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Vamos falar de racismo?

Uma escola pública e outra privada mostram por que construir uma educação antirracista muda tudo na escola.

texto Ricardo Prado

O Brasil foi o país do continente americano que mais recebeu pessoas escravizadas da África: estima-se que cerca de quatro milhões foram trazidas para cá entre os séculos XVI e XIX, aproximadamente um terço do total de habitantes da então colônia estavam privados de sua liberdade. O Brasil também foi o último país do continente a abolir a escravidão, em 13 de maio de 1888, e sem qualquer indenização ou apoio aos libertos. Uma multidão de ex-escravizados se viu, de um dia para o outro, sem fonte de trabalho nem renda e com nenhuma perspectiva de ascensão social, já que a educação era negada à população negra. 

A desigualdade entre nós assombra: o 1% mais rico concentra 28,3% da renda
total do país.

O resultado de quatro séculos de sistema escravista foi que o país se tornaria um dos países mais desiguais do mundo. Segundo relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Humano publicado em 2019, o Brasil detém a segunda maior concentração de renda dentre mais de 180 países, perdendo apenas para o Catar. Colocada em termos percentuais, a desigualdade de renda entre nós assombra: o 1% mais rico concentra 28,3% da renda total do país.

Aristóteles e a Índia

Ao longo do século passado, outros países viram um fosso social se abrir entre os mais ricos e os mais pobres e buscaram criar, por meio de políticas públicas, mecanismos para corrigir distorções de caráter histórico. Para isso, foram buscar inspiração em um preceito do filósofo grego Aristóteles, que, ao refletir sobre a arte da política, observava a necessidade de a sociedade criar meios para diminuir as diferenças entre os cidadãos, preservando-se alguma forma de harmonia social. Para isso, recomendava: “Devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade”.  

Em 1949, a Índia foi o primeiro país da era moderna a implantar a política de cotas para enfrentar as diferenças sociais entre sua população, especialmente os dalits (“os intocáveis”), a casta de menor prestígio social da sociedade hindu. Esse segmento se via privado de qualquer perspectiva de ascensão social dentro do rígido esquema de divisão por castas vigente naquele país. Para inseri-los na sociedade, foi criada uma lei tornando obrigatória a oferta de cotas para a casta dos dalits em todos os serviços públicos, incluindo as universidades. Com isso, se em 1950 apenas 1% dos “intocáveis” tinha nível superior, em 2005 os dalits respondiam por 12% das matrículas.

Outro passo nas políticas afirmativas contemporâneas aconteceu na década de 1970, quando a pressão do movimento negro nos Estados Unidos fez com que as principais universidades começassem a adotar sistemas de cotas. Em 2012, um dos beneficiários desse sistema, Barack Obama, tomou posse como presidente dos Estados Unidos. 

As cotas no Brasil

Ainda em 2012 foi promulgada no Brasil a Lei n. 12.711, conhecida como Lei de Cotas. Ao longo de duas décadas de vigência, essa lei alterou profundamente o cenário das universidades brasileiras. Um levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) constatou que o percentual de ingressos por meio de vagas reservadas passou de 13% em 2012, ano de aprovação da lei, para mais de 39% em 2017. Outras duas leis foram importantes para a reparação histórica do racismo e do colonialismo: a Lei n. 10.639, em 2003, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira na Educação Básica, e a Lei n. 11.645, de 2008, que incluiu a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura dos povos originários. 

“A política de ações afirmativas no Brasil tem o movimento negro brasileiro como protagonista. É importante dizer isso porque nem sempre as pessoas têm esse conhecimento”, observa Natalino Neves da Silva, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador associado do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Étnico-Raciais e Ações Afirmativas (Neraa). “Alguns estudiosos, sobretudo do campo da história, vão tentar compreender esse espectro do movimento negro por meio de ciclos. Há um ciclo que traz a rebelião, com a questão do quilombo, como foi estudado pelo Clóvis Moura. Depois, acontece a Frente Negra Brasileira, no período pós-abolição. São ciclos de protesto e de atuação desse movimento, que vão desaguar, na década de 1970, na constituição do MNU, o Movimento Negro Unificado”, explica. 

Outro marco nessa trajetória seria a Constituição de 1988, na qual o racismo foi configurado como crime, destacando o papel de alguns intelectuais negros no ambiente universitário. “Nas décadas de 1980 e 90, os trabalhos de Beatriz do Nascimento e Lélia Gonzalez, por exemplo, já davam conta de demonstrar que para entendermos a complexidade do fenômeno da desigualdade, sobretudo no campo da escola, seria necessário estudar não só a questão da classe social, mas também as questões de raça e de gênero. Esses atores políticos do movimento negro farão, ao longo da década de 90, com que o Estado brasileiro incorpore essa demanda. Por exemplo, Fernando Henrique Cardoso foi o primeiro presidente da República a reconhecer que o Brasil é um país racista, e isso aconteceu por volta de 1994”, pontua Natalino.

E o que caracterizaria o “racismo à brasileira”? “Como dizem os estudos de Florestan Fernandes, é aquele que nega e afirma ao mesmo tempo. Então, se você perguntar ‘você é racista?’, a pessoa diz ‘não, eu não sou racista’. E você conhece alguém racista? ‘Ah, conheço, inclusive a minha vizinha é racista’. Ele vai se configurando nessa negação e afirmação. A gente acredita que não é, mas conhece quem é”, exemplifica Natalino.

Papo cabelo

A Escola Municipal Anne Frank está localizada no bairro Confisco, quase na divisa de Belo Horizonte com o município vizinho de Contagem. O prédio era uma antiga fazenda, que seria ocupada por integrantes de um acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) nos anos 1980, sendo finalmente encampada pelo município, que levaria até o bairro os primeiros equipamentos públicos, dentre eles a escola. 

Muito antes dos projetos de educação antirracista como conhecemos atualmente, a escola Anne Frank havia criado o seu próprio modelo, sinalizando uma postura mais ativa dos educadores em relação ao racismo estrutural brasileiro. Em 2012, mesmo ano em que as cotas foram declaradas constitucionais pelo STF, os gestores da escola promoveram no Dia das Crianças o primeiro Anne Frank Fashion Day com o objetivo de melhorar a autoestima dos estudantes e lidar com alguns casos de racismo. Conforme conta Kátia Mendes, coordenadora pedagógica da Educação Infantil da escola, “queríamos que as crianças disseminassem a sua beleza, o seu jeito, que aceitassem a sua negritude, o seu cabelo, sua condição financeira; enfim, que se aceitassem como são”. 

Com vários docentes participando de cursos sobre relações étnico-raciais, novas ideias e propostas surgiram, como a realização do evento Papo Cabelo. “No Dia da Consciência Negra, reunimos pessoas da comunidade que trabalham com africanidade e ancestralidade. Aí eles fazem oficinas de tranças, e tudo termina com um desfile do Cabelo Afro”, relata a professora.  

A evolução natural dessas ações pioneiras aconteceria com a criação do Projeto Pertencimento, que, em 2022, venceu o 8o Prêmio Educar com Equidade Racial e de Gênero, realizado pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), na categoria Gestão com Equidade e Antirracista. O projeto integra diversas ações com o mesmo objetivo: fazer com que os estudantes e suas famílias se sintam pertencentes ao bairro, à comunidade e aos valores compartilhados, por exemplo a valorização da estética relacionada à negritude. 

Nesse processo, os livros desempenharam um importante papel. Em 2019, a escola recebeu vouchers para a compra de um acervo de livros durante a Feira do Livro de Belo Horizonte. A montagem desse acervo teve como critério de seleção a temática da educação antirracista e histórias para crianças e jovens que valorizassem a cultura e a herança africana e indígena. O resultado foi o projeto Maleta Viajante, que circula entre as turmas de Educação Infantil, para que as crianças escolham histórias e as levem para suas casas, para serem lidas com as famílias. Com esse viés na escolha das histórias, o efeito multiplicador dessa ação fica evidente. 

Agora que o Projeto Pertencimento faz parte do projeto político pedagógico da escola, os frutos desse trabalho consistente e contínuo já são evidentes. “Eu percebo essa mudança. Hoje em dia nós temos alunas que vêm com seus cabelos afro, com as suas maquiagens, com as suas tranças…”, comparando com a resistência encontrada em algumas famílias lá atrás, quando o primeiro Papo Cabelo foi criado. “Naquela época ainda havia a coisa da branquitude, das meninas quererem ter o cabelo liso”, comenta a coordenadora Kátia.

Uma experiência diversa

Em um outro contexto socioeconômico, e representando um movimento mais recente das escolas baseado em uma visão mais inclusiva e diversa, há o exemplo do projeto antirracista da Escola Vera Cruz, uma das instituições educacionais privadas mais conceituadas na capital paulista. 

Localizada em um bairro de classe média alta e prestes a completar 60 anos, o Vera Cruz passou por uma profunda reavaliação em 2019. O movimento é resultado de uma ação conjunta da direção com a Organização de Pais Solidários (OPS) em um momento em que o mercado das escolas de elite passava por transformações, com a aquisição de escolas por grupos de investimento e o boom do ensino bilíngue. Pais, professores e direção refletiram sobre o que gostariam de manter e o que gostariam de mudar na escola. Houve duas unanimidades: todos concordavam que a proposta humanista, democrática e inclusiva já praticada pela escola deveria permanecer. Sobre o que deveria mudar, todos cobraram mais diversidade. “Era a necessidade de sair da bolha: todo mundo muito parecido, da mesma classe social, majoritariamente branco, isso precisava mudar”, lembra Regina Scarpa, diretora pedagógica do Vera Cruz.

O primeiro passo foi criar um grupo para estudar o tema. Aos poucos a compreensão do racismo estrutural e de suas múltiplas presenças, sutis ou explícitas, ganhou corações e mentes e o Projeto para Relações Étnico-Raciais ganhou sua forma definitiva em 2021, depois de um ano de fase experimental: a cada ano, duas bolsas integrais são concedidas a crianças negras ou indígenas para cada nova turma de G5, a porta de entrada dos estudantes na Educação Infantil do Vera Cruz. São dezoito bolsas anuais garantidas até o fim do Ensino Médio, incluindo material didático, uniforme, estudo do meio e um auxílio-permanência para transporte.

Cláudia Alberto fez parte da primeira leva de famílias beneficiadas pelo projeto. Soube dele por fazer parte de um movimento de militância negra e foi incentivada a procurar a Escola Vera Cruz, que fica próxima ao seu trabalho, depois que a diretora da Emei onde sua filha Milena estudava, no mesmo bairro, a incentivou. “Se o Vera está se propondo a fazer, muito provavelmente vai ser bem-feito”, conta Cláudia. Ao seu lado, Regina explica que os estudantes de Pedagogia do Instituto Vera Cruz fazem estágio naquela escola – daí a boa referência. 

Ao chegar no quarto ano de projeto, a diversidade começa a ser vista: já são 102 alunos negros e dois indígenas na escola. São apenas 6% dos 1.700 alunos da instituição, mas suficiente para romper a tal bolha. Milena, por exemplo, está muito bem adaptada e Cláudia dá conta disso contando o que ouviu recentemente dela: quando crescer, quer ser “professora do Vera”. 

Rever pontos para avançar

Do lado de gestores e professores, o desafio criado ao se colocar a lupa das relações étnico-raciais é complexo, implicando repensar práticas e materiais, do currículo ao acervo da biblioteca, do material didático ao uso de expressões corriqueiras, como “criado-mudo” em vez de mesa de cabeceira, já que a expressão remonta aos tempos em que havia o escravizado de quarto, que deveria permanecer calado. 

Para dar sustentação e segurança à equipe, a Escola Vera Cruz trouxe especialistas em educação e na temática antirracista, como a filósofa Sueli Carneiro, o atual ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida, a historiadora Lília Schwarcz e o educador Fernando Almeida. Foi necessário, por exemplo, rever o material didático e os autores trabalhados, já que um dos efeitos do letramento racial é despertar para o racismo científico, aquele que, por exemplo, identifica o nascimento da filosofia na Grécia, ignorando que ela já era praticada no Egito. Regina exemplifica com a própria formação: “Fiz graduação na USP, fiz mestrado, doutorado e o único autor negro que eu estudei foi o Milton Santos. Esse racismo científico nos constitui. Essa perspectiva eurocêntrica da educação e do mundo acadêmico apagou toda uma produção intelectual das pessoas negras, dos pesquisadores negros, que é importantíssima de ser conhecida”. 

Para essa tarefa de rever o currículo por um viés decolonial e antirracista, o novo olhar trazido pelos professores negros que começaram a integrar o corpo docente foi imprescindível. “Ao contratar professores negros conseguimos trazer saberes, perspectivas e conhecimentos diferentes que, sem eles, não alcançaríamos”, observa Regina Scarpa.

Caminho sem volta

Ao escrever e publicar Nuang, caminhos da liberdade (Piraporiando, 2017), a escritora Janine Rodrigues viu que tinha nas mãos mais do que um livro para crianças contando sobre a luta pela liberdade por parte dos negros. Havia ali uma possibilidade de qualificar mais a discussão que sua obra provocava, trabalhando diretamente com os professores os recursos didáticos que o livro permitia acessar. Dessa constatação nasceu a Piraporiando, que, para além de uma editora criada por uma autora, presta assessoria educacional para escolas e redes públicas trabalharem questões como diversidade racial e educação antirracista. 

Nessa trajetória, Janine Rodrigues aprendeu que o segredo é a constância. “É impossível que a gente faça um trabalho numa escola durante um ano e, depois, a direção ache que nunca mais precisa tocar nesse assunto porque no ano anterior fez uma abordagem densa. Isso não acontece, porque a escola é um ser vivo, as pessoas entram, saem, respondem ou reagem ao que está acontecendo no mundo, e esses processos sociais são imprevisíveis”, observa a escritora que atualmente também assina a coluna mensal Escola Diversa no blog Redes Moderna, da editora Moderna. Ao olhar de frente para o racismo estrutural e assumir a proposta de uma educação antirracista, não há mais caminho de volta.


Para saber mais

  • DA Bahia, D. P. do E. (2021). Dicionário de expressões (anti)racistas: e como eliminar as microagressões do cotidiano. Disponível em: mod.lk/ed24_lr1. Acesso em: 10 abr. 2023. 
  • PIRAPORIANDO. Conteúdos e experiências antirracistas, antibullying, antipreconceitos e de promoção da equidade de gênero. Disponível em: mod.lk/ed24_lr2. Acesso em: 10 abr. 2023.
  • RODRIGUES, Janine. Coluna Escola Diversa. Redes Moderna. Disponível em: mod.lk/ed24_lr3. Acesso em: 10 abr. 2023.
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