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Formando mentes bilíngues

O espaço da língua estrangeira só cresce nas escolas, e uma diretriz a ser homologada pelo MEC irá distinguir quem oferece educação ou programa bilíngue de quem só ampliou a carga horária de inglês. 

texto  Ricardo Prado

O crescimento das escolas bilíngues na última década foi visível. Outdoors, anúncios e e-mails, divulgando às famílias “educação bilíngue”, se tornaram cada vez mais presentes nas grandes e médias cidades do país, em um movimento contrário ao encolhimento observado nas escolas particulares de idiomas. É como se, aos poucos, ao menos no âmbito da educação privada, o inglês estivesse sendo abraçado pela escola, e pelos educadores, não como uma área do currículo dedicada à aprendizagem de uma segunda língua, que, segundo a BNCC, obrigatoriamente deve ser o idioma inglês e ter início no 6o ano do Ensino Fundamental, mas como um meio para aprendizagem de conteúdos variados. 

Diversas escolas passaram a usar o inglês dessa forma, reformulando seus currículos e ampliando o tempo de exposição à segunda língua. Mas há muita confusão em relação ao que seja, de fato, uma educação bilíngue, e escolas vendendo o que não oferecem. Devido a queixas encaminhadas por escolas bilíngues tradicionais em relação à possível concorrência desleal de outras que falsamente se apregoavam como tais, o Conselho Nacional de Educação aprovou, em dezembro de 2020, as Diretrizes Curriculares para a oferta de Educação Plurilíngue. Como ainda não foram homologadas pelo Ministro da Educação, não têm valor legal. Mas o parecer, do Professor Ivan Tadeu Siqueira, da Escola de Comunicações e Artes da USP, sinaliza para uma normatização da oferta de educação em duas ou mais línguas que ainda não existe, estabelecendo as condições para que uma escola se apresente como bilíngue.

Educação bilíngue: o que é?

“Teoricamente uma escola bilíngue é aquela na qual o processo de escolarização ocorre com o uso de duas ou mais línguas”, explica Antonieta Megale, Coordenadora Geral de Formação Continuada do Instituto Singularidades e organizadora de uma coleção de três volumes, publicados pela Fundação Santillana/Richmond, sobre educação bilíngue (download gratuito em www.fundacaosantillana.org.br). “Isso significa que as línguas que circulam naquele espaço têm de ser línguas de instrução. Ou seja, elas são usadas para a formação do conhecimento, e não apenas voltadas à aprendizagem da própria língua. Esse é o conceito mais abraçado hoje em dia. Mas é preciso observar as especificidades de cada país, de cada região”, ressalva, destacando, por exemplo, as situações bem específicas de bilinguismo das escolas em regiões de fronteira, da educação para surdos, daquelas unidades que acolhem um grande número de imigrantes estrangeiros, além, naturalmente, das escolas indígenas, que têm uma legislação educacional específica e não entram nessa categoria.

As duas línguas precisam estar integradas em um currículo único, que tem a ver com aquela escola e aquela comunidade.

O ideal, segundo Antonieta, é que as duas línguas sejam amplamente valorizadas no ambiente escolar. “Sabemos que o inglês, hoje, é uma língua de alto valor. É um capital simbólico que pode ser transformado em capital econômico e social.  Por isso, é preciso tomar cuidado em uma escola bilíngue, porque ambas as línguas devem ser promovidas. Não é uma educação que tem português e inglês; é uma educação na qual o estudante se vê envolvido nessas duas línguas de forma integrada. As duas línguas precisam estar integradas em um currículo único, que tem a ver com aquela escola e aquela comunidade.”

Ela ressalta que uma educação bilíngue pode ser atrativa para o estudante, mas não necessariamente todo ensino bilíngue é estimulante. “Ter mais aulas em inglês sobre outros conteúdos pode ser legal, mas também pode ser muito ruim, do ponto de vista da construção do sujeito e da aprendizagem. Vai depender da qualidade do componente que está sendo adicionado. Para isso, é preciso um professor bem formado, com uma equipe que trabalha de forma integrada, em um ambiente no qual ambas as subequipes compreendam o que é uma educação bilíngue”, observa Antonieta. 

Isso significa que as línguas que circulam naquele espaço têm de ser línguas de instrução. Ou seja, elas são usadas para a formação do conhecimento.

Assinatura neural bilíngue

E o que acontece no cérebro de uma criança que é educada em uma escola bilíngue, se essa educação for feita nos moldes recomendados? Algo bastante importante: a segunda língua parece, de certa forma, moldar o cérebro do falante de uma maneira diferente. Luciana Brentano, pesquisadora vinculada ao Laboratório de Bilinguismo e Cognição (Labico) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e que vem assessorando diversas escolas na implementação de currículos bilíngues, afirma que muitas pesquisas, em várias áreas cognitivas, “mostram que as crianças expostas desde cedo a duas línguas apresentam melhor desempenho em funções executivas, na memória e na própria consciência fonológica”. Ao contrário da operação mental que costuma ser feita por quem aprende uma segunda língua mais tarde, de traduzir as frases da língua consolidada para a nova, em uma criança que se encontra imersa em um ambiente bilíngue isso não acontece, explica Luciana: “As duas línguas vão se formando juntas, como se fossem uma só, no sentido de representação mental. As crianças que têm esse contato com uma língua adicional desde a infância criam uma assinatura neural diferente”. 

Essa “assinatura neural” diferenciada dos bilíngues é bem exemplificada por um de seus criadores, Jim Cummins, que em 1979, ao estudar o fenômeno, criou um Modelo de Proficiência Subjacente Comum (Common Underlying Proficiency Model) por meio de uma imagem. Segundo o pesquisador, o cérebro de uma criança bilíngue seria como dois icebergs vizinhos que, embora estejam separados acima da superfície, representando as características individuais de cada língua, se fundem abaixo da linha d’água, caracterizando, assim, o funcionamento cognitivo compartilhado entre as duas línguas. Para Cummins, as crianças bilíngues não passariam por processos distintos ao desenvolverem habilidades linguísticas em suas duas línguas. Em vez disso, haveria um único sistema de processamento central, algo como um “repositório” central, no qual as habilidades subjacentes ao falar, ler, escutar e escrever seriam originadas de forma compartilhada. Ou seja, as habilidades para reconhecer sons e letras (consciência fonológica e morfológica), essenciais em todo processo de alfabetização, são compartilhadas entre as duas línguas do bilíngue. E isso independentemente da ordem ou da eventual primazia de uma língua sobre a outra. 

Faltam professores

A questão central que parece girar em torno da educação bilíngue, e que está na origem das Diretrizes que pretendem normatizar a oferta dessa modalidade de ensino e, provavelmente, na demora em sua homologação pelo MEC, é a falta crônica de professores de inglês – especialmente aqueles que, além de dominarem a gramática, também são fluentes. Segundo a última pesquisa sobre proficiência feita pelo British Council, apenas 3% da população brasileira pode ser considerada fluente no idioma, como observa Maria Cecília de Amorim Lemos, Gerente de Serviços Educacionais de Idiomas da Santillana. Trabalhando com formação de professores depois de ter sido professora nessa função, ela observa uma mudança no espaço ocupado pelos professores de inglês nas escolas: “O ensino de língua estrangeira começou a ganhar importância na última década. Antes disso, o professor de inglês era alguém que fez intercâmbio, aprendeu a língua e começou a dar aulas. Houve uma mudança, no sentido de uma exigência maior na qualificação desse professor, já que a demanda aumentou. Só que essa qualificação, que dê conta das exigências que acontecem atualmente em cima desse profissional na escola, não é oferecida nos cursos superiores de Letras”, observa Maria Cecília, destacando que entre 2014 e 2019 houve um crescimento de 10% nas escolas bilíngues. “Eu costumo dizer, me dirigindo aos professores de inglês, que eles são as pessoas mais importantes da escola, porque são experts não em conteúdos específicos, como o de Matemática, mas em comunicação, que é uma das competências mais valorizadas no mundo de hoje. O conhecimento como conteúdo está, atualmente, na ponta do dedo de todo mundo. Mas geralmente em inglês”. Ela observa que já faltam profissionais preparados. E salienta: “A necessidade de se ter mais cidadãos bilíngues no país é um caminho sem volta”.

Programas de Ensino Bilíngue

Muitas escolas, conscientes dessa necessidade de oferecer aos seus alunos uma exposição maior ao idioma inglês, entendido hoje como a língua de comunicação planetária, mas igualmente conscientes da falta de professores com fluência e em número suficiente para formar uma equipe bilíngue, vêm optando pela contratação de programas de ensino bilíngue. Diferentemente de uma mera extensão no número de horas dedicadas ao inglês no contraturno, os programas bilíngues se propõem a ter algumas áreas do conhecimento ensinadas nas duas línguas, tendo como personagem central o professor de inglês da escola. É dessa forma que funciona, por exemplo, o Programa de Ensino Bilíngue Educate, oferecido pela Santillana, que tem conteúdos integrados à aprendizagem de uma segunda língua seguindo uma metodologia chamada CLIO (Content Language Integrated Learning). A proposta é trabalhar a partir de questões essenciais (Essential Questions), que funcionam como temas geradores para as aprendizagens.

O papel do professor de inglês no Educate é explicado desta forma por Maria Cecília: “O nível de aprofundamento dos conteúdos de outras disciplinas não é tão grande. Ou seja, esse professor de inglês não vai ser responsável por dar o currículo de ciências, como numa escola bilíngue. No Educate o que há é um alinhamento com a BNCC para que os temas que estão sendo estudados em Matemática ou Ciências, por exemplo, também sejam trazidos pelo professor de inglês, formando assim um círculo virtuoso, já que o professor de inglês reforça aquele conhecimento que o aluno já teve na aula de Ciências. Dessa forma, a língua passa a ser meio; ele não está estudando gramática, mas um conteúdo acadêmico”. 

Diferentemente de uma mera extensão no número de horas dedicadas ao inglês no contraturno, os programas bilíngues se propõem a ter algumas áreas do conhecimento ensinadas nas duas línguas.

Quando a escola assina um contrato para adotar o Programa Educate, a assessoria pedagógica tem início com o estudo detalhado do planejamento escolar, junto aos gestores e ao professor de línguas, para a escolha dos conteúdos que serão ministrados. Um trabalho de formação permanente junto à peça-chave dessa engrenagem, o professor de línguas, começa a ser feito. Ao final da formação, o programa oferece uma certificação internacional, sem custo adicional (essa certificação também é oferecida aos estudantes). 

Inglês com viés crítico

Além do material didático, para os estudantes e suas famílias o programa disponibiliza uma biblioteca virtual com mais de
6 mil títulos. “Esse acervo digital abrange diversos temas, e tem formatos variados, como livros, histórias em quadrinhos, vídeos, filmes etc. Há, também, ambientes gamificados e objetos digitais interativos. E o Teacher’s Guide, que, além das orientações didáticas, traz informações de conteúdo relacionadas aos temas que serão apresentados pelo professor de inglês”, destaca Izaura Valverde, gestora da Santillana Educação. Para ela, o programa enxerga o inglês como ferramenta de ampliação da cultura, por ser o meio de conexão e informação sobre o que está acontecendo no mundo. “O que propomos é uma visão crítica, não só consumista, da aprendizagem de uma cultura. Não existe mais essa história de inglês americano ou inglês britânico. É o inglês do mundo. É você abrir a possibilidade de o jovem conversar com um estudante paquistanês, ou colombiano, é tirar a hegemonia imposta por esses países dominantes, de forma que ele aprenda muito mais do que uma língua.” Seguindo a mesma linha de raciocínio, Antonieta Megale observa que “aprender inglês é importante até pelo seu caráter de subversão. Eu aprendo inglês para que a minha voz seja ouvida. E essa aprendizagem é melhor quando é uma possibilidade que se abre, e não uma língua imposta”.

O que propõem as Diretrizes para a Educação Plurilíngue?

As diretrizes curriculares sobre oferta de Educação Plurilíngue, elaboradas pelo Professor Ivan Claudio Pereira Siqueira e apresentadas junto ao Conselho Nacional de Educação, além de estabelecerer critérios para a oferta de educação bilíngue, propõem a criação de uma política pública voltada ao bilinguismo. Seu autor justifica essa necessidade: “Nosso papel, como membro do Conselho, é fazer um documento que estimule o governo a investir, mas os recursos precisam vir dele. Na esfera privada, esse movimento rumo ao bilinguismo já está acontecendo, mas na rede pública ainda é muito incipiente. E se não houver um investimento por meio de uma política pública robusta e continuada, o Brasil ficará atrasado em relação aos seus vizinhos, que já se mobilizaram nesse sentido. Se fizermos minimamente as recomendações indicadas no documento, no espaço de uma geração a situação já será diferente”, observa Ivan Siqueira, citando Uruguai, Chile e México como exemplos de países que já possuem uma tradição de mais de uma década de ensino bilíngue.

Entre as recomendações ao MEC estão o estabelecimento de parcerias com as universidades, a criação de uma plataforma digital com recursos didáticos para a educação plurilíngue e a adoção de padrões de avaliação e de certificação de proficiência linguística e em conteúdos para os estudantes. “Ter uma população bilíngue traz inúmeras vantagens para um país. A questão é que os cursos de Letras se mantêm na tradição de ensinar língua. Ali se aprende literatura, e a língua é usada em termos de fala, leitura e escrita. Esse modelo não é mais adequado para hoje”, comenta Siqueira.

No entanto, se forem homologadas, as Diretrizes devem causar um rebuliço em muitas escolas que atualmente se apresentam como bilíngues, já que, entre outras determinações, elas pedem a comprovação, por parte dos docentes, de proficiência em nível B2 do Commom European Framework for Languages e uma formação complementar em Educação Bilíngue, como curso de extensão com no mínimo 120 horas; pós-graduação lato sensu; mestrado ou doutorado reconhecidos pelo MEC. Poucos profissionais teriam atualmente essas credenciais.

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