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A Educação bilíngue no Brasil: O que está acontecendo, afinal?

Diretrizes, fundamentos e tendências para escolas que querem oferecer educação bilingue de qualidade.
texto Antonieta Megale

Para quem trabalha com educação básica no Brasil, há uma nova palavra em circulação: BILÍNGUE. Enfrentamos um novo discurso que nos leva a crer que a escola bilíngue oferece as oportunidades necessárias para formar alunos hábeis o suficiente para enfrentar as demandas da contemporaneidade. Com isso, vivenciamos a abertura de muitas escolas bilíngues brasileiras e a implementação dos denominados programas bilíngues em escolas já em funcionamento. Embora todas essas escolas estejam alocadas sob a égide do termo bilíngue, elas diferem muito entre si em relação ao entendimento conceitual do que é educação bilíngue, à estruturação do currículo e ao modelo de educação bilíngue adotado. Desse modo, é fundamental que não cometamos o equívoco de uma associação direta ao relacionarmos sem uma investigação criteriosa a denominação bilíngue a uma educação necessariamente de qualidade. Para começarmos essa reflexão, é pertinente mapearmos o contexto sociolinguístico brasileiro. Isso porque não podemos pensar em qualquer iniciativa educacional dissociada das demandas do contexto no qual estamos inseridos. Podemos partir então da pergunta a seguir.

O português é mesmo a única língua do brasil?

O mito do monolinguismo, fortemente enraizado no Brasil, está na base do “apagamento” da existência das minorias linguísticas do país, compostas por membros de nações indígenas, de comunidades surdas e de imigrantes que representam uma parcela considerável da população brasileira.

O Brasil é um país marcadamente constituído por uma grande diversidade cultural e linguística. Conforme Maher (2013, p.117), além do português, “são faladas, hoje, em nosso país, mais de 222 línguas”. Como enfatizado pela autora, esse número se refere não a línguas estrangeiras em uso no país, mas sim ao número de línguas maternas “de cidadãos brasileiros natos” utilizadas no dia a dia, em várias comunidades do território nacional. Entretanto, existe um imaginário de que o Brasil, além de ser uniforme culturalmente, é uma nação onde se fala única e exclusivamente o português.

Apresentação cilcos formativos

A esse respeito, Oliveira (2009) explica que o “conhecimento” de que no Brasil se fala o português, e o “desconhecimento” de que muitas outras línguas foram e são igualmente faladas foram produzidos com o propósito de silenciar e interditar muitos brasileiros que não têm o português como língua de nascimento. Com isso, a capacidade desses grupos de se fazer representar nos âmbitos nacionais institucionalizados de gestão das políticas que lhes dizem respeito é substancialmente enfraquecida.
De modo geral, é possível constatarmos que a construção do Brasil foi marcada por políticas de repressão linguística implementadas ao longo de sua história. Essa constatação, nos leva a uma segunda pergunta.

Em um país que historicamente negligenciou suas línguas, por que o inglês passou a ter uma posição de destaque?

Línguas ou modos de falar são formas de capital simbólico que estão desigualmente distribuídos na sociedade (BOURDIEU, 1977). Nessa perspectiva, as línguas se tornaram mercadorias, mais ou menos valorizadas. Sob essas condições, em que ideologias e práticas linguísticas são tensionadas, a língua inglesa foi alçada, por motivos políticos e econômicos, à posição de bem essencial também no Brasil.

Há que se considerar, ademais, que o aumento das trocas comunicativas entre pessoas de diferentes origens tem colocado em evidência a importância da língua inglesa, hoje considerada por muitos a língua de comunicação mundial por excelência (rajagopalan, 2009).

Observamos, assim, o aumento do interesse e uma certa preocupação pela aprendizagem do inglês no Brasil. Como uma das decorrências, observamos o notável crescimento das escolas bilíngues por todo o território brasileiro, que têm como línguas de instrução o inglês e o português.

Ao refletir sobre a gênese e natureza desse tipo de escola, Marcelino (2009) esclarece que, tradicionalmente, os pais brasileiros escolhiam os colégios para seus filhos com base na proposta geral de ensino da instituição e a aprendizagem de uma outra língua era “delegada” aos institutos de idiomas, ainda que os currículos das escolas nas quais seus filhos estavam matriculados contemplasse o ensino de uma língua adicional. Com o tempo, as escolas regulares passaram a terceirizar o ensino de línguas adicionais. Porém, a terceirização, também, mostrou-se ineficiente, uma vez que pressupõe a entrada de uma instituição – os institutos de idiomas – com seus próprios princípios e diretrizes, dentro de uma escola regular que funciona e entende os processos de ensino-aprendizagem de modos, muitas vezes, distintos dos observados por esses institutos. É nesse momento, então, que as escolas bilíngues brasileiras ganham destaque. Essas escolas têm grande adesão das famílias brasileiras, que passaram a percebê-las como uma oportunidade cômoda para “conseguir duas funções tão importantes e necessárias na educação de seus filhos: uma educação de qualidade e o ensino de um idioma” (marcelino, 2009, p.2).

Mas, afinal, o que é uma escola bilíngue?

De forma geral, a educação bilíngue está relacionada à instrução que ocorre na escola em pelo menos duas línguas. As escolas bilíngues têm como foco oferecer aos alunos altos níveis de proficiência nas duas línguas utilizadas na escola, por meio de uma abordagem baseada na aprendizagem de conteúdos.

Em escolas bilíngues português-inglês, por exemplo, ao invés de somente aulas de inglês, nas quais a finalidade única é o aprendizado da língua-alvo, são ministradas aulas em inglês, que possuem finalidade dupla: o ensino da língua e o ensino do conteúdo. Isso quer dizer que uma escola bilíngue tem, por exemplo, aulas de ciências em inglês e, com isso, as expectativas de aprendizagem dessas aulas se relacionam com fenômenos científicos e com a construção de um repertório linguístico que permita ao aluno discorrer em inglês sobre o objeto de aprendizagem.

O que uma escola bilíngue promove (ou deveria promover)?

A escola bilíngue opera por meio de duas línguas e, dessa forma, um de seus objetivos centrais é o de que seus alunos possam interagir em práticas sociais diversas por meio dessas línguas. Além disso, a escola bilíngue deve se preocupar com o aprendizado, por parte de seus alunos, de linguagem acadêmica referente às áreas que são ministradas em cada uma dessas línguas. É fundamental o entendimento de que não basta que o aluno, em uma aula de ciências ministrada em inglês, compreenda o conteúdo relacionado, por exemplo, ao aquecimento global. O aluno precisa, também, construir conhecimento linguístico-discursivo para que possa discorrer oralmente e por escrito sobre o tema, utilizando vocabulário e estrutura adequados a essa área de conhecimento.

Mas será que a preocupação central de uma escola bilíngue deve estar circunscrita às línguas que circulam em seu território? Embora saibamos da importância de fazer uso adequado do inglês e do português de acordo com as situações de interação, a escola bilíngue deve centrar seus esforços para promover uma educação de qualidade. Nessa direção, o professor de ciências, que ministra aulas em inglês, não pode ser apenas um exímio falante dessa língua. É fundamental que ele seja um grande conhecedor dos pressupostos teóricos e metodológicos que perpassam seu objeto de trabalho: as ciências.

Somando-se a isso, uma escola bilíngue deveria ter como um de seus objetivos centrais o desenvolvimento de competências interculturais. Muitas vezes, erroneamente, é assumido que uma escola bilíngue promove um trabalho consistente com cultura de forma automática apenas porque há duas línguas que circulam em seu ambiente. No entanto, essas competências não serão desenvolvidas sem um trabalho sistematicamente planejado que perpasse todos os componentes curriculares.

Um primeiro problema que se coloca com esse trabalho nessas instituições é o próprio conceito de cultura que circula entre o corpo docente. É muito reducionista, em pleno século 21, o entendimento de cultura como espaços estáveis e imutáveis que são, na maioria das vezes, analisados por meio da comparação de características culturais e atributos que variam de nação para nação. Hoje em dia, a noção de cultura está relacionada a ideologias, atitudes e crenças que são manipuladas por meio dos discursos da mídia, da internet, da indústria de marketing ou por outros grupos dominantes. Cultura pode ser, então, compreendida como “subjetividade e historicidade, e é construída e mantida pelas histórias que contamos e os vários discursos que dão sentido às nossas vidas” (kramsch, 2011, p.356).

Nessa direção, por meio de uma língua adicional como o inglês, podemos nos confrontar com visões de mundo distintas. Assim, o educando tem a possibilidade de ampliar seu repertório e decidir o que desses novos saberes importa para sua vida, ao lidar com textos orais e escritos nessa língua adicional e valer-se dela para agir, pode-se conhecer cada vez mais e, desse modo, formar sua própria visão mais atuante e informada acerca dos fatos. Portanto, o aluno se torna capaz de agir mais assertivamente em sua comunidade.

Podemos, então, afirmar que a escola bilíngue deve ter por propósito geral a formação de um cidadão capaz de atuar em cenários superdiversos como o que nos deparamos na atualidade. Isso ocorre quando o educando se torna cada vez mais capaz de avaliar seu lugar no mundo social e compreender como as diferenças foram produzidas ao ter a possibilidade de acessar uma multiplicidade de discursos que circulam em nossa sociedade e ampliar seu repertório e sua visão de mundo.

Como finalizar tão brevemente essa discussão?

É preciso, portanto, refletir sobre que tipo de educação bilíngue queremos promover. Para a promoção de uma educação bilíngue de qualidade, é essencial o investimento na formação dos professores. Como se trata de um fenômeno relativamente recente no Brasil, a contratação de educadores se tornou uma problemática difícil de ser solucionada. É necessário o investimento em formação continuada e em serviço dos docentes de nossas escolas para que possamos assim oportunizar aos nossos estudantes formação consistente e, de fato, adequada às demandas da sociedade contemporânea.

Como saber mais sobre o tema?

A Richmond lançou um livro sobre educação bilíngue, escrito por professores e pesquisadores brasileiros, sobre o cenário nacional. O livro Educação Bilíngue no Brasil é o resultado de uma atividade coletiva de sete educadores-pesquisadores que atuam na formação de professores para escolas bilíngues brasileiras e que também ocupam, em seus fazeres diários, a posição de professores, coordenadores e assessores dessas instituições. Desse modo, a função primordial da obra foi atribuir sentidos ao cotidiano, revendo e significando teorias, práticas e demandas que nos deparamos.


Antonieta Megale
É doutora em Linguística Aplicada pela Unicamp. Bacharel em Comunicação Social. Coordenadora e Professora do curso de Pós-graduação do Instituto Singularidades. Tem experiência como coordenadora pedagógica da área de Língua Inglesa na educação básica, como assessora pedagógica de escolas bilíngues e regulares e na área de elaboração e revisão de materiais didáticos de Língua Inglesa.


Para saber mais
BOURDIEU, P.
A Escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI. Afrânio (Orgs). Escritos de educação. Petrópolis, Vozes, 1998.

KRAMSCH, C. The symbolic dimensions of the intercultural. Language Teaching. Cambridge: Cambridge University Press, 2011. v. 44. p. 354-367. Disponível em: mod.lk/cambridg.
Acesso em: 18 jul. 2019.

MAHER, T. M. Ecos de Resistência: políticas linguísticas e as línguas minoritárias brasileiras. In: NICOLAIDES et al. (Orgs.). Políticas e Políticas Linguísticas. Campinas, SP: Pontes, 2013. p. 117-134.

OLIVEIRA, G. Plurilinguismo no Brasil repressão e resistência linguística. Synergies Brésil, n.7, p. 19-16, 2009. Disponível em: mod.lk/gilvan.
Acesso em: 18 jul. 2019.

RAJAGOPALAN, K. The Identity of “World English”. New Challenges in Language and Literature, FALE/UFMG, p. 97-107, 2009.


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