A escola inteira ganha com a educação inclusiva
Conheça o trabalho pioneiro de Rodrigo Hübner Mendes que dá insumos para a inclusão se tornar realidade para todos.
texto Paulo de Camargo
O ensino brasileiro tem desafios gigantescos em diversas áreas, mas, em todas, há pelo menos um elemento em comum, em diferentes dimensões: o conceito de educação inclusiva. A cultura reconhecidamente excludente da educação básica, no país, encontra sua expressão também no atendimento de crianças e adolescentes com deficiência – e essa é a razão de existir do Instituto Rodrigo Mendes.
“Trabalhamos para que nenhuma criança e nenhum adolescente fiquem fora da escola em virtude de uma característica ligada ao campo da deficiência”, explica o advogado Rodrigo Hubner Mendes. Administrador, mestre em Gestão da Diversidade Humana pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), Mendes criou, em 1994, o Instituto Rodrigo Mendes, que desde então se tornou uma referência na área.
Autor do livro Educação inclusiva na prática, publicado pela Fundação Santillana e Editora Moderna, Mendes é membro do Young Global Leaders (Fórum Econômico Mundial) e concedeu uma entrevista exclusiva para a Educatrix tratando dos desafios que o campo da educação de pessoas com deficiência enfrenta no Brasil.
Educatrix | Como é possível recuperar a história da educação de crianças e adolescentes com deficiência antes de falarmos no cenário atual? Rodrigo Hübner Mendes Pretendemos gerar transformações em um campo em que historicamente crianças e adolescentes passaram por enormes processos de discriminação e exclusão em todos os âmbitos. Isso se observa também na questão do acesso à educação. Estamos falando da história da humanidade. Na educação, essas pessoas foram completamente excluídas e apenas no século passado esse processo começou a ser repensado. Como política pública, ou seja, buscando escala e reservando investimentos para a implementação, esse é um processo muito recente. Inicialmente, isso aconteceu com o surgimento de escolas especiais.
Educatrix | Por que se pensava em salas e escolas chamadas especiais? Mendes: Esse era o paradigma então vigente – um modelo segundo o qual seria necessário um ambiente restrito, reservado especificamente para o público com deficiência. Daí a ideia de especial, de especificidade. Era um princípio de separação em um tipo próprio de instituição que lidaria exclusivamente com esse público. Mas tudo isso evoluiu nas últimas décadas, no mundo inteiro, para o que se busca hoje: uma educação verdadeiramente inclusiva.
Educatrix | É um desafio planetário... Mendes: Só para que você tenha uma ideia da dimensão do que estamos falando, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, existe no planeta um bilhão de pessoas com deficiência, perto de 15% da população no mundo. Quando pensamos na participação dessa população, tanto nas etapas educacionais, como na inserção no mundo do trabalho, vemos a profundidade da desigualmente que persiste. É sempre extremamente relevante ressaltar a desigualdade, que é gigantesca.
Educatrix | É por isso também que o conceito de educação inclusiva abrange o universo que vai além da oferta educativa para crianças e adolescentes com deficiência. Há múltiplas faces da inclusão que expressam a demanda por direitos, certo? Mendes: Sim. A proposta da educação inclusiva surge a partir do amadurecimento da própria pedagogia e da discussão sobre direitos humanos, como uma resposta ao que a sociedade colheu depois de tanto tempo investindo em um modelo da segregação em salas especiais. Ainda persistem falsos dilemas, como o que sugere que crianças seriam mais bem atendidas em lugares próprios, e que isso representaria uma proteção... É preciso entender que uma escola especial é quase sempre uma instituição muito pequena, que recebe dinheiro do Estado. Raramente essas instituições seguem o currículo oficial. Mas o que se observa, e muitas vezes é explicitamente colocado, é a reprodução de uma crença segundo a qual aquelas crianças precisam ser protegidas, pois não têm a capacidade de construir autonomia.
Educatrix | Essa é uma visão que permeia toda a sociedade... Mendes: A visão de mundo de muitas instituições, transmitida para os pais, é de que essas crianças não deveriam ser comparadas com as outras e que não se deve ter grandes expectativas no seu futuro. Quando se fala em pessoas com impedimentos intelectuais, isso predefine um horizonte de autonomia, como se fosse possível ver o ponto de chegada antes mesmo da largada. Muito bem, depois de décadas podemos perceber que este é um modelo que fracassou, não gerou resultados. Hoje são adultos completamente dependentes de suas famílias ou de instituições, e isso sinaliza um fracasso.
Educatrix | E por que a inclusão ainda gera tanta insegurança na escola? Mendes: Porque muita gente ainda entende que o que está sendo proposto é simplesmente uma transferência de um público que antes frequentava instituições especializadas para o universo da escola convencional. É claro que não funciona simplesmente matricular uma criança com algum tipo de deficiência em uma escola comum. Esse é só um primeiro passo. Para que o processo educativo aconteça, a escola e os professores precisam se transformar e rever o seu projeto político pedagógico pela mesma lógica que nos últimos 15 anos vem funcionando em várias partes do mundo. Temos encontrado, em todas as regiões brasileiras, casos muito exitosos. É preciso, com olhar de pesquisadores, entender o que deu certo, como deu certo, para compartilhar as experiências bem-sucedidas.
Educatrix | O que deve ocorrer para a educação inclusiva funcionar? Mendes: Temos de buscar os elementos que são imprescindíveis em transformações multidimensionais. Estamos falando do cotidiano escolar, mas também de outras dimensões. Eu destaco, em primeiro lugar, a necessidade de se investir na formação dos professores e de todos os profissionais da equipe pedagógica, quer dizer, de ampliar o seu repertório com alternativas pedagógicas e com o uso das novas tecnologias. Há muitas tecnologias de baixo custo que ajudam muito na eliminação de barreiras. Em segundo lugar, é preciso haver tempo de planejamento pedagógico. Isso significa tempo para a equipe educativa se reunir para discutir os casos, para que pensem estratégias diversificadas. Ou seja, estamos falando em sair de um padrão que vem se mostrando insuficiente, de um modelo baseado apenas em foco no conteúdo, com o uso de livro didático e lousa.
Educatrix | Você considera que esse mesmo princípio também fortalece a escola do ponto de vista pedagógico para todos? Mendes: Claro! No final do dia, o que se percebe é que a qualidade do ensino da escola ganha com todas as transformações. A inclusão é uma demanda contemporânea que diz respeito a todas as crianças e a todos os adolescentes. Uma abordagem pedagógica que valoriza o contexto individual em um processo singular de aprendizagem, que aposta em formas distintas de se relacionar com o conhecimento, que dá abertura para os próprios alunos participarem e contribuírem com a jornada educativa – tudo isso representa um conjunto de atualizações e mudanças necessárias para a escola e para os educadores. Não há como continuar com uma rotina pedagógica cristalizada quando você traz a diversidade para dentro da sala de aula. É preciso buscar novas informações, rever sua organização como professor, introduzir novos recursos, buscar alternativas.
Educatrix Os marcos legais que temos favorecem o avanço? Mendes: Nosso marco regulatório é bastante robusto. No Brasil, se pensarmos em uma curva de amadurecimento, há um ponto de inflexão a partir de 2006, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) publica a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, documento que se torna o grande referencial internacional. O Brasil não apenas assinou essa convenção como decidiu incorporá-la à própria Constituição Federal, o que pouca gente sabe. Na prática, isso quer dizer que todas as leis – sejam federais, estaduais ou municipais – precisam estar de acordo com a Constituição e, portanto, com a Convenção, que ressalta a importância de eliminar barreiras sociais, e não apenas discutir o impedimento com foco na pessoa. Qualquer lei que não siga esse princípio não está dialogando com a nossa Constituição Federal.
Educatrix | E como isso se desdobrou nas políticas públicas brasileiras? Mendes: A partir desse momento, em 2008, o Brasil lançou uma Política Nacional de Educação Especial muito alinhada com a Convenção. Trouxe uma novidade muito importante, a ressignificação do papel da Educação Especial, que é uma modalidade na arquitetura da educação brasileira. Até então, era essa modalidade que tinha de assumir a incumbência de oferecer escolarização da população com deficiência, em salas especiais. A partir de 2008, isso é rompido. As crianças e os adolescentes devem ser incluídos nas escolas comuns e as escolas especiais devem apenas apoiar as escolas comuns a atender a demanda e oferecer serviços complementares no contraturno. Esse atendimento no contraturno é um serviço que deve ser desempenhado por professores com formação, com o objetivo de ajudar as equipes a identificar barreiras e apoiar o professor, e também apoiar o aluno. Ou seja, é uma função que pode ser desenvolvida pelas instituições especializadas, mas nunca como uma substituição à escola e ao professor. Não se trata de trocar, mas de somar.
Educatrix | E como isso se refletiu no atendimento? Mendes: Isso gerou uma completa mudança no panorama, como mostram os dados de matrículas. Houve um crescimento vertiginoso de matrícula nas escolas regulares, acompanhado de um decréscimo proporcionalmente inverso das matrículas em escolas especiais. Outra consequência importante foi o crescimento no número absoluto de matrículas. Entre 2010 e 2020, o número de matrículas passou de 702,6 mil para 1,3 milhão de alunos, da Educação Infantil ao Ensino Médio e educação profissional.
Educatrix | E como você avaliaria o momento hoje? Mendes: Passamos por um período difícil e tivemos alguns alertas de retrocesso, inclusive na Educação Especial. Hoje, podemos dizer que vivemos um tempo de experiências inovadoras muito bem-sucedidas, consistentes, encontradas em todas as partes do Brasil. Ao mesmo tempo, é preciso lembrar que as instituições ainda estão em uma etapa inicial dessa transformação, com equívocos muito explícitos. É um cenário plural, no qual boas práticas convivem com práticas muito atrasadas.
Educatrix: Muitas vezes, no entanto, as escolas se queixam da falta de suporte dos órgãos gestores. Isso é real? Mendes: Claro, seria subestimar o desafio. É preciso garantir a infraestrutura de acessibilidade. Além disso, é um trabalho necessariamente intersetorial. O município precisa pensar, por exemplo, o transporte público. Da mesma forma, os serviços de apoio precisam ser destacados. Uma instituição convencional de ensino pode precisar de um especialista para algo mais operacional, de um cuidador ou até mesmo de intérprete no caso da criança surda, e assim por diante. Então, estamos falando de ações que pressupõem investimento e de políticas públicas que reservem recursos de seu orçamento geral para que a escola possa dar conta desse conjunto de mudanças e que precisam acontecer em escala, em todas as redes. Mas eu queria destacar sempre a importância da dimensão da abordagem pedagógica inclusiva. A equipe de professores precisa apostar em práticas didáticas mais diversificadas, e para isso a formação e a troca de experiências são essenciais.
Educatrix | E sobre o momento do Instituto Rodrigo Mendes, que completará 30 anos em 2024? Mendes: Nosso trabalho é buscar diariamente experiências de educação inclusiva que estão dando certo, gerando transformações positivas. Buscamos sistematizar tudo e transformar em conteúdo. Publicamos o que produzimos no Portal Diversa (www.diversa.org.br), uma plataforma aberta em que os educadores poderão encontrar um conjunto muito grande de artigos, estudos, exemplos, materiais, bem como a possibilidade de estabelecer diálogos. Mas é importante dizer que não investimos na crença de receitas prontas. Isso não existe, é uma ilusão. Acreditamos na oferta de uma biblioteca de referências que possa ampliar a paleta de cores dos professores para que possam criar o seu próprio projeto com base em outras fontes e ideias que deram certo.
Educatrix | O Instituto Rodrigo Mendes trabalha com formação digital e presencial? Mendes: Temos diferentes formatos, seja presencial, presencial a distância ou cursos digitais autoinstrucionais. Tudo pode ser acessado no site www.institutorodrigomendes.org.br. Os cursos são planejados a partir de demandas diretas dos educadores, dos municípios, dos gestores que nos pedem apoio, em todas as etapas. Já formamos mais de 100 mil professores. Temos a missão de longo prazo de apoiar esses 2 milhões de professores que estão na educação básica para que todos possam ter acesso a um conhecimento mais amplo da educação inclusiva.
Educatrix | Muitas vezes, os professores pedem formações mais específicas para diferentes tipos de condições dos alunos. Isso é eficaz? Mendes: Há uma visão quase intuitiva por parte de muitos profissionais que se possa organizar o processo formativo a partir dos tipos de deficiência. Parece correta, mas, atuando há tantos anos nessa área, percebemos que essa é uma percepção equivocada. Uma coisa é oferecer para o professor formação para que pense a educação inclusiva como um todo, naquilo que é papel do professor, ou seja, definir as estratégias pedagógicas para seus alunos, na relação coletiva. Outra é a informação específica, das tipologias e especificidades, que está no campo da saúde, que não devem ser endereçadas pelo professor. Na escola, precisamos estar atentos às barreiras que impedem a aprendizagem, não buscar receitas por tipos de deficiência. Em alguns casos, será necessária a interlocução com outros profissionais, mas com inputs para se pensar o processo de aprendizagem, e não a condição em si.
Educatrix | E como vocês atuam junto aos tomadores de decisão, especialmente na esfera pública? Mendes: Temos também um outro pilar, que é o trabalho feito junto às lideranças. Atuamos com advocacy junto aos nossos legisladores, aos gestores públicos e também eventualmente trabalhamos em parceria com o Judiciário. Nosso papel é constantemente colocar essa pauta na agenda, garantir que esse assunto não seja deixado como algo periférico ou secundário, como muitas vezes aconteceu na história.
Educatrix | Qual é o impacto de uma educação mais inclusiva para a sociedade como um todo? Mendes Este é um investimento importante também do ponto de vista do desenvolvimento econômico. É fundamental priorizar a dimensão educativa, social, mas a partir disso podemos ressaltar o impacto dessa política em outros campos. Há estudos internacionais que mostram, por exemplo, que a exclusão das pessoas com deficiência pode significar a perda de 2% a 5% do PIB de um país, seja pela diminuição da capacidade produtiva, de pessoas que deixam de exercer plenamente seu potencial quando não recebem educação, seja por familiares que muitas vezes deixam de exercer sua própria atividade profissional por serem demandados por essas crianças e esses adultos. Além disso, o próprio Estado deixa de investir recursos em manutenção de serviços de assistência social, moradia... Ou seja, a exclusão custa caro no longo prazo.
Rodrigo Hübner Mendes tem dedicado sua vida para garantir que toda pessoa com deficiência tenha acesso à educação de qualidade na escola comum. É mestre em Gestão da Diversidade Humana pela Fundação Getulio Vargas, onde atua também como professor. Rodrigo é membro da rede de empreendedores sociais Ashoka e do Young Global Leaders (Fórum Econômico Mundial).