi assim que criamos uma vacina para o vírus mais agressivo da nossa história em menos de um ano. Se a covid-19 aparecesse antes do ano 2000, não saberíamos nem o que era, pois não teríamos conseguido sequer chegar à sequência genética. Assim, temos no mundo contemporâneo outra plataforma de conhecimento, habilitada pelo digital. É quase como se todas as áreas do conhecimento fossem hoje subáreas do digital: é preciso passar pelo digital para entender o seu foco de atuação, de experimentação, de aprendizado, de ciência. O digital entrou na categoria que, em outras épocas, era exclusividade da Matemática e da Filosofia. Vivemos aquilo que o filósofo italiano Luciano Floridi definiu como OnLIFE, ou seja, uma vida em que não podemos descartar o on-line, ainda que você esteja fisicamente presente e de forma síncrona em algum lugar. Hoje, se você não entender como o digital serve para habilitar seus processos de construção de qualquer coisa, em qualquer área, está definitivamente décadas atrasado.


SILVIO MEIRA é professor extraordinário da Cesar School, professor emérito do Centro de Informática da UFPE e cientista-chefe na The Digital Strategy Company. É fundador e presidente do conselho de administração do Porto Digital. Foi Fellow e Faculty Associate do Berkman Center (Harvard University), de 2012 a 2015, e professor associado da escola de direito da FGV-Rio, de 2014 a 2017.

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