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Diversidade como força motriz do mundo 

Somos muitos, ainda que tão poucos.

Texto: Damaris Silva

Além de um elemento fundamental para impulsionar as reais mudanças na sociedade contemporânea, a diversidade é parte integrante de nossa formação social, política, cultural e econômica. A partir dela, e por meio dela, estão engendradas as reais possibilidades de evolução em todas essas esferas. Especificamente no campo educacional, já é sabido por todos nós a importância da promoção de práticas inclusivas, que culminem na promoção da igualdade. O desafio, porém, é atentar para que esta deixe de ser uma questão periférica em nossas conversas, nossos ideais e em nosso cotidiano. Olhar para a diversidade na educação é uma via de mão única em nosso compromisso contínuo com a formação plena dos estudantes e com a justiça social. 

Chegamos a um momento em que a “boa educação” ou a “educação de qualidade” se tornaram conceitos que, invariavelmente, exigem o olhar atento aos grupos minoritários e marginalizados, às violências diárias que os afetam e à importância do reconhecimento da diversidade como uma riqueza que contribui para o desenvolvimento humano. Como nos diz Paulo Freire em Pedagogia da autonomia: “ensinar é uma especificidade humana”. Para ele, a educação é uma forma de intervenção no mundo baseada no diálogo, na problematização e na conscientização. Em Freire, a educação é uma prática humana que implica o reconhecimento da diversidade, da historicidade e da cultura dos educandos e educadores. Desse modo, a educação deve ser tida como uma prática humanizante e humanizada que envolve dimensões éticas, estéticas, políticas, cognitivas e emancipatórias. Portanto, trazer à educação escolar aspectos que discorram sobre a luta antirracista, por exemplo, é essencial para que a educação para todos seja parte do dia a dia e não seja a exceção ou apenas um projeto isolado. 

Em termos de legislação, vale ressaltar que tais práticas vêm sendo ostensivamente inseridas nas políticas públicas educacionais brasileiras. Relembrando um breve percurso, ocorreu em nossa história recente uma vitória histórica do movimento social negro brasileiro com a aprovação da Lei n. 10.639/2003, que modificou a Lei de Diretrizes e Bases n. 9.394/1996 e tornou obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana em todos os níveis e componentes curriculares da educação. Essa lei é fruto de décadas de lutas e reivindicações que buscam uma educação mais inclusiva, democrática e, consequentemente, antirracista.  

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que define o conjunto de aprendizagens essenciais que todos os estudantes devem desenvolver ao longo da educação básica, estabelece como uma das competências gerais a serem desenvolvidas: “Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade”. O documento reforça a importância da diversidade cultural como um dos princípios norteadores da educação brasileira e destaca a necessidade de abordar as múltiplas culturas presentes em nosso país como pontos necessários à formação do estudante. 

Já com vistas ao cumprimento da Agenda 2030, a Unesco, no papel de agência líder na concepção, na implementação e no monitoramento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, traz no objetivo 4 (ODS 4), “assegurar a educação inclusiva e equitativa de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos”, reconhecendo a extrema importância de todos os esforços, tanto mundiais quanto locais, para a efetivação da garantia do direito à educação de populações em situação de vulnerabilidade, além do objetivo 10, “Reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles”. 

Aqui, traz-se à luz a promoção da inclusão social, o fomento da legislação, políticas e ações adequadas à redução de desigualdades como imprescindíveis para que de fato haja um desenvolvimento global sustentável nesta década. 

Nesse momento, o desafio está posto e você pode estar se perguntando quais os caminhos possíveis para seguirmos nessa empreitada. Outras questões podem vir à mente: Por onde começar? Qual o primeiro passo para evitar que alunos sejam desvalorizados em sua diversidade? Como garantir a permanência e o aprendizado desses estudantes? As inquietações são muitas e não é nosso objetivo cumprir um checklist com um plano de ação rígido e bem definido. A seguir, vamos exemplificar modos que podem auxiliar no planejamento e no desenho de práticas pedagógicas possíveis, tendo sempre em mente as adequações necessárias às especificidades de cada realidade. 

Currículos diversos: incorporando a diversidade nos currículos escolares  

O currículo escolar é um elemento crucial para a educação, e para olhar para a diversidade na escola é necessário atentar, inicialmente, para os documentos que a norteiam. Como nos diz Miguel Arroyo em Currículo, território em disputa, o currículo na prática de sala de aula é ocasião em que se vivenciam os compromissos ético-políticos que configuram profissionais da educação e estudantes. Para o autor, as diversas lutas capitaneadas pelos movimentos sociais reconfiguram não apenas nossa cultura, como também as identidades docentes, pois “o perfil do profissional e da docência ficou mais rico uma vez que se tornou mais diverso”. Já para Mário Luiz de Souza, em seu artigo “Relações Étnico-Raciais: currículo, avaliação, educação e diversidade”, o currículo escolar é um espaço importante para a discussão das relações étnico-raciais. Ele enfatiza a necessidade de uma educação democrática que respeite a diferença, promova a equidade e empodere os grupos inferiorizados no processo histórico. 

Em resumo, o currículo é a base da prática pedagógica e desempenha um papel crucial na qualidade da educação oferecida. Neste momento, já estamos todos cientes de que qualidade e promoção da diversidade são indissociáveis no processo educativo.  

Nesse cenário, em 2022, a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo lançou um documento específico que passa a compor o Currículo da Cidade e fortalece as práticas de educação antirracista já adotadas pelas escolas da rede municipal. Trata-se da publicação Educação Antirracista — Orientações pedagógicas: povos afro-brasileiros, em que são apresentadas orientações pedagógicas que buscam propor vivências antirracistas como forma de acompanhar e fortalecer a implementação da Lei n. 10.639/2003 com vistas ao compromisso da rede com a equidade, bem como ações de combate ao racismo durante todo o ano letivo. A obra, com os materiais voltados para as comunidades indígenas — Orientações Pedagógicas Povos Indígenas (São Paulo, 2019) — e migrantes — Povos Migrantes (São Paulo, 2021) —, propõe a discussão de práticas significativas para fomentar experiências que possam expandir a justiça social e a equidade. Além de respaldar teoricamente os educadores da rede de ensino, a publicação traz exemplos de práticas pedagógicas e depoimentos de educadores do município que reforçam a relevância de ações vinculadas à implementação de uma educação antirracista nas unidades escolares em que atuam. 

Na mesma toada, no Ceará, o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana está regulamentado pela Resolução n. 416/2006 do Conselho Estadual de Educação (CEE). Entretanto, nos últimos anos, a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) tem desenvolvido várias ações para fortalecer essa política, incluindo formações específicas com gestores escolares e professores, elaboração de material didático-pedagógico de apoio e participação deliberativa da sociedade civil. Em 2021, a Seduc divulgou o e-book Educação para as Relações Étnico-Raciais: caminhos e desafios, que compila experiências e práticas didático-pedagógicas das redes de educação estadual e municipais. O objetivo da publicação é estimular o debate sobre a diversidade étnico-racial nas escolas e instituições de ensino ao fornecer um recurso para orientar e realizar atividades durante o ano letivo, culminando com a Semana da Consciência Negra. Além disso, a Secretaria apresentou o documento “Educação para as Relações Étnico-Raciais e Semana da Consciência Negra: OrientAções”, que propõe uma abordagem didático-pedagógica que visa apoiar a educação para a diversidade, inclusão e, principalmente, o antirracismo. 

Os modelos, tanto em São Paulo quanto no Ceará, representam um avanço significativo na busca por uma educação mais inclusiva e, portanto, voltada à diversidade. Ambas desempenham um papel fundamental ao fornecer diretrizes práticas para a implementação de uma educação antirracista que não se limita a datas ou momentos específicos do ano letivo. São marcos que disponibilizam orientações pedagógicas que transcendem o mero cumprimento de uma obrigação legal, reconhecendo a pluralidade de identidades e experiências dentro da comunidade escolar. 

O currículo escolar é um espaço importante para a discussão das relações étnico-raciais. Ele enfatiza a necessidade de uma educação democrática que respeite a diferença, promova a equidade e empodere os grupos negligenciados no processo histórico.

Hip-hop na escola: a diversidade cultural como motor de transformação

Uma experiência que transpôs o que prevê o currículo na prática ocorreu em uma escola municipal da zona sul de São Paulo, com a transformação do pátio em um palco vibrante. Ali, cinco dançarinos trouxeram a energia do hip-hop para o ambiente escolar, proporcionando uma experiência cultural única para os estudantes. O evento foi organizado pelos coletivos Hip Hop no trem e Coletivo Noroeste e foi idealizado pela vice-diretora Taís Renata Luiz e o corpo diretivo da Escola Municipal Ministro Calógeras. Nele, os alunos tiveram a oportunidade de participar de oficinas de breakdance, organizadas em sessões que duraram o mesmo tempo de uma aula e ocorreram em todas as turmas. Durante essas sessões, os estudantes assistiam às performances e depois criavam suas próprias coreografias, além de terem a oportunidade de dialogar com os arte-educadores que conduziram as oficinas sobre a riqueza da cultura que nasce nas ruas. 

Essa abordagem pedagógica, que valoriza a cultura periférica, está alinhada com as práticas educacionais descritas no livro Educação Antirracista: Orientações Pedagógicas: Povos Afro-brasileiros. Como prática pedagógica, o hip-hop na sala de aula permite aos alunos que se engajem no processo de aprendizagem ao perceber que seus saberes são valorizados, nesse caso, no âmbito da cultura e da identidade. Trata-se de uma ferramenta poderosa que estimula o protagonismo dos estudantes por meio de palavras, rimas, versos e improviso. O evento na Escola Ministro Calógeras demonstrou o poder da cultura hip-hop como ferramenta para a inclusão social, o empoderamento e o fortalecimento da identidade cultural dos estudantes.  

Considerações “iniciais” 

O percurso que traçamos até aqui nos dá pistas de como e por que devemos construir contextos férteis para a busca constante da diversidade como parte integrante dos processos de ensino e aprendizagem. No livro Ensinando pensamento crítico, bell hooks explora o conceito de “pedagogia engajada”, que parte do princípio de que se aprende e se ensina melhor quando há uma interação verdadeira entre educador e estudante. Para isso, é exigido do professor um olhar atento a quem se está ensinando, abrir a sala de aula para momentos de partilha reais, em que parte do tempo pedagógico se dedique ao compartilhamento, reconhecimento e valorização da origem, dos valores, desejos e saberes dos estudantes. O exemplo da escola municipal Calógeras, ao proporcionar tempo para as pessoas se conhecerem e compartilharem suas histórias e criações por meio do hip-hop, criou abertura para um ambiente positivo propício ao aprendizado, em que os envolvidos descobriram juntos que podem ser protagonistas no espaço de aprendizado compartilhado e diverso.  

Os desafios do nosso tempo nos convocam a repensar e desenvolver novas formas de aprender e ensinar que considerem aspectos de classe, gênero e etnia na implementação de práticas pedagógicas que contribuam para uma educação mais inclusiva, diversa e, portanto, emancipatória.

Damaris Silva é mestre em Letras, com ênfase na área de Estudos Comparados de Literaturas em Língua Portuguesa pela FFLCH-USP; especialista em Gestão Escolar (MBA USP/Esalq). Atualmente, é diretora de serviços educacionais da Editora Soluções Moderna e colunista da revista Educação

Para saber mais

  • CARROYO, M. Currículo, território em disputa. São Paulo: Vozes, 2011. 
  • FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. 
  • HOOKS, bell. Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática. São Paulo: Elefante, 2020. 
  • Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. Educação antirracista: orientações pedagógicas: povos afro-brasileiros. Versão atualizada.
  • São Paulo: SME/Coped, 2022. Disponível em: mod.lk/ed25_cd1. Acesso em: 8 out. 2023. 
  • Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. Currículo da cidade – Orientações pedagógicas: povos indígenas. Versão atualizada. São Paulo: SME/Coped, 2019. Disponível em: mod.lk/ed25_cd2. Acesso em: 8 out. 2023.
  • Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. Currículo da cidade: povos migrantes: orientações pedagógicas. São Paulo: SME/Coped, 2021. Disponível em: mod.lk/ed25_cd3. Acesso em: 8 out. 2023. 
  • Secretaria Estadual de Educação do Ceará. Educação para as relações étnico-raciais: caminhos e desafios. Fortaleza: Seduc, 2021. Disponível em: mod.lk/ed25_cd4. Acesso em: 8 out. 2023. 
  • SILVA, J. A. V.; SILVA, J. D. (orgs.). Educação para as relações étnico-raciais: caminhos e desafios. Fortaleza: Seduc, 2021. 
  • SOUZA, M. L. Relações Étnico-Raciais: currículo, avaliação, educação e diversidade. Exitus. Universidade Federal do Oeste do Pará, 2019. Disponível em: mod.lk/ed25_cd5. Acesso em: 8 out. 2023.  
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