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Vacina literária

Uma campanha constante para imunizar as crianças contra os perigos do politicamente correto.

Texto Ilan Brenman  | Ilustração Ricardo Davino

A história da invenção da primeira vacina no Ocidente é fascinante, além de ser uma fonte inesgotável de aprendizagem para diversas áreas da atuação humana. Até o final do século XVIII, época da descoberta da primeira vacina no mundo ocidental, doenças transmitidas por vírus e bactérias eram responsáveis por verdadeiras catástrofes humanitárias, milhões e milhões de vidas perdidas por causa de organismos invisíveis aos olhos humanos.

O mundo iria se transformar drasticamente com o trabalho de Edward Jenner, um médico inglês que dedicou sua vida ao estudo da varíola, doença com índices alarmantes de mortalidade e contágio. Antes de Jenner, a China já conhecia e praticava a “variolação”, que era a injeção do líquido extraído de uma crosta da varíola de um indivíduo infectado, na pele de pessoas saudáveis. Com esse procedimento, a doença se manifestava de forma menos agressiva do que o normal, mas, mesmo assim, isso não assegurava a proteção total.

A “variolação” chegou à Europa e Jenner conhecia esse procedimento, mas não estava satisfeito com os seus resultados. Ao se aproximar do fim do século XVIII, o médico inglês mergulhou em pesquisas e observações sobre a varíola até que, um dia, ele resolveu investigar uma crença popular entre os camponeses. Tal crença afirmava que as pessoas que trabalhavam com a ordenha de vacas doentes desenvolviam feridas parecidas com as dos animais, mas, ao mesmo tempo, ficavam protegidas da varíola humana. Essa doença ficou conhecida como “cowpox”, ou varíola das vacas.

Jenner observou atentamente os camponeses e tomou uma decisão ousada, perigosa e que revolucionaria o mundo. Em uma manhã de 1796, o médico decidiu colher o líquido contaminado com a “cowpox” das feridas de uma ordenhadora chamada Sarah Nelmes. Com o material contaminado em mãos, ele fez algo inimaginável nos dias atuais, pegou um menino saudável de oito anos, chamado James Philipps, e inoculou o líquido contaminado no organismo do garoto. Você acha que terminou? Ledo engano! A ciência é muitas vezes mais emocionante que a Netflix! 

Depois de seis semanas, James estava ótimo, serelepe como qualquer criança de sua idade, quando o doutor Jenner novamente entrou em ação; imaginem a cara do menino ao ver o homem da injeção se aproximando! O médico estava com o material contaminado de varíola humana e inoculou-o no menino plenamente saudável. 

Eu não sei se doutor Edward Jenner era religioso ou não, mas imagino ele torcendo ou rezando muito para a teoria dele dar certo: a vida de um menino estava em suas mãos! Para alegria de todos, principalmente do pequeno James, ele não manifestou nenhum sintoma da varíola. Estava criada a primeira vacina do mundo! Aliás, a palavra vacina vem da palavra vacca em latim que estava relacionado a doença das vacas, lembra da “cowpox”? Quem imaginaria que a vaca daria origem ao nome de um dos procedimentos mais revolucionários da humanidade.

A história da vacinação tem outros vários heróis, como, por exemplo, o famoso cientista Louis Pasteur que, em 1885, começou seus estudos sobre a raiva, doença mortal contraída através da mordida de animais infectados. E novamente uma criança entra em cena para mudar radicalmente o status de condenados à morte daqueles que se infectavam com a raiva. 

No dia 4 de julho de 1885, um menino de nove anos chamado Joseph Meister é convocado para ir comprar fermento para o estabelecimento do pai, um padeiro francês. O menino sai correndo e vai até vila de Maisongouthe. Ao chegar, ele é atacado impiedosamente pelo cachorro raivoso de um taberneiro. Foram 14 mordidas! Principalmente nas pernas e no braço direito do menino. O dono do cachorro e alguns passantes viram a cena e foram salvar o pequeno Joseph, lavaram seus ferimentos e deram-lhe água para beber. Logo após os primeiros socorros, deixaram o menino voltar para casa sozinho.  

O corajoso menino começou seu regresso e a cada dez metros tinha que parar para descansar. Finalmente chegou em casa, para o alívio de sua mãe, desesperada com a demora dele. Ao vê-lo, ela entrou novamente em desespero, pois a aparência de Joseph estava terrível. Ela saiu correndo e o levou para o médico da vila, que ao pousar os olhos nos ferimentos, já imaginou que o menino tivesse contraído raiva, o que significava uma sentença de morte. O médico então se lembrou dos estudos de Pasteur em Paris com animais raivosos e comentou com a mãe do menino.

Vendo a piora do filho, a mãe decidiu ir a Paris e com muita dificuldade encontrou o laboratório do famoso cientista. Pasteur levou um grande susto ao ver o pequeno Joseph, a morte era inevitável. Por isso, decidiu, assim como fez seu colega inglês Edward Jenner, fazer algo ousado. Ele aplicou no menino uma vacina experimentada somente em animais… E deu certo! Joseph Meister foi o primeiro ser humano a ser imunizado contra a raiva. Ele depois voltou para casa feliz e saudável.

Você deve estar pensando “mas o que tudo isso tem a ver com a literatura?” Eu prometo que chegarei lá, mas antes um pouco mais de história. 

Tanto Jenner quanto Pasteur, cientistas heróis, conheciam histórias da Antiguidade que já flertavam com o processo de imunização. Eram lendas e fatos que deram, sem sombra de dúvida, subsídio para suas pesquisas. Uma dessas histórias antigas contava que Mitrídates IV, rei de Pontus, na Ásia Menor, foi responsável pelo assassinato do próprio pai e que, ao assumir o trono, ficou com medo de também ser assassinado, principalmente por envenenamento. Então, ele começou um procedimento para se imunizar contra os venenos. A lenda conta que Mitríades IV tomou doses pequenas e não mortais de cada veneno conhecido e percebeu que seu organismo ficava protegido de doses letais.

Precisamos criar anticorpos simbólicos que ajudem a criança a combater e compreender
a complexidade da vida.

ILAN BRENMAN

Na Roma Antiga, um médico chamado de Celso cunhou o termo Antidotum Mithridatium para o procedimento de proteção contra envenenamentos, ou seja, a exposição a uma pequena dose de substância que, ao longo do tempo, nos deixaria imune a doses grandes dessa mesma substância. 

Como é interessante ver o elo entre o conhecimento passado e o atual. Às vezes, o conhecimento se desvela, mas não há tecnologia ou demanda suficiente para desenvolvê-lo, precisamos de anos, décadas, séculos e até mesmo milênios para um determinado conhecimento se concretizar em resultados inequívocos e revolucionários.

Tudo que escrevi até agora faz referência ao mundo fisiológico do ser humano, mas nós, os homo sapiens, também temos uma dimensão simbólica. Somos criadores de narrativas, somos fofoqueiros natos! Não imagino uma vaca falando para outra sobre a vida fútil de uma terceira. Nossa mente extrapola nosso próprio corpo, sonhamos e criamos mundos, sonhamos e destruímos mundos, a fantasia é o motor da humanidade, para o bem e para o mal. E o interessante é que a dimensão simbólica do ser humano também pode adoecer, enfraquecer, ser envenenada, perder o vigor e a capacidade de lidar com os agentes estressantes da nossa vida. E haja agentes estressantes nas nossas vidas!

Olhando para o passado, assim como cientistas inteligentes o fizeram (e alguns ainda o fazem), percebemos como os nossos ancestrais lidavam com o enfraquecimento, o descontrole, a confusão, o adoecimento da psique humana: tristeza profunda, angústia existencial, ciúme, raiva etc. Eles usavam um método muito parecido com a mitridização: vacinas contra os males da alma. Ou seja, para que nossa mente possa enfrentar um ambiente interno e externo hostil, ele precisa de doses pequenas e seguras desses mesmos elementos para que possamos enfrentá-los. Precisamos criar anticorpos simbólicos que ajudem as crianças, principalmente, a combaterem e compreenderem os percalços, os sofrimentos e a complexidade da vida. 

E qual seria o elemento principal dessa vacina protetora da mente humana: histórias. Mas assim como as vacinas tradicionais carregam dentro delas parte do problema (vírus/bactérias), tal vacina literária precisa carregar dentro dela uma parcela daquilo que queremos combater, ou seja, histórias que falem não só do lado bom das coisas, mas que mostrem também o lado sombrio. Não é à toa que histórias de terror são um hit há séculos entre crianças e jovens, já que o terror não está somente fora da nossa mente, mas também dentro dela.

Tudo isso parece fazer sentido? Imagino que sim. Quando éramos crianças, ouvíamos histórias de terror, aventura, suspense, amor e tristeza. Bruxas, ogros, mortes inesperadas, finais tristes (lembra do soldadinho de chumbo do Andersen?), ato de heroísmo, sacrifícios, amor intenso, solidão intensa etc. Essas histórias fortaleceram nossa mente, nos ensinaram que a vida não é fácil, mas, mesmo assim, vale a pena lutar por ela. Essas histórias nos prepararam para os confrontos com as bruxas nossas de cada dia, que são a representação suprema da dificuldade e dos obstáculos que a vida nos impõe. Essas histórias nos prepararam para o confronto com a morte e com a felicidade.

Porém, hoje parece que as coisas mudaram um pouco. Faz alguns anos que existe um movimento crescente e preocupante que vem fragilizando e não fortalecendo a mente infantil. São ideias que até podem ter nascido nas melhores das intenções, mas que se tornaram uma fonte de destruição dos nossos anticorpos simbólicos. Podemos chamar tais conceitos de histórias politicamente corretas, que são histórias limpinhas, bonitas, perfeitas, sem conflitos e que teoricamente formariam um ser humano melhor, mais bondoso, compreensivo, empático, um exemplo de cidadão! 

As mudanças nas histórias começaram e se intensificaram. Uma verdadeira eugenia literária! Tudo que pode ferir a sensibilidade do leitor, isso claro na ótica dos autoritários do pensamento alheio, daqueles que sabem o que é bom para os outros, mais do que o próprio leitor, é posto em dúvida. A criança é vista como um ser bom por excelência (ninguém nunca presenciou um surto de birra de uma criança em um shopping ou avião?) e as malvadas das histórias corromperiam essa alma angelical. 

Criança é um ser complexo e não simples, ela é boa e má ao mesmo tempo, tem sentimentos altivos e cruéis, e é por isso mesmo que ela necessita de histórias que falem sobre essa complexidade. Achar que ao falarmos só de paz com a criança, ela se tornará pacífica é desconhecer completamente a natureza humana. É isso que estamos fazendo nos últimos tempos, inserindo a paz, a ordem, o previsível nas histórias… E o resultado? Nunca vivemos tantos relatos de indisciplina, desordem afetiva e cognitiva em sala de aula, uma ansiedade coletiva perpassa crianças de diversas faixas etárias. E por que isso ocorre? Porque a criança não está sendo atendida simbolicamente nas suas demandas mais importantes. Estamos fragilizando a infância e tornando-a desprotegida aos agentes estressores da vida interna e externa.

As histórias precisam atender
às crianças em suas necessidades mais importantes: lidar com o desconhecido e com aquilo que os adultos evitam falar abertamente.

Perguntem para um grupo de crianças de mais de sete anos que tipo de histórias elas querem ouvir; garanto que a palavra TERROR será a campeã de pedidos. O que isso quer dizer? Que eles são psicopatas? Claro que não! É que ao pedir histórias de terror elas estão querendo (inconscientemente) falar sobre o terror interno de cada uma delas. O monstro mora dentro e não fora do nosso coração e é, exatamente por isso, que devemos falar sobre ele. Só assim ele pode perder a sua força. A melhor forma de colocar a luz nesse lado sombrio é lendo, contando histórias que dialoguem com esse lado obscuro e para o compreendermos e combatermos de forma mais efetiva.

Um dos grandes teóricos do mundo das histórias, Bruno Bettelheim, chamava antigamente essas histórias politicamente corretas de “estórias fora de perigo”, que seriam narrativas que evitavam problemas existenciais. Tais histórias não mencionavam nem a morte e nem o envelhecimento, o tempo não seria um problema para uma criança refletir. Quem realmente acha que a infância não se interessa por esses temas está muito, mas muito, enganado. 

Eu me lembro de uma cena em casa quando minhas meninas eram pequenas. Era um jantar na cozinha, cinco pessoas na mesa: eu, minha esposa, minhas duas meninas e a minha mãe. A caçula de quatro anos olha para a avó e diz, “Vó, você é a mais velha da mesa?”, a avó responde, “Sim, sou.” A minha pequena fala, “Então, você será a primeira a morrer nessa mesa.” A minha mãe leva um pequeno susto, se recupera, dá um sorriso e diz: “sim, acho que sim.” Mas a minha pequena ainda não havia sossegado, “pai, você é mais velho que a mamãe?”, “sim, meu amor.”, respondo. “Então vai morrer depois da vovó.” E assim ela foi matando um por um de acordo com a idade e não se esquecendo dela, que, claro, seria a última a morrer por ser a menor de todos. E você realmente acha que esses assuntos não interessam à infância? 

Para terminar essa reflexão sobre vacinas, imunidades simbólicas, fortalecimento dos afetos e da cognição das nossas crianças, faço minhas as palavras do grande Bruno Betteleheim: “Hoje, como no passado, a tarefa mais importante e também mais difícil na criação de uma criança é ajudá-la a encontrar significado na vida. […]. Fui confrontado com o problema de deduzir quais experiências na vida infantil mais adequadas para promover sua capacidade de encontrar sentido na vida; dotar a vida, em geral, de mais significados. Com respeito a esta tarefa, nada é mais importante que o impacto dos pais e outros que cuidam da criança; em segundo lugar vem nossa herança cultural, quando transmitida à criança de maneira correta. Quando as crianças são novas, é a literatura que canaliza melhor esse tipo de informação”.

O melhor de tudo é que vacina literária não necessita de agulha para aplicação. E tem mais, pais e professores também se imunizam assim que começam a ler ou contar uma história para seus filhos e alunos. Anotem aí: o dia nacional da vacinação literária é qualquer dia, qualquer lugar, qualquer horário. E lembrem-se, a duração do efeito da vacinação literária é para sempre.


Ilan Brenman

é mestre e Doutor em Educação pela
Universidade de São Paulo (USP). É um dos principais escritores de literatura infantil do Brasil, com mais de 60 publicações e mais de 25 menções a prêmios relevantes da literatura (FNLIJ, White Ravens etc.). Atualmente,
é autor exclusivo da Editora Moderna. 

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