A neurociência a favor da educação matemática
Abordagens e metodologias para transformar os erros e as narrativas em caminhos para aprender sempre e de forma eficiente.
Texto Fabio Martins de Leonardo e Romenig da Silva Ribeiro
Em meio aos incontáveis desafios enfrentados pelos educadores brasileiros, a educação está mudando e exige novas adequações. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) aponta as aprendizagens que devem ser garantidas a todo estudante da Educação Básica, desde a Educação Infantil até o Ensino Médio. O documento tem o intuito de nortear o currículo das escolas públicas e privadas do Brasil e determina, para cada etapa escolar, conhecimentos essenciais, competências, habilidades e objetivos de aprendizagem. Em sua essência, a BNCC visa ao preparo e ao desenvolvimento dos estudantes para a vivência, a convivência e a participação plena na sociedade.
Algumas competências gerais previstas pela BNCC abordam a relação dos alunos com o mundo do trabalho, a resolução de problemas e o uso de tecnologias como meio de resolvê-los. A Matemática ganha, então, espaço nas discussões e reflexões docentes, considerando-se sua relevância para o desenvolvimento dessas competências.
Há um longo caminho para atingir o objetivo maior de formar cidadãos críticos, atuantes e colaborativos, capazes de enfrentar os desafios do século 21. Esse caminho requer a adequação dos currículos, a formação inicial e contínua dos professores, a adequação, elaboração e o desenvolvimento de materiais didáticos e a criação de soluções educacionais eficientes. Essas propostas já contam com estudos recentes da área da Neurociência, como os trabalhos desenvolvidos por Jo Boaler ou David Dockterman. A aplicação das ideias desenvolvidas nesses estudos pode representar o início do processo para minimizar as desigualdades na Educação Matemática, que levam a um baixo desempenho nos exames nacionais e internacionais.
Alguns números da educação brasileira
Há algum tempo, observamos o fraco desempenho dos estudantes brasileiros em avaliações de larga escala, como o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa). Os resultados divulgados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), com base na última edição do Pisa, de 2015, mostram estagnação no desempenho em Leitura e Ciências e queda no desempenho em Matemática. Se compararmos nosso resultado com o dos países-membros da OCDE, percebemos o quanto estamos atrasados e o grande desafio que temos pela frente. Em Leitura, a média desses países foi de 493 pontos, enquanto a média do Brasil foi de 407 pontos. Em Ciências, obtivemos 401 pontos contra 493 dos outros países. Em Matemática, que teve a primeira queda desde 2003, os estudantes brasileiros obtiveram 377 pontos, um resultado bem abaixo dos 490 pontos obtidos pelos países-membros da OCDE. Dos 72 participantes avaliados, o Brasil ficou na 65ª posição.
Diante desses resultados, fica evidente a necessidade de investir em mudanças. Como educadores, é preciso refletir sobre o nosso papel docente e participar ativamente das discussões sobre a reforma do ensino brasileiro em todas as esferas, revendo a infraestrutura, a adequação do currículo à realidade e às necessidades dos alunos e a importância da formação profissional contínua.
A matemática e a busca de novos caminhos
Grande parte das escolas brasileiras ainda ensina matemática de forma segmentada e conteudista, carente de formação específica de professores e vulnerável à inconsistência do sistema educacional. Essa prática influencia diretamente os resultados abaixo da média nas avaliações de larga escala. Ao refletir sobre os resultados do Pisa, o físico e estatístico alemão Andreas Schleicher, coordenador desse sistema de avaliação, disse que “conteúdo em excesso é sinônimo de aprendizado superficial”. Ele analisou o currículo de Matemática de diferentes países e concluiu que o currículo brasileiro contém o triplo de conteúdo do currículo de Singapura, país que está no topo nos índices de desempenho. Schleicher falou sobre a importância de “ater-se aos conceitos essenciais e às ferramentas que permitem ao aluno raciocinar melhor”.
Em Os sete saberes necessários à educação do futuro, o filósofo francês Edgar Morin afirma que “ao examinarmos as crenças do passado, concluímos que a maioria delas contém erros e ilusões, mesmo quando pensamos há vinte anos atrás e constatamos como erramos e nos iludimos sobre o mundo e a realidade. E por que isso é tão importante? Porque o conhecimento nunca é um reflexo ou espelho da realidade. O conhecimento é sempre uma tradução, seguida de uma reconstrução”. Nesse sentido, o olhar crítico e reflexivo sobre as práticas didático-metodológicas brasileiras talvez seja uma estratégia mais adequada para nos manter abertos a outras linhas de pensamento e a abordagens capazes de enriquecer nosso repertório, ampliar nossa visão e possibilitar mudanças eficazes.
Diversos caminhos podem ser trilhados para atender às necessidades da educação nos dias de hoje:
- Analisar sistemas educacionais de outros países ou provenientes de realidades e contextos diferentes promove reflexões e enriquece as discussões sobre nossa realidade.
- Conhecer instituições, pesquisas acadêmicas e educadores diversos para buscar modelos que possam ser usados ou adaptados para o nosso contexto.
- Investir em tecnologia (aprendizagem móvel, ensino adaptativo e big data) com o intuito de uma educação personalizada, que viabilize a coleta de informações de forma rápida e eficiente sobre o desempenho e a evolução desse aluno ao longo do aprendizado e em relação ao sistema educacional no qual está inserido.
A neurociência a favor da educação matemática
De Santiago Ramón y Cajal, considerado o fundador da Neurociência, até os dias de hoje, a neurociência avançou consideravelmente e adentra várias áreas; entre elas, a educação. O estudo sobre como funciona o cérebro nos momentos de aprendizagem pode contribuir para as práticas pedagógicas de maneira bastante assertiva.
Mentalidades e cultura sobre o erro
A Matemática habitualmente é vista como assustadora para crianças e adultos. É considerada difícil, complicada e desinteressante. É associada ao cálculo puro e simples, acreditando-se que, quanto mais exercícios forem resolvidos no menor tempo possível, mais eficiente será seu aprendizado. Esse pensamento a reduz a uma disciplina de desempenho, o que pode causar ansiedade nos estudantes e afastá-los ainda mais do interesse em conhecê-la.
Carol Dweck, professora na Universidade de Stanford e autora do bestseller Mindset: a nova psicologia do sucesso, em que disserta a respeito de mindsets (“mentalidades”, em tradução literal), afirma que a maneira como as pessoas enxergam a própria relação com a aprendizagem pode influenciar diretamente a qualidade e o nível dessa aprendizagem. Dweck define como “de mentalidade fixa” as pessoas que acreditam na possibilidade de aprender, mas não são capazes de mudar o próprio nível de inteligência, limitando-se inconscientemente. Isso significa que, se uma pessoa acredita que não consegue aprender Matemática, por exemplo, ela terá dificuldades em seu processo de aprendizagem. Em contrapartida, há a “mentalidade de crescimento”, que se refere às pessoas que acreditam que, com trabalho árduo, a inteligência se transforma e elas podem atingir o mais alto grau de compreensão e domínio do conhecimento. Então, na mesma medida em que uma mentalidade pode prejudicar a aprendizagem, ela também pode potencializar.
Sabemos que o erro faz parte do processo de aprendizagem. Mas a Neurociência trouxe à luz a relevância dos erros. Jason Moser, psicólogo da Universidade de Michigan, documentou em suas pesquisas o que acontece com o cérebro humano ao errar: sinapses! Quando uma pessoa erra, são disparadas sinapses, e seu cérebro reage mais intensamente do que quando ela acerta. Segundo Moser, as pessoas sequer precisam estar conscientes do erro, o que pode parecer confuso, mas faz sentido se pensarmos em como um erro genuíno acontece. Se um problema suficientemente complexo é apresentado a um aluno e ele não desiste, persiste, buscando a solução, mesmo ao errar, o cérebro está trabalhando. A sinapse é ainda mais intensa em pessoas com a mentalidade de crescimento. O efeito dessas reações é o “crescimento” do cérebro.
É interessante perceber como alguns fatos e pesquisas convergem para bons resultados. Muitos países orientais apresentam bons desempenhos no Pisa. Dentre eles, podemos citar a China e o Japão. Segundo Jo Boaler, em seu livro O que a Matemática tem a ver com isso? Como professores e pais podem transformar a aprendizagem da Matemática e inspirar sucesso, nesses países, a cultura em relação aos erros é bem diferente da nossa. Enquanto no Ocidente (e no Brasil), o erro em Matemática pode ser interpretado negativamente, nas aulas que Boaler documentou, os erros são vistos como descobertas ou oportunidades. Em Xangai, os alunos ficaram animados em compartilhar as estratégias que não funcionavam, dividindo-as com toda a turma para que todos pudessem aprender. Esse fato também é documentado no artigo Matemática para todos, publicado pela revista Cálculo, em que se analisa a postura de professores em sala de aula no Japão, comparando-a com a postura de professores em salas de aula nos Estados Unidos. No Japão, o erro é visto como descoberta – uma maneira que não funciona para resolver um problema –, enquanto nos Estados Unidos, o erro é visto como um problema, algo a ser corrigido ou remediado.
Ao levar em consideração essas e outras descobertas, podemos criar ferramentas e meios de intervenção no processo de ensino-aprendizagem. Um exemplo disso é a plataforma AXIOS, cujo foco é o diagnóstico dos erros mais cometidos por uma turma em determinado assunto. A plataforma trata os erros como estratégias equivocadas, justamente para que o peso de errar seja reduzido. A ideia é identificar essas estratégias, discuti-las com a turma, para então, retomar o assunto de outras maneiras, com foco no conceito no lugar dos algoritmos decorados. A “fotografia” da turma possibilita um processo de engenharia didática ao professor, por meio do qual poderá propor intervenções pedagógicas o mais rápido possível, evitando que uma estratégia equivocada ou a compreensão equivocada de um conceito perdure e siga adiante na formação escolar.
As narrativas e a resolução de problemas como estratégias para engajar e motivar os alunos
A falta de atenção e a desmotivação dos alunos são recorrentes nas salas de aula e afetam diretamente sua aprendizagem. É fundamental buscar estratégias e recursos para despertar o interesse pelos estudos e engajar a turma na rotina escolar. As narrativas são uma poderosa ferramenta para trabalhar a empatia e envolver os estudantes ao longo de seu aprendizado.
Pesquisas recentes de David Dockterman, professor catedrático de Educação Matemática na Universidade de Harvard, mostram que as experiências e o conhecimento acumulados de cada pessoa influenciam seu compromisso com a busca de informação. Todos nós somos atraídos por descobrir, mas nem todos queremos descobrir as mesmas coisas. Segundo Dockterman, a narrativa e a busca de informação têm papel especial na maneira como nosso cérebro aprende e se relaciona com o mundo. As histórias, por exemplo, nos ajudam a recordar. Antes de criar a escrita, as pessoas usavam outras ferramentas para ajudá-las a recordar e transmitir regras sociais, hierarquias e rituais culturais. Os bons narradores aproveitam essas características cognitivas para captar nossa atenção, injetando incerteza no conhecido. Convidam-nos a conhecer mundos em que nosso cérebro opera próximo a uma zona de busca de informação. Sabemos o suficiente para tentar adivinhar o que acontecerá, como acontecerá e como uma pessoa poderá se sentir, mas sem termos certeza.
“As narrativas mais poderosas também nos afetam emocionalmente. Não importam apenas nossas previsões, mas também os personagens. As histórias nos levam mais além de uma simples busca de informação: conectam e desenvolvem empatia e habilidade de ver o mundo através dos olhos de alguém. Os pesquisadores chamam esta habilidade de Teoria da Mente”, afirma David Dockterman no artigo Conectar as emoções para a aprendizagem matemática: o poder de uma boa história. A conexão emocional com os personagens pode influenciar o comportamento das pessoas. Dockterman complementa dizendo que “a mescla entre drama e personagens provoca uma mudança química em nosso cérebro. Os neurocientistas têm observado a ativação de áreas associadas com a Teoria da Mente e com a empatia durante a exposição a este tipo de narrativa”.
Tradicionalmente, no ensino da Matemática, as respostas exatas são resultados importantes, principalmente no campo da Aritmética. Problemas como “qual é o resultado da operação 8 + 3?” são recorrentes, mas não captam o impulso motivador de busca da informação. Refletindo sobre isso, David Dockterman fala sobre a “incerteza de baixo risco”, que pode ser introduzida nas aulas e incentivar os alunos à reflexão. “Em vez de enfatizar o resultado, por exemplo, pode-se centrar a atenção no processo. De quantas formas distintas podemos obter 8 + 3? Duas? Três? Cinco? Pode-se contar 8 + 1 + 1 + 1. Ou podemos simplesmente recordar uma soma memorizada. Outra opção é decompor 3 em 2 + 1 e usar a estratégia de obter 10: (8 + 2) + 1”. Assim, a ação de averiguar é satisfatória e os alunos podem refletir sobre as possibilidades para a obtenção do resultado. Dockterman amplia a ideia para problemas mais complexos. “A incerteza também pode ser introduzida de maneira produtiva na definição de um problema. Há vários exemplos que apresentam tentativas de se obter as possibilidades de busca de informação dos estudantes desta maneira. Um método é apresentar uma situação sem uma pergunta. Sofia tem 50% mais seguidores em redes sociais que Hector. Hector tem 112 seguidores. Com isso se pode desafiar os estudantes com questões como: quantos problemas matemáticos podemos criar com essas informações? ou “o que será pedido para resolver com essa informação? Ambas as perguntas ativam o pensamento matemático e a curiosidade pela busca de informação”.
Seguindo as linhas de pesquisa de Jo Boaler sobre o erro e as recentes publicações de David Dockterman sobre as narrativas e a resolução de problemas, a obra Compartilha Matemática, destinada aos Anos iniciais do Ensino Fundamental, foi estruturada e concebida para promover experiências de aprendizagem e para, através de histórias, conectar emocionalmente os estudantes com a Matemática. No material, destaca-se a resolução de problemas de forma que os alunos não se limitem à aplicação de conceitos e procedimentos. Propõe-se a criação de enunciados, identificação e representação de variáveis, identificação de perguntas importantes e outros elementos necessários para desenvolver o raciocínio e preparar os alunos para enfrentar situações do mundo real. Os estudantes criam argumentos, interagem com os colegas e mobilizam diferentes recursos cognitivos no processo de aprendizagem. É uma construção ambiciosa que reúne o ponto de vista da Educação Matemática e da Neurociência. O currículo foi organizado com base na estrutura em espiral de Bruner, na qual o aluno passa por um assunto em mais de um momento no processo de formação. Essas passagens têm diferentes graus de abstração, pois empregam um dos recursos do método Singapura – metodologia de Concreto-Pictórico-Abstrato (CPA). Os alunos, nos momentos adequados, devem lidar com os conceitos nesses três níveis de abstração em pontos diferentes da aprendizagem. Isso permite que o foco seja dado ao conceito, na medida em que se manipula o objeto de conhecimento.
A mudança e a busca de melhores resultados
Uma vez que os resultados em testes padronizados nos dão indícios de que mudanças nos processos de ensino e aprendizagem são necessárias, essas mudanças devem ser feitas de forma embasada e abranger todos os envolvidos: gestores públicos, gestores escolares, professores, pais e os próprios estudantes. Como pudemos ver nos trabalhos de Jo Boaler, Carol Dweck e David Dockterman, é preciso mais do que novos materiais didáticos ou plataformas educacionais, é imprescindível uma mudança de cultura dos envolvidos.
Esperamos que a postura de reflexão contínua sobre o trabalho realizado, a busca de novos caminhos, embasados em pesquisas acadêmicas e a renovação dos materiais didáticos e de soluções educacionais possam contribuir para alcançarmos melhores resultados nas avaliações e para formar cidadãos capazes de enfrentar os desafios do século 21.
Quem é Jo Boaler?
Jo Boaler é professora de Educação Matemática na Universidade de Stanford (EUA) e cofundadora do YouCubed, site criado para oferecer a professores e pais recursos e ideias para que eles inspirem e incentivem os estudantes para conhecer a Matemática. Boaler é analista para testagem do Pisa na OCDE e autora do primeiro Curso On-line Aberto e Massivo (MOOC) de ensino e aprendizado de Matemática.
Para saber mais
YouCubed: www.youcubed.org/pt-br
Fabio Martins de Leonardo é licenciado em Matemática pela USP e editor executivo de Matemática na Moderna.
Romenig da Silva Ribeiro é mestre em Ciência da Computação pela USP e editor de Matemática na Moderna.