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Um pouco da história e dos desafios atuais da EJA

A educação é o caminho para transformar vidas. É hora de falar sobre a inclusão geracional e as oportunidades reservadas pelos novos começos na escola.

texto  André Lázaro

O total de estudantes e de profissionais atuando na educação básica brasileira, segundo os dados do Censo de 2022, é equivalente à população da Espanha. Nas redes públicas estão 82% das matrículas. Não é pequeno o esforço para garantir educação de qualidade e condições de trabalho a quase 50 milhões de crianças, jovens e adultos que, da Educação Infantil ao Ensino Médio, frequentam as mais de 178 mil escolas do país.

No entanto, o número de pessoas fora da escola e sem a escolaridade básica é superior ao contingente que a frequenta. Dados de 2020 informam que, entre a população de 15 anos ou mais, 60 milhões não concluíram a educação básica. Embora a maior proporção seja de pessoas mais velhas, 20% dos jovens de 18 a 29 anos estão nessa condição. 

Após o período da ditadura militar, o atendimento educacional no país ganhou impulso com a Constituição de 1988, e no final dos anos 1990 o ingresso de crianças de 7 a 14 anos no Ensino Fundamental havia sido universalizado. No entanto, dados recentes registram que já nos anos finais do Ensino Fundamental a permanência de crianças brancas é superior à das crianças negras. Na faixa etária de 15 a 17 anos, jovens brancos têm 10 pontos percentuais a mais de frequência à escola que os jovens negros. Do total de estudantes, apenas 82% concluem o Ensino Fundamental aos 16 anos e menos de 70% terminam o Ensino Médio aos 19 anos. Processos de exclusão operam em todas as etapas do percurso.

A exclusão educacional não é resultado apenas de mecanismos meritocráticos dos sistemas de ensino: as desigualdades econômicas e sociais têm importante papel para que crianças e jovens não concluam a educação básica. Assim, ao lado de um imenso contingente que, em suas infâncias e juventudes, ou não tiveram acesso ou foram excluídas dos sistemas de ensino, somam-se outros milhares que abandonam e se evadem ao longo da trajetória escolar.

A Educação de Jovens e Adultos (EJA) atende tanto ao Ensino Fundamental, incluindo a alfabetização, como ao Ensino Médio, com cursos de dois ou um ano e meio de duração. Além dos cursos, há o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), organizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) em parceria com as redes de ensino, que emite certificados de conclusão dos níveis. Portanto, a EJA (mínimo de 15 anos para o Fundamental e 18 para o Médio) é um caminho para quem se propõe a retomar a educação formal, obter certificação, ou seja, é a possibilidade de reingresso nos sistemas de ensino, um modo de alcançar a escolaridade obrigatória a que têm direito. 

Pode parecer paradoxal falar em escolaridade obrigatória como direito, mas a expressão sublinha dois aspectos: por um lado, a educação é um direito público subjetivo que pode e deve ser requerido por todos segundo a legislação. Esta, por sua vez, prevê a obrigatoriedade da frequência escolar dos 4 aos 17 anos e, simultaneamente, declara ser um direito de todas as pessoas, independentemente da idade, concluir a educação básica até o Ensino Médio. Obrigação e direito se somam, portanto, quando se trata da responsabilidade do Estado em garantir esse direito humano fundamental, o direito à educação.

Exclusão escolar: uma longa tradição

A exclusão do direito à educação afeta principalmente determinados grupos sociais: a população negra, as populações do campo e das periferias urbanas, as pessoas mais pobres, pessoas com deficiência, refugiados, pessoas em situação de restrição de liberdade e migrantes. Listagens como essa deveriam ser motivo de escândalo: as sociedades ocidentais modernas, frutos das revoluções industrial e democrática, afirmam que a educação — pública, laica e de qualidade — é o principal fator de mobilidade social e de participação na vida cidadã. Exatamente aqueles a quem a sociedade impôs maior custo para alcançar uma vida digna são os que estão fora dos processos educativos que, em tese, seriam caminhos seguros para sua integração na sociedade para a qual contribuem com seu trabalho e sua participação. 

A tradição brasileira do século XX, período em que as sociedades ocidentais já haviam equacionado o acesso à educação, manteve parte expressiva de nossa população em condição de analfabetismo e exclusão escolar. Como a educação é um bem de transmissão intergeracional, famílias de baixa escolaridade têm maiores limitações para que seus descendentes alcancem graus mais elevados de instrução, limitando o acesso a melhores postos de trabalho, remuneração e reconhecimento social. A educação de qualidade foi, ao longo do século XX, uma herança de classe, protegida por decisões políticas autoritárias que frustraram movimentos inclusivos que buscavam recolocar nossa história na trilha republicana, garantindo direitos, reconhecimento e participação da população.

Nos períodos democráticos do século passado houve iniciativas que promoviam a educação não apenas como aquisição da leitura, escrita e matemática, mas também incluíam o conhecimento e a compreensão das dinâmicas de nossa sociedade, promovendo a conscientização cidadã dos grupos tradicionalmente excluídos. Educação para transformação era o lema desse esforço.

É nessa chave que o Brasil desenvolve a Educação Popular, em contraposição às campanhas oficiais episódicas que pretendiam “erradicar o analfabetismo”. A metáfora da erradicação revela, de um lado, a visão que atribui ao analfabetismo o papel predatório das ervas daninhas que devem ser erradicadas dos canteiros produtivos, como se a cultura letrada fosse a única válida. Em segundo lugar, atribui aos próprios analfabetos a responsabilidade por sua condição, ignorando as escolhas políticas que, desde o período colonial, mantiveram parte expressiva da população na condição de escravidão, abandonando-a a partir de 1888 para substituir pelos trabalhadores brancos, vindos da Europa com subsídios do Estado brasileiro. Era a política racista do branqueamento.

A Educação Popular

A Educação Popular, fortalecida pela ampliação da participação democrática dos anos 1950 e 1960, encontra em Paulo Freire a ontologia e a metodologia para constituir uma pedagogia política e humanitária de grande alcance na América Latina. Ao contrário do que asseguravam as campanhas episódicas dos órgãos oficiais, a pedagogia freiriana afirmava que educandos e educadores têm saberes próprios que podem ser compartilhados e, a partir desse diálogo, é possível construir uma nova compreensão do mundo e de sua dinâmica econômica, política e social. A ontologia partia da concepção da incompletude humana e sua vocação de “ser mais”. Assim, está inscrito na própria condição humana o desejo de ampliar o entendimento e a ação consciente com base na experiência ética da convivialidade na transformação do mundo. Ler, escrever e contar são formas de decifrar o mundo e transformá-lo.

Como sabemos, o golpe militar de 1964, que impôs 21 anos de ditadura no Brasil, silenciou as vozes críticas que buscavam, pela educação, promover maior participação e transformação da sociedade brasileira. A efervescência dos anos 1960 marca a história brasileira não apenas na educação, mas também nas artes, na vida política e na ampliação da cidadania, iniciativas que o golpe silenciou.

Contrariamente à visão oficial, que via apenas carências nas pessoas de baixa escolaridade, a Educação Popular prosseguiu, afirmando os saberes das populações oprimidas, a solidariedade que criava redes de colaboração e reconhecendo nesses grupos a potência e a força para romper com as tradições excludentes que se perpetuavam na sociedade e nos sistemas de ensino.

A Constituição de 1988 marca uma nova etapa da vida brasileira concedendo à educação um lugar distinto daquele subordinado à lógica da segurança nacional autoritária. O artigo 205 traz uma concepção de educação que dialoga com a tradição emancipatória: A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Nessa perspectiva, a educação é um valor em si mesma, articulando as dimensões da vida subjetiva, cidadã e produtiva. Também, são reconhecidos tanto a responsabilidade do Estado como o papel da sociedade na sua promoção.

Políticas para a EJA

Apesar do elevado número de adultos analfabetos e de baixa escolaridade no país, a EJA nunca havia merecido políticas públicas constitucionais de financiamento e apoio pedagógico. Apenas no início do século XXI foram estendidos a estudantes e turmas da EJA benefícios que há muito atendiam aos demais estudantes da educação básica: financiamento pelo número de matrículas (apesar do fator 0,8), livros específicos do Programa Nacional de Livro Didático (PNLD), alimentação e transporte. Nos anos 2000, as matrículas em EJA cresceram de 3,8 milhões em 2001 para 5,6 milhões em 2006. Depois disso, elas decaíram ano a ano. Entre 2018 e 2022, diminuíram 21,8%, chegando a 2,8 milhões. 

O Brasil vive um processo em que parte significativa da população adulta não concluiu a educação básica formal, enquanto se registra a queda do número de matrículas e a crescente participação de pessoas jovens. Em 2022, quase 400 mil jovens migraram do chamado ensino regular para turmas de EJA. O fenômeno está sendo chamado de “juvenilização” da modalidade (gráfico acima). 

Estão em curso estudos para compreender essa dinâmica complexa que implica decisões dos sistemas de ensino, que excluem estudantes com baixa renda e reduzem turmas da EJA, assim como pesam as dinâmicas do mercado de trabalho, as motivações pessoais e outros fatores. Além disso, as turmas de EJA nem sempre encontram escolas dispostas a compartilhar seus espaços e recursos.

O Plano Nacional de Educação 2014-2024 está prestes a se encerrar enquanto duas das três metas dedicadas à EJA enfrentam imensas dificuldades. A meta 8 diz respeito à equidade: propõe que as populações de 18 a 29 anos do campo, do grupo mais pobre e da região de menor escolaridade alcancem 12 anos de estudo, e que jovens brancos e negros tenham a mesma escolaridade no final do período. Embora haja crescimento em todos os indicadores, as metas não serão alcançadas no prazo. Em 2020, a escolaridade dos jovens de 18 a 29 anos que integram o grupo dos 25% mais pobres era pouco maior que a metade da meta (7,9 anos). 

A meta 9 pretende ampliar a alfabetização da população de 15 anos ou mais para 93,5% e reduzir o analfabetismo funcional em 50%. Em 2021, o Brasil registrava a taxa de alfabetização em 95%, mas havia desigualdades: populações do Nordeste, do campo, afrodescendentes e o grupo mais pobre ainda não haviam alcançado a meta. O indicador do analfabetismo funcional aponta avanços, mas insuficientes para a redução projetada. Já a meta 10, que propõe a educação de jovens e adultos integrada à educação profissional, recuou: em 2012
apenas 2,8% das matrículas atendiam ao requisito e em 2021 a proporção ficou reduzida a 2,2%. O que era ruim ficou péssimo…

Os desafios não são apenas para o engajamento dos governos e das pessoas nas ofertas de EJA. A própria modalidade enfrenta uma transição. A partir do ano 2000, foi registrada maior ênfase em uma transformação nas políticas educativas em todo o mundo. O final do século XX fortaleceu as políticas neoliberais, e essas transformações alcançaram a educação. É simbólica a entrada da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) na arena educacional ao instituir o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa). Os resultados do Pisa se tornaram um parâmetro no mundo globalizado e criaram rankings que qualificam os países nórdicos e asiáticos como exemplos para as práticas educacionais, desprezando suas distintas constituições políticas e sociais.

A educação passou a ser avaliada em função de sua contribuição para o desenvolvimento econômico com base nos valores neoliberais, como o empreendedorismo, a competição, o individualismo, que se tornaram a métrica para as práticas educacionais. Publicações da Unesco desse período traziam como valores a diversidade das dimensões humanas: aprender, ser, viver, conviver. A perspectiva era fortalecer o papel da educação na construção de sociedades mais justas, inclusivas e democráticas. Não é essa a visão neoliberal. A frase célebre “não há outro mundo possível” solapa as motivações que faziam da educação um caminho de transformação.

Educação ao longo da vida, educação popular e EJA

Nesse cenário cresce a proposição da educação ao longo da vida como uma proposta para orientar diferentes mecanismos formais, não formais e informais da educação a promoverem um conjunto de valores na perspectiva de maior empregabilidade, iniciativa e competitividade. Ao longo do século XXI avança a instrumentalização das práticas educativas para maior adaptação das pessoas às regras atuais de funcionamento da vida política, social e econômica. 

Este talvez seja o principal desafio para as diferentes formas da Educação de Jovens e Adultos: será possível sustentar uma formação humana que, com base na incompletude e na vocação de “ser mais”, busque transformar o ambiente em que vivemos para torná-lo mais adequado a uma vida digna para todos? Ou será necessário abandonar as possibilidades de transformação das práticas sociais, políticas e econômicas para buscar a empregabilidade, o empoderamento pessoal, o empreendedorismo e outras iniciativas que garantam um lugar nesta corrida de todos contra todos? Educação e aprendizagem são sinônimos neste dilema?

Assim, em tempos de velocidade nas transformações políticas econômicas e sociais, os processos de exclusão também se aceleram e os avanços tecnológicos ameaçam as formas tradicionais de trabalho, ampliando os números de subempregados, trabalhadores precarizados, pessoas sem rendimentos e desalentados. Esses são, em grande parte, os sujeitos da EJA. Que educação faz sentido neste instante? 

Perspectivas

A educação de pessoas adultas ocupa a agenda mundial tanto pelos preocupantes processos de exclusão, frutos da globalização, com o aumento das desigualdades e da pobreza, como também pela mobilização de organizações que reivindicam o reconhecimento dos direitos e compromissos políticos para superar exclusões. 

O Brasil, que tem a importante contribuição dos princípios e das práticas da educação popular, integra o debate mundial e abrigou, em 2009, em Belém (PA), a VI Conferência Internacional de Educação de Adultos (Confintea VI), organizada pela Unesco. Iniciado em 1949 na Dinamarca, a cada doze anos é realizado um encontro mundial para avaliar avanços e desafios na educação de adultos.

Em setembro de 2022, a VII Confintea, em Marrakech (Marrocos), contou com a participação de mais de 140 países. Agora, no continente africano, a Conferência quer fortalecer os compromissos de estados, governos e sociedades na garantia dos direitos das populações adultas a partir da realização dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. 

Embora otimista, o Marco de Ação de Marrakech traz alertas: destaca-se a consciência das rupturas que as inovações tecnológicas impõem ao mundo e seus impactos na vida comum. O documento final da VII Confintea alerta para as ameaças decorrentes do fanatismo e do extremismo, que têm minado a confiança na ciência e aprofundado as desigualdades dentro e entre os países. Reconhece também que a Aprendizagem e Educação de Adultos (AEA) pode se constituir numa resposta política poderosa.

As crises sanitária, econômica, política e social e a emergência ambiental denunciam que outro mundo é necessário, um mundo com o qual sonharam educadores para deter a crescente desumanização que vivemos. Será que nestes tempos desafiadores haverá o encontro criativo da força mobilizadora da educação popular, associada às possibilidades de oferta de Educação de Jovens e Adultos e às promessas da educação ao longo da vida? 

É para isso que trabalham todos que reconhecem na educação a força capaz de transformar as injustiças e iniquidades que alimentam guerras, destruição e opressão nas sociedades e para construir um mundo em que todas as pessoas tenham o direito à educação de qualidade e à vida digna, sem racismo, sexismo e quaisquer formas de violência que hoje nos ameaçam.

André Lázaro
Diretor de Políticas Públicas da Fundação Santillana. 

Para Saber Mais

  • AÇÃO EDUCATIVA. Educação de Jovens e Adultos: insumos, processos e resultados. São Paulo: Ação Educativa, 2014. Disponível em: mod.lk/ed24_fc1. Acesso em: 5 abr. 2023.
  • AÇÃO EDUCATIVA, Cenpec, Instituto Paulo Freire. Em busca de saídas para a crise das políticas públicas de EJA. São Paulo: Movimento pela Base, 2022. Disponível em: mod.lk/ed24_fc2. Acesso em: 5 abr. 2023.
  • ANUÁRIO Brasileiro da Educação Básica 2021. Todos pela Educação. Moderna: São Paulo, 2021.
  • BRASIL. Marco de Referência da Educação Popular para políticas públicas. Secretaria Geral da Presidência. Brasília (DF), 2014. Disponível em: mod.lk/ed24_fc3. Acesso em: 5 abr. 2023.
  • GADOTTI, Moacir. Por uma política nacional de educação popular de jovens e adultos. São Paulo: Moderna/Fundação Santillana, 2014.
  • GADOTTI, Moacir. Educação Popular e Educação ao Longo da Vida. In: BRASIL/MEC/SECADI. Coletânea de textos Confintea Brasil+6: tema central e oficinas temáticas. Brasília: MEC, 2016. pp. 50-69.
  • GOMES, Nilma Lino. Movimento Negro educador. Rio de Janeiro: Vozes, 2017.
  • LIMA, Licínio. A EJA no contexto de uma educação permanente ou ao longo da vida: mais humanos e livres, ou apenas mais competitivos e úteis? In: BRASIL/MEC/SECADI. Coletânea de textos Confintea Brasil+6: tema central e oficinas temáticas. Brasília: MEC, 2016. pp. 15-25.
  • OXFAM. A desigualdade mata. São Paulo, jan. 2022. Disponível em: mod.lk/ed24_fc4. Acesso em: 5 abr. 2023.
  • SANTOS, Robson. Jovens e adultos com baixa escolaridade, oferta de EJA e desigualdades nas chances de conclusão do ensino fundamental e do médio. Cadernos de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais, Brasília, v. 1, pp. 143-174, 2019.
  • UNESCO. Marco de ação de Marrakech: VII Confintea. Brasília, Instituto de Aprendizagem ao Longo da Vida da Unesco (Unesco-UIL)/Unesco no Brasil. 2023. Disponível em mod.lk/ed24_fc5. Acesso em: 5 abr. 2023.
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