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Tudo é inovação?

Usada à exaustão no âmbito educacional nos últimos anos, a palavra precisará buscar origens e caminhos para tentar não se tornar um termo vazio.
Texto Cauê Cardoso Polla

Um discurso que exalta a inovação parece ter invadido o cenário educativo. Hoje, é praticamente impossível não nos depararmos com a palavra nos mais diversos contextos: educação inovadora, escola inovadora, inovação digital, método inovador, gestão inovadora… A repetição incessante desses termos acaba, muitas vezes, por esvaziar o seu sentido. Expressões como “educação inovadora” e “método inovador” acabam se tornando slogans acríticos. Refletir sobre o significado da inovação nos ajuda a compreender os sentidos possíveis de uma educação inovadora.  

Como podemos pensar o significado da palavra inovação? Para tal, é preciso pensar o que significa “novo”. Em uma perspectiva atual, utilizamos a palavra “novo” quando nos referimos a moderno, algo que nunca foi usado, algo que apareceu agora e que não havia antes, recente. Na história, a ideia de novo ou novidade costumava ser usada para demarcar um distanciamento em relação a uma época passada. Outra perspectiva para compreendermos o significado é buscar a origem da palavra, seu sentido etimológico. Em latim, novus significava novo, jovem, res novae era uma expressão para dizer coisas novas, principalmente no campo político. Por sua vez, este termo deriva do verbo  grego neao, e este sentido primeiro se refere ao trabalho que o agricultor fazia no terreno para torná-lo mais fértil, técnica que hoje se chama alqueive. Ou seja: para renovar a sua plantação, primeiro o solo era deixado em repouso e, depois de um tempo trabalhado para receber uma nova cultura, há algo que permanece e algo que se modifica.  

Assim, não há nada que seja absolutamente novo ou inovador, pois há sempre algo anterior que originou o novo. Do mesmo modo, na educação não há nada que não tenha sua origem na tradição, seja como um desenvolvimento, um desdobramento ou uma contestação. 

As inovações na história da educação: uma constante

A história da educação, das práticas educativas, é marcada por uma série de inovações. Para nós, nada é mais simples do que “abrir o caderno e anotar”. Mas o próprio uso do caderno só foi possível por conta de uma série de inovações. Para fazer suas anotações, os estudantes da região mesopotâmica, por volta do século VII a. C., utilizavam tabuinhas de cerâmica; segue-se, na Grécia e Roma antigas, o uso da tabuinha de cera, que pode ser reutilizada (a cerâmica, depois de seca, não pode ser modificada). Hoje temos os mais diversos tipos de cadernos e também tablets e laptops que estudantes podem usar em sala para “anotar”. O surgimento da lousa, algo tão comum como a conhecemos hoje, para ser escrita com giz ou caneta, ou mesmo a lousa digital, só foi aparecer no século XVIII. Como era antes? 

Não só o mundo material da educação passou por inovações. Também os discursos pedagógicos e sobre educação, em suas diferentes formas, mostram como é uma constante na história o conflito entre o ‘tradicional’ e o ‘novo’.  Tomemos o exemplo da Atenas clássica no século V a.C.. A educação aristocrática, herdeira da educação guerreira antiga, era o grande paradigma pedagógico. Com o progressivo surgimento da democracia e da democratização da educação, houve uma forte reação contra a forma antiga de educar, que era vista como ruim e decadente. O grande comediógrafo grego Aristófanes, em uma de suas comédias, As Nuvens, descreve esse conflito de modo magistral. Por um lado, há aqueles que defendem os “valores antigos”, que se posicionam a favor dos valores aristocráticos da excelência moral tradicional, do aprendizado de um conhecimento transmitido por gerações, das práticas esportivas nobres; por outro, os que defendem os “novos valores”, pautados por ideias democráticas e de um tipo de filosofia que se inicia com Sócrates. Toda mudança gera uma reação, mas isso não significa que toda mudança seja naturalmente boa. É fundamental que paremos para refletir sobre aquilo que já é muito óbvio e que consideramos natural. O que hoje podemos chamar de tradicional já foi um dia “produto de uma inovação”.

O problema do novo

Os processos educativos são quase tão antigos quanto o surgimento dos primeiros indivíduos. A necessidade de sobreviver impulsionava a transmissão de alguns saberes, por mais elementares que pudessem ser. Podemos imaginar que os primeiros caçadores, quando geravam descendentes, ensinavam a eles a caçar e providenciar comida para sua sobrevivência. Mais tarde, quando a humanidade começou a cultivar os campos e a criar animais para sua alimentação, outros saberes foram criados e transmitidos. Do mesmo modo, com o avanço de formas de civilização que se desprendiam da necessidade de sobrevivência, com o surgimento de linguagens simbólicas e de culturas, outros saberes foram sendo criados e transmitidos. Nesse movimento de passar adiante ou transmitir, diversas questões surgem. O que transmitir? E como? Se eu transmito um saber novo, distinto do que havia antes, eu o faço do mesmo modo, seguindo o mesmo procedimento? Ou novos saberes demandam novos modos de transmissão? 

A educação é fundamental, pois há sempre novas gerações que surgem, que demandam inovações no processo educativo que parecem, muitas vezes, inevitáveis”.
Hannah Arendt

Quando dizemos aqui transmissão, não queremos reduzir o processo educativo a um simples “passar adiante”. O elemento de construção e elaboração por partes daqueles que aprendem algo novo é fundamental, e é a mola propulsora de novas mudanças para novos saberes. Mas é também inegável que muitos saberes aumentam, justapõem-se, interpõem-se, por vezes se agregam a outros, por vezes negam outros. É importante notar, contudo, que neste processo – e aqui as divergências de como ele ocorre são inúmeras – sempre há um algo, um saber, uma técnica, um determinado tipo de conhecimento (aquilo que tão costumeiramente se chama de “conteúdo” de uma disciplina escolar, por exemplo – embora essa expressão seja muito inadequada) que é recuperado ou mantido vivo do passado, e então colocado adiante, ensinado (mostrado) aos novos indivíduos.   

“A educação é fundamental, pois há sempre novas gerações que surgem, que demandam inovações no processo educativo que parecem, muitas vezes, inevitáveis”.

Para Hannah Arendt, importante filósofa do século XX, a educação é fundamental, pois há sempre novas gerações que surgem, que demandam inovações no processo educativo que parecem, muitas vezes, inevitáveis. Esse processo vive sob o signo de uma contradição constante: há um mundo já constituído (embora, é claro, ele nunca esteja “terminado”), mundo este de valores, normas, saberes, uma cultura estabelecida. É nesse mundo que nasce a criança… ora, o que fazemos então? Como preservar a liberdade de existir da criança e suas escolhas em um mundo já constituído? O surgimento de novas gerações é o grande desafio para o processo educativo, e é nessa constante “mudança” que a inovação tem papel fundamental. 

As inovações no século xx

Não há propriamente “inovação”. Mais correto seria falar em inovações, pois cada novo modo de fazer algo, cada nova concepção, tem suas características próprias, isto é, não se inova do mesmo modo. No campo educacional, as inovações podem ser levadas a cabo em diversas dimensões. Há inovações no campo da teoria educacional, das práticas (desde a gestão escolar até a prática docente individual), inovações no campo legal. Aquele discurso que nos referimos acima, de que “é preciso inovar”, parte de uma falsa ideia. Muito se diz que a educação é ainda muito lenta e está atrasada. Este é um preconceito tolo e superficial, pois não considera o verdadeiro caráter da educação. Educar leva tempo. Buscar modos de encurtar esse tempo é muito mais ceder a pressões sociais de modelos econômicos que devem antes ser descontruídos do que obedecidos cegamente. A constante aceleração das mudanças sociais parece demandar modos de educar que se adequem a estas mudanças. Mas a questão de fundo é: essas mudanças são boas?

Mudanças não são “inevitáveis”, mas acontecem. Frente a elas, buscam-se novas formas de agir. Na educação não é diferente, ainda mais por se tratar de um campo em constante mutação. Muito se fala hoje do protagonismo do estudante, e se costuma acreditar que isto é algo novo. Também se enfatiza o papel ativo do aluno na construção do seu próprio conhecimento. Formas didáticas como o estudo do meio estão em alta. Certamente, durante o século XX estas inovações teórico-práticas ganharam corpo. Mas basta olharmos para a história da educação e encontramos, por exemplo, em um autor do século XVI, Michel de Montaigne – que é uma referência explícita de Edgar Morin, um dos apóstolos dos novos modos de pensar a educação – proposições muito similares ao que vemos hoje. Em um pequeno ensaio intitulado Sobre a educação das crianças, Montaigne elabora colocações como esta:

Os professores não param de gritar aos nossos ouvidos, como quem derramasse o conhecimento num funil: nossa tarefa seria apenas repetir o que nos disseram. Gostaria que ele corrigisse essa prática e que desde o início, segundo a capacidade do espírito que tem em mãos, começasse a pô-lo na raia, fazendo-o provar, escolher e discernir as coisas por si mesmo. Ora abrindo-lhe o caminho, ora deixando-o abrir. Não quero que só o professor fale: quero que, quando chegar a vez de seu discípulo, o escute falar. 

É certo que as considerações de Montaigne eram muito sofisticadas e que a prática da época estava longe de ser assim, mas o que fala sobre o conhecimento, o professor e o estudante são muito contemporâneos. Se o conhecimento não é algo que pode ser “derramado” (o que era já uma ideia presente em Platão!), é porque não se trata de encher algo vazio. Ora, não é esta toda a crítica que faz Paulo Freire ao esquema da educação bancária, aquela que considera os alunos como recipientes vazios que apenas recebem passivamente “conteúdos”? Já a relação professor-discípulo não deve ser autoritária, e o professor se mostra muito mais como um guia ou facilitador do que como uma enciclopédia: ele deve levar o aluno a descobrir por si mesmo, a conhecer por si mesmo, a abrir o seu caminho sempre que possível. Além disso, o professor deve escutar o aluno. Ao lermos esse pequeno ensaio, somos levados a reconhecer que, se a prática da época não era “inovadora”, muito do que foi pensado era. 

É certo que as considerações de Montaigne eram muito sofisticadas e que a prática da época estava longe de ser assim, mas o que fala sobre o conhecimento, o professor e o estudante são muito contemporâneos. Se o conhecimento não é algo que pode ser “derramado” (o que era já uma ideia presente em Platão!), é porque não se trata de encher algo vazio. Ora, não é esta toda a crítica que faz Paulo Freire ao esquema da educação bancária, aquela que considera os alunos como recipientes vazios que apenas recebem passivamente “conteúdos”? Já a relação professor-discípulo não deve ser autoritária, e o professor se mostra muito mais como um guia ou facilitador do que como uma enciclopédia: ele deve levar o aluno a descobrir por si mesmo, a conhecer por si mesmo, a abrir o seu caminho sempre que possível. Além disso, o professor deve escutar o aluno. Ao lermos esse pequeno ensaio, somos levados a reconhecer que, se a prática da época não era “inovadora”, muito do que foi pensado era. 

O que é característico do século XX é o surgimento da informática, dos primeiros computadores até os dias correntes. Qualquer inovação nessa área dificilmente encontrará um precedente em épocas anteriores. As novas tecnologias são, certamente, um desafio para a educação. Com o surgimento da internet, o cenário se torna mais e mais complexo. Contudo, algumas considerações são necessárias. Primeiramente, quanto ao caráter de inevitabilidade: “não há volta”, “agora essa é a realidade”, “não há como fugir disso” são frases comuns que ouvimos em relação à tecnologia digital. Embora ela tenha “vindo para ficar”, é fundamental que não esqueçamos que as formas atuais são transitórias, e que novas formas surgirão. Assim, se o ensino for direcionado apenas para as tecnologias de hoje “porque elas são fundamentais para o mercado de trabalho”, corre-se o risco de tornar obsoleta a educação, assim como se tornam obsoletas essas formas tecnológicas. 

Por que não nos preocupávamos tanto em fazer os estudantes entenderem o funcionamento da televisão, da linguagem televisiva, das operações editoriais por trás das imagens que vemos, e hoje a “linguagem da computação” é fundamental e não se pode viver sem conhecê-la, e por isso os estudantes deveriam aprender desde cedo a “programar”? Advogar o uso de computadores e da linguagem computacional na educação sem uma reflexão crítica é um erro. Não se pode ensinar algo só porque aparentemente este algo é “inevitável”, pois daí se perde toda a riqueza de possibilidades que pode se apresentar. 

Olhar para trás, olhar para frente  

A educação é um processo multidimensional. Se ela não acontece apenas na escola, é nela que tem seu espaço privilegiado, e seu maior potencial. Pensar novas formas, propor novos problemas, contestar o que é dado como natural e óbvio é fundamental no processo pedagógico. Quando novas gerações são educadas no conflito crítico com gerações anteriores, o novo acontece. Uma educação com perspectiva de futuro só pode ocorrer se não se apagar todo o passado que não deve pesar como tradição morta, mas como um passado rico de lugares para pensar. Para educar inovando, é fundamental que busquemos em discursos e experiências passadas o solo a partir do qual pensamos e experienciamos o presente. 

Cauê Cardoso Polla
É professor da Faculdade de Educação, no Departamento de Filosofia e Ciências da Educação, da Universidade de São Paulo. 


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