Educação democrática antirracista: uma escolha política
Não pode haver restrição para a presença da diversidade na escola. Precisamos garantir isso como sociedade.
texto Nilma Lino Gomes
O direito à educação vai além do acesso e da permanência na escola uma vez que diz respeito ao acesso sem distinção de raça, cor, gênero, sexualidade, religião. Trata-se da permanência bem-sucedida de todos e todas que acessam a escola. Por isso, a educação democrática antirracista tem que indagar, descolonizar e transformar o currículo à luz da diversidade social, cultural, racial e de gênero existente no Brasil.
Uma educação democrática e antirracista é eminentemente política e não teme o papel político que a educação ocupa na sociedade. Desmistifica os discursos distorcidos que chamam a postura política da escola de ideologia, esvaziando o próprio conceito de ideologia. Esse tipo de narrativa, por si só, é ideológico por tentar esconder e falsificar a realidade. O valor da democracia permanece em todo lugar que lutemos para que ela exista, não somente na escola.
Ser eminentemente política implica fazer escolhas. Diz respeito a ações. Significa dizer não ao racismo, ao machismo, ao autoritarismo, ao fundamentalismo religioso. Significa assumir como dever pedagógico o ato de desmascarar o conservadorismo na educação que ignora o presente e seus desafios. Ser política significa que a educação quer superar a intolerância, a violência e lutar pela paz. Quer também imprimir uma forma ética de educar na diversidade para que saibamos lidar afirmativamente com as diferenças em conexão com os conteúdos e os componentes curriculares a serem ministrados. Não há como dissociar uma coisa da outra. Ao silenciar sobre seu caráter eminentemente político, a educação se soma às injustiças que queremos superar e não dialoga com a vida estudantil do momento presente, tampouco possibilita a crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos o seu direito de acessar o acervo de conhecimentos a que têm direito.
A escolha política
A escolha política por uma educação democrática e antirracista nos leva a entender que a existência das diferentes presenças na escola pública e privada é um direito cidadão: negras, indígenas, quilombolas, brancas, pessoas com ascendência oriental, imigrantes, pessoas com deficiência, população LGBTQIA+, praticantes das mais diversas religiões e credos. Se todos esses sujeitos, suas escolhas e particularidades se sentirem acolhidos e respeitados na escola, então ela pode ser considerada democrática, laica e antirracista.
Não pode haver restrição para a presença da diversidade na escola. Ao contrário, sua presença deve ser celebrada. Qualquer emissão de opinião e qualquer ato preconceituoso e discriminatório deve ser entendido como uma ofensa grave ao direito à educação, ao direito de ser quem somos, passível de sanção de acordo com a lei; deve ser considerado um entrave à concretização da educação democrática.
O antirracismo articulado com a democracia possibilita uma releitura crítica das relações de poder na sociedade e na escola e desvela os contextos de desigualdade e opressão econômica, social, racial, étnica, de gênero e orientação sexual, os quais são sempre perigosos para o exercício da democracia plena que desejamos e merecemos.
Só avançaremos no entendimento da importância da articulação entre o antirracismo e a democracia na educação quando compreendermos o seu caráter emancipatório para todas e todos. O antirracismo deve produzir posturas de não discriminação, de justiça e de construção da autonomia. Deve ser praticado para romper com as estruturas racistas, superar preconceitos, discriminações e violências e assim ajudar a construir a igualdade racial tão necessária em nosso país. O antirracismo não se reduz apenas aos negros e às negras. Antes, deve ser uma postura política, pedagógica e, ao mesmo tempo, um princípio a ser aprendido e praticado por todos e todas, independentemente de sua raça/cor. Por isso, ele precisa de um chão democrático para existir.
Compreendendo a radicalidade dessa forma de se implementar a educação democrática e antirracista, é possível entender os motivos pelos quais essa proposta tem sido tão atacada pelas forças antidemocráticas uma vez que ela pode ser o caminho emancipatório para reeducar negros e não negros na construção de uma sociedade justa, equânime e livre de preconceitos.
Uma educação democrática não dissocia o direito à educação do direito à diversidade e do dever de sermos antirracistas. Ela entende o potencial emancipatório e libertador do antirracismo, por isso o elege como um dos eixos centrais do currículo, do projeto político pedagógico e da postura de todo e qualquer professor e professora, gestor ou gestora e profissional da instituição escolar.
Introduzir o antirracismo como parte do processo de formação humana do qual a escola é responsável é uma aposta no processo de reeducação das novas gerações, mas para reeducar os mais jovens é necessário que o mundo adulto viva o mesmo processo. Por isso, esse é um processo simultâneo, que implica aprender juntos, lutarmos juntos contra as históricas relações de poder que produzem e reproduzem desigualdades.
Articular democracia e antirracismo na educação é uma proposta que veio de fora para dentro, das lutas sociais por emancipação. Trata-se de um conhecimento forjado nas lutas e construído pelo movimento negro educador com o qual aprendemos a combater o racismo e a construir a democracia para todas as pessoas.
O movimento negro educador
O movimento negro educador tem reeducado a sociedade brasileira, o Estado e as instituições sociais — dentre elas a escola — de que o combate ao racismo tem que fazer parte do nosso clamor por justiça social, pelos direitos humanos, por uma economia justa, por uma remuneração digna aos trabalhadores e às trabalhadoras, por uma política mais ética, por uma vida com direitos e sem violência. A educação, aos poucos, vem acolhendo e aprendendo com as lutas por emancipação desenvolvidas não só pelo movimento negro, mas também por outros movimentos sociais e tem promovido algumas mudanças. A educação também aprende.
No seu histórico de combate ao racismo, o movimento negro tem ensinado à sociedade brasileira que a articulação entre democracia e antirracismo exige mudanças estruturais e a construção de novas práticas e políticas. Não adianta apenas nos condoermos diante dos terríveis e insistentes atos de racismo existentes na sociedade e na escola e permanecermos na inércia racial. As ações afirmativas demandadas por esse movimento social, a partir do início dos anos 2000, têm sido paulatinamente implementadas pelos setores público e privado. Elas são um bom exemplo de como é possível agir de forma incisiva e democrática e, ao mesmo tempo, colocar em prática o antirracismo. Tais políticas têm garantido mais direitos aos pobres, aos negros e às negras, às mulheres, às pessoas do campo, aos indígenas, à população LGBTQIA+ e às pessoas com deficiência.
Trilhar esse caminho é uma escolha pedagógica e política potente capaz de reatualizar e ressignificar o direito à educação, mas muitos ainda não aprenderam essa lição e outros não querem aprender por se tratar de um aprendizado emancipatório que demanda mudança de posição. Realizar um percurso pessoal e social de mudança face às injustiças promovidas pelo racismo exige disposição e compromisso para um aprendizado conjunto e emancipatório, urge um movimento em nova direção, uma tomada de posição diante do que se sabe, vê e sente.
Esperamos que, com a retomada dos tempos democráticos que está por vir, a articulação entre democracia e antirracismo não seja somente uma escolha, mas sim um dever constitucional, uma postura ética e cidadã exigida de toda e qualquer instituição social e educativa. Que seja uma das formas de reconstruir e transformar o nosso país para que todas as pessoas nele se reconheçam e o reconheçam como seu.
Nilma Lino Gomes é professora titular emérita da UFMG. Consultora da Fundação Santillana para o Setor de Políticas Antirracistas.