Como nasce um escritor?
Foi preciso que uma garotinha atrevida acuasse Ilan Brenman para que a roda da criatividade se movesse e nascesse um novo escritor.
Texto Ricardo Prado
Se é possível traçar a trajetória feita por um escritor a partir dos livros que ele leu, antes mesmo que eu entrasse no apartamento de Ilan Brenman, localizado em um condomínio no bairro do Morumbi, em São Paulo, para a primeira de uma série de três longas entrevistas, algumas pistas já se apresentavam ali mesmo, no hall que separa o espaço público da intimidade do lar. Em vez de um quadro ou algum enfeite tipo welcome, as paredes do corredor estão forradas de livros. Muitos. Enquanto o escritor buscava a chave, foi possível identificar, arrumados com algum critério de temas, diversas coletâneas de contos populares, um dicionário etimológico, autores consagrados, como José Saramago, lado a lado com desconhecidos, como um certo Roald Dahl, que depois descobriria ser uma das principais influências de Brenman, alguns volumes de filosofia… e a porta se abre. Surge o escritor, com um sorriso caloroso. Veste uma camiseta preta e calça jeans. Já fez sua caminhada diária pelas trilhas internas do condomínio e está pronto para conversar, durante algumas horas naquela manhã, e nos outros encontros, sobre o que mais gosta de falar: livros e histórias, histórias e livros, e o ir e vir de um ao outro.
Leitor onívoro e inveterado, Ilan conta que há pouco se desfez de mais de mil volumes, especialmente livros infantis, mas não exclusivamente, doando-os a uma das escolas públicas que visita regularmente. Mesmo assim, os volumes ocupam toda a parede da sala e avançam pelo escritório. Meu objetivo com essa série de conversas é escrever um livro que o apresentará a professores e professoras como o mais recente autor exclusivo da Moderna. Ilan Brenman fará companhia a um quarteto de autores ilustres: Pedro Bandeira, Eva Furnari, Walcyr Carrasco e Ruth Rocha. Deve estar orgulhoso com a companhia, ele, o psicólogo que, em um determinado dia, viu nascer dentro dele o escritor. Um parto quase à fórceps, como ele contou em nossa primeira conversa.
A maternidade do escritor
O local de nascimento do escritor Ilan Brenman é o clube A Hebraica, ligado à comunidade judaica paulistana e localizado na zona sul de São Paulo. A data do parto se situa em algum dia de outubro de 1992 e a parteira do escritor, que hoje deve estar na casa dos 30 anos, tinha na época não mais do que cinco. Aos 18 anos, Ilan era estudante de Psicologia da PUC-SP em seu primeiro estágio como monitor em um novo projeto de educação não formal. Até então, ele nunca havia tentado contar uma história para qualquer criança. Em um dia do estágio, Ilan foi deixado ali, junto às crianças pequenas, pela coordenadora do projeto, quando viu uma garotinha se aproximar, junto com outras duas. Em pânico, ouviu o pedido: “Tio, conta uma história pra gente?”. “Mas eu não sei nenhuma história”, gaguejou o jovem estudante, em apuros. “Não sabe? Então inventa!” – retrucou a garotinha, sem se dar por vencida diante das negativas. Acuado nas cordas como um boxeador imaturo, Ilan resolveu improvisar uma história ali mesmo, para as três crianças. “Como que alguém vem cuidar de crianças sem saber contar histórias?! Deve ser o mesmo que um professor de natação dizer para os seus alunos que não sabe nadar, deve ter pensado essa menina”, refletiria o autor, décadas mais tarde, sobre esse episódio.
Apesar do susto, Ilan descobriu ali que sabia contar histórias para entreter crianças pequenas. Em pouco tempo já não eram as três meninas, mas um grupo que se juntou ali para ouvir a narrativa de um menino muito pobre chamado André, que salvou uma tartaruga que servia como bola de futebol de uns garotos e, graças a isso, ganhou um mágico “pó do crescimento”. Bastava colocá-lo em algo que se queria ter um “pé-daquela-coisa”, plantar e pronto: ali surgiria uma árvore daquele objeto!
A mágica deu certo. A história improvisada veio da memória de uma tartaruga perdida nos tempos de infância, junto com a paixão que sempre teve por futebol. Nasceu ali, sob pressão, um escritor. Essa primeira história, O pó do crescimento, só seria publicada anos mais tarde, mas esse dia ficaria marcado na memória de Ilan. Ao perceber que era capaz de criar uma história no puro improviso, viu abrir diante de si uma trilha que, em poucos anos, tornaria-se uma estrada onde encontraria vazão para tudo o que havia acumulado dentro de si: as histórias, centenas, milhares delas…
Tempos de formação
Ilan Brenman vem de um caldeirão multicultural: filho de pais argentinos, nasceu em Kfar Saba no dia 1o de março de 1973. Foram tempos difíceis para o casal Mario e Berta, já que seis meses após o nascimento do segundo filho (já tinham Gabriela, nascida em Buenos Aires) seria deflagrado mais um conflito na região, a Guerra do Yom Kippur, que afetaria diretamente a vida dos Brenman. Mario, mesmo sendo bancário e com mais de 30 anos, seria levado ao front por algumas vezes, tornando-se depois reservista. “Tenho lembranças do meu pai voltando magro do exército, eu devia ter 3 ou 4 anos”, recorda o escritor, resgatando uma das poucas imagens de seus tempos de primeira infância.
Quando Ilan tinha seis anos, os Brenman deixaram Israel para regressar à América do Sul – mas, desta vez, em vez da Argentina, escolheram morar no Brasil. Aqui havia a possibilidade de emprego, já que um cunhado de Mario acenava com a chance de o casal trabalhar em uma joalheria em São Paulo.
Assim, em 1979, uma assustada criança que só falava espanhol e hebraico chegaria ao Colégio Bialik, uma instituição educacional de origem judaica paulistana, onde Ilan foi alfabetizado em português. O encontro das três línguas resultaria em uma confusão linguística que se prolongaria ao longo daquele primeiro ano. “Minha mãe conta que passei um ano inteiro chorando”, revela Ilan sobre a adaptação.
Descoberta a língua portuguesa, vieram os primeiros autores, já que a casa dos Brenman sempre foi lugar de muitos livros. De um deles ele se lembraria de maneira muito especial: Zero Zero Alpiste, de Mirna Pinsky, que foi o primeiro livro infantil que se lembra de ter lido em português. Décadas mais tarde, para sua alegria, conheceria e se tornaria amigo da autora, de quem arrancaria uma dedicatória no livro já com páginas amareladas, que conserva como relíquia dos tempos de leitor iniciante. Depois viriam Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Marcos Rey, Monteiro Lobato, Machado de Assis, a literatura francesa da estante materna, os existencialistas, os livros de psicologia que tanto interessavam Berta e Mario e que acabariam por sinalizar ao jovem Ilan, aos 17 anos, uma carreira à vista: prestaria vestibular para a Faculdade de Psicologia. Entrou na PUC-SP e, buscando alguma renda para ajudar os pais a pagar a mensalidade, entraria naquele primeiro emprego no clube A Hebraica… onde se revelaria seu gosto por criar histórias.
A Hebraica foi decisiva na vida de Ilan por outro motivo, além da sua “maternidade literária”. Ali, conheceu Tali, psicóloga recém-formada, que primeiro integrou sua equipe e, meses depois, tornaria-se sua namorada. Formado, Ilan se casou com Tali e conseguiu emprego como contador de histórias em um projeto voltado ao incentivo à leitura chamado “Biblioteca Viva”, na Fundação Abrinq. Seria a oportunidade para viajar pelo país todo, montando acervos de literatura infantil, fazendo formação com os educadores e tendo contato diário com as melhores obras da literatura infantil – que naqueles anos 1990 vivia um boom, com uma série de lançamentos e editoras voltadas a esse público.
“Aos poucos, vou tirando, junto com o público, os tecidos que encobrem seu corpo. O que tem por debaixo dos véus, nem o contador de histórias sabe. Às vezes, pode ser uma bela princesa, outras, um orangotango. O prazer reside nessa surpresa: o desvelar juntos os véus das mais diferentes narrativas”.
Um salto para a escrita
Em 2004, Ilan decidiu largar o trabalho de contador de histórias no projeto “Biblioteca Viva”, da Fundação Abrinq, para se tornar escritor em tempo integral. Contou para isso com o apoio de Tali, com quem fez um acerto doméstico: cuidaria da pequena Lis, a primeira filha do casal, enquanto a mulher trabalhava em uma multinacional para, em troca, ter o tempo livre para criar seus livros. Desse acordo nasceria, em poucos anos, um dos autores mais prolíficos e bem-sucedidos do país, com mais de 70 livros publicados, em 14 idiomas e com mais de três milhões de exemplares vendidos no Brasil e no mundo.
O escritor identifica três caminhos diferentes nos quais gosta de transitar e alternar: o primeiro são os livros que trazem recontos da tradição oral de diversos países, uma paixão que surgiu dos tempos de contador de histórias e em apresentações que Ilan passou a fazer em livrarias, hospitais e até em casamentos. Aqui se alinham livros como a série “14 Pérolas”, com seletas de contos da sabedoria judaica, hindu, grega, sufi, budista etc.; as seleções de histórias do continente africano, como Contador de histórias de bolso: África (Moderna, 2008) e Amizade eterna e outras vozes da África (Moderna, 2016); ou uma cuidadosa, e delicada, seleta de contos sobre a morte (Silêncio: doze histórias universais sobre a morte), entre dezenas de obras enfeixadas nessa categoria de reconto. Na apresentação de As narrativas preferidas de um contador de histórias, Ilan compararia o ato de contar uma história com o de apresentar uma noiva repleta de véus, com o rosto todo escondido. “Aos poucos, vou tirando, junto com o público, os tecidos que encobrem seu corpo. O que tem por debaixo dos véus, nem o contador de histórias sabe. Às vezes, pode ser uma bela princesa, outras, um orangotango. O prazer reside nessa surpresa: o desvelar juntos os véus das mais diferentes narrativas”.
O alvo, um de seus livros mais premiados, é um irônico reconto da tradição judaica sobre a arte de contar histórias ilustrado por Renato Moriconi. A obra chama a atenção pela inventividade da narrativa e pela engenhosidade da parceria desenvolvida com o ilustrador, já que todas as imagens precisavam absorver, como se fosse a coisa mais natural do mundo, um buraco no meio do próprio livro. Renato encontrou uma saída criativa a cada página, tornando o livro um marco da indústria gráfica brasileira.
O observador do cotidiano
Uma segunda linha de criação do escritor são as histórias do cotidiano. Para isso, a matéria-prima principal vem do convívio com as filhas Lis e Iris, como, por exemplo em Papai é meu, Pai cabide e Pai, não fui eu!. A história dessa última obra ilustra bem o processo criativo do escritor. Ele conta que, em um determinado dia, sua filha mais nova, Iris, estava na biblioteca, que fica ao lado do escritório onde ele trabalhava. A porta estava fechada. De repente, ouviu o som de algo pesado que caiu no chão. Antes que pudesse abrir a porta para conferir se a filha estava machucada, ouviu a voz dela, do outro lado da porta, já se defendendo: “Pai, não fui eu!”. Sem girar a maçaneta, o escritor começou um diálogo com a filha, querendo saber o que havia acontecido. Do outro lado da porta, ela explicou que aquele livro italiano, muito antigo, pesado e raro, que os dois adoravam ler, havia despencado da prateleira. Mas a culpa era do leopardo…
Uma segunda linha de criação do escritor são as histórias do cotidiano. Para isso, a matéria-prima principal vem do convívio com as filhas Lis e Iris, como, por exemplo em Papai é meu, Pai cabide e Pai, não fui eu!. A história dessa última obra ilustra bem o processo criativo do escritor. Ele conta que, em um determinado dia, sua filha mais nova, Iris, estava na biblioteca, que fica ao lado do escritório onde ele trabalhava. A porta estava fechada. De repente, ouviu o som de algo pesado que caiu no chão. Antes que pudesse abrir a porta para conferir se a filha estava machucada, ouviu a voz dela, do outro lado da porta, já se defendendo: “Pai, não fui eu!”. Sem girar a maçaneta, o escritor começou um diálogo com a filha, querendo saber o que havia acontecido. Do outro lado da porta, ela explicou que aquele livro italiano, muito antigo, pesado e raro, que os dois adoravam ler, havia despencado da prateleira. Mas a culpa era do leopardo…
Atenção ao mundo das formigas
Por fim, a terceira vertente criativa é aquela que nasce da sua própria imaginação. Como naquele dia em que, logo após a chegada em casa da primeira filha, Lis, Ilan se viu na casa onde os livros ocuparam todos os espaços possíveis. Nesse ambiente entulhado de histórias, o jovem pai se pôs a imaginar quanta novidade na sua vida aquele pequeno ser traria. Ao olhar as estantes à sua volta, a mesma reflexão sobre quantas descobertas estariam vindo junto com a nova habitante da casa se formou em sua cabeça: “O que cabe num livro? Um mundo todo. Vários mundos…”. Como os vários mundos que iria descobrir agora, com tempo e disposição para acompanhar de perto o crescimento de sua filha, nasceria o curioso O que cabe num livro?.
Essa vertente se alimenta da observação atenta do mundo miúdo que cerca o universo infantil. É o que chama de “observar formigas, em vez de elefantes”, um olhar que faz com que consiga captar eventos comuns na relação pais e filhos, como em A festa de aniversário, de 2007, que retrata uma situação já vivida por qualquer pai ou mãe: lidar com a ansiedade dos filhos diante do tempo que demora a passar até a hora tão esperada da festa.
Às vezes, a atenção ao mundo das pequenas ocorrências pode se tornar grandiosa. Foi o que aconteceu na gênese dos arrasa-quarteirões Até as princesas soltam pum, O livro secreto das princesas e Pai, todos os animais soltam pum?, que levariam Ilan Brenman ao raro posto de escritor profissional. A trilogia sobre flatulências de princesas, minhocas e dinossauros, que conquistaria a simpatia de leitores de todas as idades e culturas, nasceu de um fato: sua filha mais velha, então uma garotinha que adorava se vestir de Branca de Neve, soltou um pum tão forte que ele e Tali caíram no riso. A filha caiu no choro, no que seria prontamente acolhida pela mãe, que carinhosamente disse a ela: “Não chora, querida, até as princesas soltam pum…”. O escritor conta que, ao ouvir aquela frase, viu uma história maravilhosa se formando e correu para o escritório registrar a ideia.
O que Ilan ainda não sabia é que essa história mudaria a sua vida e o levaria a um lugar raro, o de autor best-seller. Um escritor que, enfim, pode viver do que escreve. Neste local privilegiado, ele se orgulha de ser um escritor que forma os primeiros leitores, de ser uma porta de entrada para o mundo maravilhoso das histórias inventadas. Um mundo que ele próprio só entrou porque foi empurrado por uma menina que não se conformou em ver um monitor infantil que dizia não saber contar histórias. “Não sabe? Então, inventa!”. E tudo se fez a partir desse empurrão.