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Ressignificar o fazer matemático

Em um mundo cada vez mais digital e permeado por algoritmos, abordagens inovadoras e práticas consistentes de ensino da Matemática buscam reduzir o déficit de aprendizado.

Texto: Lara Silbiger

Enquanto a inteligência artificial promete transformar nossas rotinas, nosso trabalho, nossas formas de nos relacionarmos e de consumir – e algoritmos impulsionam a revolução que se anuncia –, o pensamento matemático também ganha protagonismo. 

No entanto, entre a expectativa e a realidade, ainda existe um longo caminho a percorrer no Brasil. Nesse contexto, pesquisar, desenvolver e testar formas de dar nova vida ao fazer matemático torna-se cada vez mais importante para enfrentar esse déficit de aprendizado. “A começar pela desconstrução de mitos em torno da disciplina, como: ‘Matemática não é para mim, sou de humanas’; ‘Isso é coisa só para gente inteligente’; ‘Meninas têm mais dificuldade na disciplina’; ‘Matemática é uma ciência exata, que só admite uma única resposta’; entre outros”, recomenda Danielle Ramaney, coordenadora pedagógica da Secretaria de Educação do município de Vespasiano (MG).

“Quando um estudante questiona por que precisa estudar matemática, a resposta ‘porque você vai precisar disso lá na frente’ não é suficiente”, afirma Ya Jen Chang, presidente do Instituto Sidarta, organização sem fins lucrativos voltada à pesquisa, ao desenvolvimento de metodologias e à formação de educadores. “É preciso dar sentido e significado ao conteúdo matemático, conectá-lo à resolução de problemas e à vida cotidiana.”

O desenvolvimento das habilidades ligadas ao pensamento matemático deve começar logo cedo, na Educação Infantil. Quanto antes o aluno entender que todos podem aprender matemática e que essa linguagem abre portas para exercer uma cidadania participativa, menos assustador, mais acolhedor e envolvente será o aprendizado.

A seguir, confira as experiências de três escolas e de uma rede pública de ensino que encontraram diferentes caminhos para desenvolver o pensamento matemático.

 De bicho-papão a inspiração e a conquista 

Em um cenário onde a matemática era vista como um “bicho-papão”, Liduína Rebouças, então professora de Geografia – hoje diretora do Centro Estadual de Tempo Integral Gayoso e Almendra, da rede pública estadual em Batalha (PI) – decidiu fazer a diferença. “Os alunos tremiam só de ouvir o nome da disciplina. Ao longo dos anos, aquela aversão havia sido alimentada pela falta de diálogo e pela barreira erguida entre alunos e professores”, lembra.

Apesar de não lecionar matemática, Liduína sempre teve afinidade com a disciplina – seu marido é matemático, e o casal tem amigos e conhecidos que atuam na área. Um deles foi o já falecido matemático João Benício de Melo Neto, natural de Batalha, professor de matemática na UFPI (Universidade Federal do Piauí) e representante da Obmep (Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas) no estado. “João insistia muito para que eu usasse minha influência como professora da rede estadual para divulgar a Obmep entre os alunos”, conta a professora.

Após relutar por um tempo, em 2009, Liduína decidiu separar alguns minutos de suas aulas de Geografia para conversar com as turmas sobre como a matemática poderia ser aplicada em suas vidas e como a participação na Obmep poderia lhes abrir portas no futuro. “Apresentei também exemplos de estudantes que haviam conquistado medalhas e menções honrosas em edições anteriores para mostrar que o sucesso também estava ao alcance deles”, relata. “Mas, no fundo, o que realmente estava fazendo a diferença era a humanização, o diálogo aberto com os estudantes”, conclui.

O primeiro grande resultado dessa mobilização veio um ano depois, com a conquista de uma medalha de bronze na Obmep – a primeira de muitas que os estudantes de Batalha ainda conquistariam. “Aquele foi o pontapé para uma nova percepção sobre o potencial de aprendizado dos alunos, a importância que a matemática pode ter na vida deles e a Olimpíada como ferramenta de engajamento com a disciplina”, lembra Liduína. 

Hoje, o trabalho de formiguinha iniciado por Liduína há 15 anos é um projeto contínuo, consistente e metódico de ensino de Matemática no Centro Estadual de Tempo Integral Gayoso e Almendra, onde ela atua como diretora. 

“Continuamos privilegiando a humanização do ensino da Matemática e o diálogo aberto, para que os estudantes possam expressar livremente suas dúvidas e inseguranças e compreender a relevância do que estão aprendendo”, explica. A educadora também destaca o investimento na formação dos professores, com incentivos para que estudem mais e se preparem melhor para as aulas. Como exemplo, ela cita o professor Gerson, ex-medalhista da Obmep, que desenvolveu um aplicativo para ajudar os alunos a estudar matemática.

Atualmente, a escola participa da Obmep e de outras olimpíadas de conhecimento. “Mas, mais importante que as dezenas de medalhas e menções honrosas, são os ganhos no desempenho acadêmico dos alunos, em sua autoestima e na confiança que têm em sua capacidade de aprender”, garante Liduína. 

 Identidade matemática em construção 

No Colégio Sidarta, escola de aplicação do Instituto Sidarta, os estudantes são convidados desde a Educação Infantil até o Ensino Médio a construir suas identidades matemáticas, enquanto vivenciam suas próprias experiências de aprendizado, compreensão e resolução de problemas. O objetivo é que eles criem uma relação pessoal e única com a matemática.

“Nossa missão é dar sentido e significado para ela e favorecer o desenvolvimento de habilidades que lhes permitam levar o pensamento matemático para a vida toda. O futuro vai exigir isso deles”, afirma Ya Jen Chang, presidente do instituto.  

O primeiro passo é abandonar a velha ideia da matemática como sinônimo de formas, fórmulas e procedimentos que devem ser seguidos. “Vista sob outro ponto de vista, como a ‘ciência dos padrões’, ela vira terreno fértil para desenvolver os raciocínios lógico e espacial e a capacidade de lidar com a abstração e as relações de causa e efeito”, comenta Ya Jen. 

“Na prática, em vez de os alunos serem apresentados a equações e fórmulas genéricas, são incentivados a chegar aos resultados de um problema por conta própria, usando o raciocínio relacional. Isso torna o aprendizado mais significativo e próximo do cotidiano”, completa. Além disso, os professores desempenham papel fundamental ao ajudá-los a se reconhecer como indivíduos capazes de desenvolver o pensamento matemático.  

Por trás desse processo, estão as Mentalidades Matemáticas – uma abordagem de ensino inovadora desenvolvida por Jo Boaler, professora da Universidade de Stanford e fundadora do centro de pesquisa YouCubed, e trazida para o Brasil em parceria com o Instituto Sidarta. No colégio, é adotada desde 2016.

Entre os princípios que a norteiam estão a visualidade, com a matemática sendo apresentada de maneira concreta e visual; o conceito de “piso baixo e teto alto” nas atividades, de forma que todos possam ter acesso aos conceitos matemáticos e levá-los a níveis mais avançados; a criatividade como mola propulsora da investigação matemática e busca por diferentes formas de solucionar problemas; e a equitatividade e a colaboração no aprendizado, com respeito aos processos individuais e contribuição para o coletivo. 

Um exemplo prático dessa abordagem no colégio é o projeto que os alunos estão desenvolvendo no Laboratório de Inovação Social para evitar enchentes no córrego próximo à escola. A ideia é criar uma rede de proteção que impeça o acúmulo de objetos plásticos na água. 

Para isso, os alunos aplicaram seus conhecimentos matemáticos para medir a profundidade e a largura do córrego, a inclinação das margens, a velocidade do fluxo da água e o tamanho médio dos objetos ali encontrados. O próximo passo é buscar diferentes possibilidades para fixar uma barreira no local. “Projetos como esse refletem o que acreditamos enquanto escola de aplicação: teorias não substituem experiências de vida”, afirma Ya Jen. 

Aqueles que participam das olimpíadas desenvolvem um raciocínio lógico mais ágil e estruturado, o que facilita o aprendizado em outras disciplinas e o desempenho em exames como o Enem e vestibulares

 Marcelo Pena, diretor de ensino do Colégio Farias Brito 

Círculo virtuoso de talentos e motivação 

Desde a década de 1990, o Colégio Farias Brito, com sede em Fortaleza (CE), adota uma abordagem diferenciada no ensino de Matemática, com foco na preparação estruturada e consistente dos estudantes para participar de competições como a Obmep e outras tradicionais olimpíadas nacionais e internacionais. O colégio também incentiva a participação em olimpíadas voltadas para meninas, como a Olimpíada Pan-Americana de Matemática para Garotas e a Olimpíada Europeia de Matemática para Garotas. 

A preparação olímpica no Colégio está integrada ao currículo regular e inclui, a partir do 6o ano, a formação de turmas olímpicas. Participam delas estudantes que foram convidados, que tiveram as melhores notas nas provas internas de seleção, que se destacam pelo rendimento acadêmico em Matemática ou que tiveram alto desempenho em olimpíadas. “Vamos ampliando a inclusão de talentos nas turmas olímpicas à medida que os identificamos nas unidades do colégio”, explica Marcelo Pena, diretor de ensino no Farias Brito.

Embora permaneçam na mesma turma regular para as demais disciplinas durante o ano letivo, os alunos das turmas olímpicas recebem aulas extras específicas para o treinamento das competições de matemática. “Isso permite que alunos com mais interesse e aptidão na disciplina tenham uma formação diferenciada, sem precisar se separar das turmas regulares. Eles continuam convivendo com os outros alunos, mas têm aulas adicionais para se prepararem melhor.” 

O treinamento olímpico foca o desenvolvimento do raciocínio lógico e a resolução de problemas complexos. Os conteúdos são adaptados em função do nível da competição. Os alunos que passam para fases mais avançadas das olimpíadas de matemática recebem uma preparação ainda mais específica. “Utilizamos ferramentas matemáticas mais sofisticadas e damos um acompanhamento especial para prepará-los para desafios maiores, com preparação progressiva conforme avançam nas competições”, comenta Marcelo.

A conquista de medalhas tem impacto profundo não apenas para os alunos, mas também para suas famílias, os professores e a própria escola. “As medalhas são a materialização do esforço. Não por acaso, a cerimônia de premiação é um momento de muito orgulho, em que todos veem o resultado do trabalho duro.” Além disso, o sucesso de um aluno inspira outros colegas, o que cria um ciclo virtuoso de motivação e busca pela excelência acadêmica.

A preparação olímpica no Farias Brito também se reflete diretamente no desempenho acadêmico dos alunos. “Aqueles que participam das olimpíadas desenvolvem um raciocínio lógico mais ágil e estruturado, o que facilita o aprendizado em outras disciplinas e o desempenho em exames como o Enem e os vestibulares”, destaca o diretor de ensino. 

Embora a participação nas olimpíadas de matemática seja uma das principais iniciativas do colégio, Marcelo afirma que a diversidade de habilidades e de perfis de alunos também é valorizada. Para exemplificar, destaca as atividades regulares que ocorrem no centro de xadrez, onde os estudantes têm a oportunidade de desenvolver o raciocínio lógico e estratégico em um ambiente menos competitivo.

Na prática, em vez de os alunos serem apresentados a equações e fórmulas genéricas,são incentivados a chegar aos resultados de um problema por conta própria, usando o raciocínio relacional. Isso torna o aprendizado mais significativo e próximo do cotidiano.


 Ya Jen Chang
, presidente do Instituto Sidarta 

Derrubar mitos e velhas práticas para erguer pontes 

Desde 2022, a educação matemática na rede municipal de Vespasiano (MG) está passando por uma transformação significativa na forma como professores e alunos interagem com a disciplina e entre si. O objetivo é tornar o aprendizado mais significativo e inclusivo, desafiando paradigmas que ainda limitam o potencial dos estudantes.

“No diagnóstico inicial, identificamos que eles eram vistos como meros reprodutores de conhecimento e realizadores de atividades mecânicas, sem envolvimento ativo”, revela Danielle Ramaney, coordenadora pedagógica na Secretaria de Educação. 

Com cada aluno sentado em sua mesa, fazendo listas e mais listas de exercícios, não é de se estranhar que a interação e a discussão em aula fossem praticamente nulas. A cultura da exclusão também chamou a atenção, com o mito de que a matemática é uma área exclusiva para quem se destaca em Exatas. Já do outro lado da mesa, professores agiam como reprodutores – no caso, de métodos tradicionais de ensino –, deixando de lado abordagens que poderiam engajar mais as turmas.

A partir desses e outros pontos levantados, a Seduc iniciou a transformação do ensino de matemática no município com formações do programa Mentalidades Matemáticas, do Instituto Sidarta, direcionadas a professores generalistas do 4o e 5o anos e a professores de Matemática dos Anos Finais do Fundamental. O objetivo é capacitá-los para tornar a matemática acessível a todos, em um ambiente de aprendizado inclusivo.

As formações iniciais incluíram encontros mensais, presenciais e on-line, com discussões sobre práticas pedagógicas, desconstrução de mitos e desenvolvimento de atividades que promovem o raciocínio lógico e os exercícios que admitem múltiplas respostas para o mesmo problema. 

“Outro método que funcionou bem foi a chamada residência pedagógica, em que os professores desenvolveram atividades em grupo e, em seguida, aplicaram em sala de aula, com o devido acompanhamento e reflexão sobre os resultados”, relata Danielle, que atua também como coordenadora do programa Mentalidades Matemáticas no município. Atualmente, o foco das formações está direcionado para o desenvolvimento de pontos focais em cada escola. 

Os benefícios já começam a ser observados. “Alguns professores e unidades passaram a questionar práticas antigas, como a memorização da tabuada, e a adotar métodos mais interativos e contextuais para o aprendizado”, ressalta ela. “No entanto, a adoção plena ainda não foi alcançada. De um lado, a desconstrução de ideias e práticas arraigadas não acontece de forma imediata. De outro, os educadores precisam de tempo para testar as novas abordagens em sala de aula, e os alunos, para vivenciar as mudanças.” Danielle prevê um período mínimo de cinco anos até que o novo fazer matemático vire parte do DNA da educação de Vespasiano.


Para saber mais

  • Devlin, K. (2004). O gene da matemática. Editora Record.
  • YouCubed, Instituto Sidarta e Fundação Itaú. (2023). Portal Mentalidades matemáticas. Disponível em: https://mod.lk/ed26_pp1. Acesso em: 12 set. 2024. 
  • Estudo “Contribuição dos trabalhos intensivos em Matemática para a economia brasileira”. (2024, Inverno 2). Fundação Itaú Social. Disponível em: https://mod.lk/ed26_cd1. Acesso em: 12 set. 2024.
  • Portal YouCubed. (2022). Disponível em:
    https://mod.lk/ed26_pp2. Acesso em: 12 set. 2024 
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