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O desafio de não deixar ninguém para trás

Inclusão escolar é um chamamento, um processo de mobilização para mudar estruturas e atitudes colaborativamente, que tem como sustentação a informação e a convivência para estabelecer um novo contrato social da educação.

texto  Liliane Garcez

Em plena pandemia, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) lançou o Relatório Global de Monitoramento da Educação, que avalia o progresso em direção ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 4 (ODS 4) e suas dez metas, bem como outras relacionadas à Educação na Agenda 2030. Ele traz como título Inclusão e Educação, chamando a atenção para todos os excluídos desse direito e para as grandes desigualdades educacionais ainda existentes. O documento — motivado pela convocação feita no ODS 4 de garantir uma educação de qualidade, inclusiva e equitativa, e que foi reforçada na Declaração de Incheon, aprovada em maio de 2017 por mais de 100 países — defende a educação para todos como o principal indutor para o desenvolvimento mundial. Ao identificar as diferentes formas de exclusão, como elas são causadas e o que podemos fazer a respeito, o relatório pode ser considerado um chamado à ação para abrir caminhos a sociedades mais resilientes e igualitárias, nas quais o direito à educação seja vivenciado por todas as pessoas, sem exceção. Essa intenção é traduzida na forma de dez recomendações, das quais destacamos três:

  1. Ampliar a compreensão sobre a educação inclusiva: incluir todos os estudantes, independentemente de sua identidade, seu histórico ou suas habilidades.
  2. Financiar aqueles que foram excluídos: a inclusão não será possível enquanto milhões não tiverem acesso à educação.
  3. Compartilhar conhecimentos e recursos: esta é a única maneira de sustentar uma transição para a inclusão. Atingir a inclusão é um desafio de gestão.

Um pouco de história

Para chegarmos à formulação do ODS 4 e da Declaração de Incheon percorremos um longo caminho de mobilização social no mundo todo. Em nosso país, a definição de educação inclusiva ainda está fortemente associada à educação especial. O movimento de alinhar sua definição à educação para todos tal como estabelecido na Agenda 2030 tem ocorrido concomitantemente à luta pelo direito à educação de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento, transtornos do espectro autista e altas habilidades/superdotação, posto que para enfrentar a cultura do fracasso escolar e o cenário da exclusão escolar esses movimentos precisam se entrelaçar. Para essa parcela da população, o direito à educação é composto de educação comum e educação especial dentro da perspectiva da educação inclusiva, o que deixa marcado que esses termos não são sinônimos.

Para entender como a articulação está posta atualmente, vamos lembrar a ratificação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) e seu Protocolo Facultativo entre os anos 2008 e 2009 como parte da Constituição Federal. Não é demais registrar que o estabelecimento da CDPD pela Organização das Nações Unidas (ONU) foi o coroamento do movimento político das pessoas com deficiência em nosso país e no mundo, fruto da luta social contra a invisibilidade dessas pessoas. Suas diretrizes apontam para o afastamento do modelo biomédico e o alinhamento aos direitos humanos. Em seu artigo 1o está disposto: “Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”. Essa perspectiva social desloca a centralidade do que até então entendíamos como deficiência para a relação entre impedimentos e barreiras, o que é bastante transformador. Como as barreiras só são percebidas na relação, posto que elas ganham concretude ao impedirem a participação das pessoas, só é possível reconhecê-las e removê-las com informação e convivência, direcionando nossos esforços para mudanças a serem feitas no sistema educacional para que ele se torne cada vez mais inclusivo. Alinhado com a Convenção, o Ministério da Educação adota essa concepção formalizada por meio da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI). Assim, pode-se afirmar que desde 2008, ainda que com as rupturas vivenciadas nos últimos anos tal qual apresentado no Balanço do Plano Nacional de Educação, estão sendo realizados apoios técnicos e financeiros no sentido de qualificar as escolas comuns para que elas trabalhem na perspectiva da inclusão, realizando esforços para o cumprimento do Plano Nacional de Educação, lei que define diretrizes, objetivos, metas e estratégias para a manutenção e o desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades.

O que mostram os números hoje

Todo esse movimento reflete em nossos dados educacionais. No resumo técnico referente ao censo escolar da educação básica, elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), está registrado que o número de matrículas de estudantes elegíveis à modalidade da educação especial chegou a 1,5 milhão e que o percentual de matrículas em classes comuns do ensino regular atingiu 94,2%. Dados a se comemorar, certamente. Porém, o Relatório Mundial sobre a Deficiência de 2011 publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que mais de um bilhão de pessoas, ou cerca de 15% da população mundial, estaria vivendo com alguma deficiência; no Brasil estima-se que essa porcentagem varie entre 12% e 15%. Como o número de crianças e adolescentes matriculados em nossas escolas ainda não chega a 3%, há muito a fazer para, no mínimo, equiparar o acesso à escola de crianças e adolescentes com e sem deficiência. 

Além disso, sabemos que estar matriculado não basta. O direito à aprendizagem, quando parcialmente implementado, não é cumprido de fato. Dessa maneira, os investimentos devem ser mantidos e ampliados para que tanto crianças como também adolescentes, jovens e adultos, quaisquer que sejam suas características ou condições, tenham garantida sua escolarização em ambientes inclusivos. Não se trata de reforçar uma cultura de tolerância à diferença, em que se permite às pessoas a participação em espaços específicos. Ao contrário. Para sair do assistencialismo e romper com o capacitismo, é urgente e necessária a estruturação de pressupostos de valorização da pluralidade de corpos, sentidos e pensamentos, (re)criando uma escola que respeite o direito às diferenças humanas e que atue equitativamente, sem deixar ninguém para trás. Vale explicar que capacitismo, segundo a antropóloga Anahi Guedes de Mello, é a discriminação ou violências praticadas contra as pessoas com deficiência; é a atitude preconceituosa que hierarquiza as pessoas em função da adequação de seus corpos a um ideal de beleza e capacidade funcional. 

Para tanto, estabelecemos a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) que vai além da relação entre os diferentes impedimentos físicos, mentais, intelectuais e sensoriais e os apoios específicos para cada um deles, pois estabelece a correspondência entre as barreiras existentes e a acessibilidade. Assim, ao focalizar o direito ao acesso e à participação, nossa legislação fornece instrumentos para escapar da centralidade do laudo como definidor da pessoa com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento, transtornos do espectro autista e altas habilidade/superdotação, e ao mesmo tempo nos convoca a trabalhar dentro da concepção de funcionalidade, compreendendo a pessoa na frente de quaisquer características. Nossos marcos legais, portanto, nos chamam a vivenciar e potencializar o conceito de interseccionalidade para atuar, cotidianamente, dentro da perspectiva social da deficiência. 

Nosso papel diante dos marcos normativos, do capacitismo e dos dados em relação à educação

A institucionalização do Atendimento Educacional Especializado (AEE) pela PNEEPEI, assim como dos demais serviços e apoios da educação especial, deve ser lida e efetivada na perspectiva da educação inclusiva, ou seja, tendo o pleno acesso ao currículo de todas, todos e cada estudante como parte da função social da escola. E não poderia ser diferente! Chamadas pela Agenda 2030 e amparadas por nossa legislação educacional, elaboramos a Base Nacional Comum Curricular, pela qual todas e todos os estudantes têm direito a esse determinado conjunto de conhecimentos. Mas, pelo exposto até aqui, já se pode perceber que toda essa legislação só cumpre seu papel se nós, pessoas que escolhemos ser agentes do direito à educação, trabalharmos colaborativamente para que nossas meninas e nossos meninos vivenciem as habilidades e as competências estabelecidas nacionalmente. Para tanto, ao considerar os saberes e as práticas existentes em nossos contextos escolares e em nossos territórios ampliamos nossas possibilidades de eliminar barreiras relacionais, de comunicação e pedagógicas, entre outras. Neste caminho, a certeza de que todas as pessoas são capazes de aprender é fundamento e motivação para diversificar as estratégias didático-pedagógicas para que nosso fazer não se transforme, ele mesmo, em uma barreira, e também para que equidade e inclusão sejam catalizadoras de possibilidades de encontros de aprendizagem mais significativos.

É aí que a gestão assume papel fundamental

Estar na gestão é assumir o papel de liderança nesse processo de promover encontros e diálogos para assegurar o funcionamento diário da instituição escolar a partir do que foi estabelecido em seu Projeto Político Pedagógico e no currículo dentro da perspectiva inclusiva amplamente sustentada em nossa legislação. A direção e a coordenação pedagógica como partes da equipe escolar, mais do que estabelecer regras que normatizam o funcionamento institucional, devem voltar seus esforços para que o trabalho transcorra de maneira articulada, em sintonia com os princípios de uma educação inclusiva, equitativa e de qualidade. Assim, é papel central da gestão promover e garantir espaços de planejamento conjunto. Não pontualmente, não como algo ocasional, e sim como prática institucional. O encontro deve estar impresso nas expectativas, no hábito, e transbordar nas ações. Afinal, a cultura inclusiva é justamente esse conjunto de valores e atitudes que se configuram, ao mesmo tempo, como nosso princípio e nossa finalidade e que nos movimentam a quebrar as barreiras existentes. Partimos do pressuposto que cultura não é algo que se constrói em um dia, ou seja, uma gestão que trabalha pela e na educação inclusiva deve estar atenta a oportunizar formação em serviço. Uma equipe bem informada, atualizada, está mais apta e ávida a prestar atenção aos materiais que tem à disposição, às políticas públicas, às discussões teóricas e práticas educacionais, e a saber utilizar esses recursos em benefício da escola e da comunidade. Nesse circuito, a gestão articula e dá respostas às demandas. Ao atuar como par complementar de cada docente, apoia a mobilização de aprendizagens com base na pluralidade e nas diversidades presentes em cada turma. Na medida em que são chamadas a participar, as famílias reconhecem a importância de não deixar ninguém de fora e se engajam por entender que suas filhas e seus filhos serão pessoas melhores, o que fortalece a relação de confiança com a escola e ajuda a ressignificar o papel de cada unidade escolar. Crianças, adolescentes, jovens e adultos, por sua vez, são ensinados em um mundo real e desafiados a construir vínculos e diálogos que são motores da aprendizagem. Em outras palavras, estar na gestão é estar atento para conduzir mudanças rumo a uma escola que desconstrua saberes e práticas racistas, machistas e capacitistas de maneira coletiva, organizando uma educação que protege crianças, adolescentes, jovens e adultos e referendando docentes, discentes, famílias e comunidade escolar como coautores dessa mobilização.

Por um novo contrato social da educação

Esse movimento para estabelecer um sistema educacional inclusivo passa pela substituição do “ou” pelo “e”, pois esse “e”, quando significa diálogo, relação, troca de experiência entre pessoas, garante direitos. Para tanto precisamos movimentar algumas chaves de leitura de mundo e da educação:

1. Nosso propósito é a eliminação de barreiras: o foco de nossa mobilização deve ser a percepção e a eliminação das barreiras que se entrepõem entre a pessoa e o direito à educação e à participação plena. As medidas de apoio específico podem e devem ser adotadas como parte da inclusão escolar, para que a participação das pessoas com deficiência, e não só, seja contemplada e valorizada. Para tanto, o fluxo de pensamentos e ações educativas deve partir do geral para o específico a fim de escapar da falsa dicotomia entre educação comum e especial que acabam por estabelecer “puxadinhos” ou condicionantes.
2. O sentido de nossa mobilização é construir uma escola acessível, considerando todas e cada uma das pessoas, pois o processo para melhorar nossos indicadores de acessibilidade passa pela inclusão e pela equidade na e por meio da participação e ampliação de repertório individual e coletivo. A seta é sempre de duplo sentido.
3. Nossa interpretação coloca a pessoa na frente da deficiência: o conceito atual de pessoa com deficiência explicita que as relações sociais devem considerar a diversidade humana como valor positivo. A convivência nos mobiliza a ter um olhar crítico sobre nossas respostas diante de uma situação desafiadora, que saia de uma percepção capacitista.

Como então nos alinharmos diante desse propósito, sentido e interpretação? Considerando as demandas reais, o reconhecimento de habilidades e inteligências das educadoras e dos educadores e a articulação com conceitos e legislações construímos possibilidades de ampliar repertórios individuais e coletivos, que devem passar a fazer parte do Projeto Político Pedagógico de cada unidade escolar. Nunca é demais reafirmar que a colaboração entre pares, por exemplo entre a professora da classe comum e a do Atendimento Educacional Especializado, tem objetivos de complementaridade, não de sobreposição ou de hierarquia. Ambas trabalham, assim como as demais educadoras, para que a aprendizagem em sala de aula com a turma aconteça tendo como princípio a acessibilidade e sua característica relacional a serviço da autonomia de meninas e meninos. Afinal, ninguém pode ficar de fora de nossa intencionalidade pedagógica e de nossas expectativas de aprendizagem. Para nos animar, destacamos o último Relatório da Comissão Internacional sobre os Futuros da Educação, segundo o qual a pedagogia deve ser organizada com base nos princípios de cooperação, colaboração e solidariedade, promovendo capacidades intelectuais, sociais e morais de estudantes para que trabalhem juntos e transformem o mundo com empatia e compaixão, de modo que promovam crescimento e aprendizagem significativos para todas as pessoas. Seu nome não poderia ser mais convidativo: Reimaginar nossos futuros juntos – por um novo contrato social da educação. Ele nos chama a reinventar nossa escola, valorizar nosso fazer e apostar que todas as pessoas, sem exceção, aprendem. Vamos? 

Liliane Garcez  

Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da USP, psicóloga pelo Instituto de Psicologia da USP e administradora pública pela FGV-SP. Desenvolve assessorias, consultorias e formação continuada e em serviço na perspectiva da inclusão como Direito Humano. É idealizadora e articuladora do COLETIVXS. 

Para saber mais

  • CARVALHO, A. P. de. Objetivos do desenvolvimento sustentável. GV-executivo, 14(2), 72, 2015. Disponível em: mod.lk/ed24_ge2. Acesso em: 5 abr. 2023.
  • INEP e Ministério da Educação. Censo Escolar da Educação Básica 2022. Disponível em: mod.lk/ed24_ge8. Acesso em: 5 abr. 2023. 
  • MEC. (2008). Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Disponível em: mod.lk/ed24_ge7. Acesso em: 5 abr. 2023. 
  • UNESCO. (2022). Reimaginar nossos futuros juntos: um novo contrato social para a educação. UNESCO e Fundação SM. Disponível em: mod.lk/ed24_ge9. Acesso em: 5 abr. 2023.
  • UNESCO & Global Education Monitoring Report Team. (2020). Inclusão e educação: todos, sem exceção. Disponível em: mod.lk/ed24_ge1. Acesso em: 5 abr. 2023.
  • UNICEF Brasil. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Disponível em: mod.lk/ed24_ge5. Acesso em: 5 abr. 2023.
  • UNICEF Brasil. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: mod.lk/ed24_ge6. Acesso em: 5 abr. 2023.
  • UNICEF Brasil, Instituto Claro e Cenpec. (2021). Enfrentamento da cultura do fracasso escolar. Disponível em: mod.lk/ed24_ge4. Acesso em: 5 abr. 2023. 
  • WORLD Education Forum, Incheon, Korea R. (2015). Declaração de Incheon: Educação 2030: Rumo a uma Educação de Qualidade Inclusiva e Equitativa e à Educação ao Longo da Vida para Todos (1st ed.). Disponível em: mod.lk/ed24_ge3. Acesso em: 5 abr. 2023. 
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