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Exclusão digital no Brasil: um universo a ser desconstruído

A pandemia escancarou os problemas de desigualdade social: crianças mais pobres tiveram índices mais baixos de alfabetização na retomada. 

School girl of Indian ethnicity seating at corridor with laptop . Coronavirus Outbreak. Lockdown and school closures. Indian school small girl watching online education classes at home. COVID-19 pandemic forces children online learning.

texto  Ivan Siqueira

A expansão da internet a partir da década de 1990 renovou a utopia de uma sociedade menos desigual devido ao potencial acesso ao conhecimento pela adoção, difusão e utilização das Tecnologias de Comunicação e Informação (TIC), mas logo se verificou que os benefícios e as oportunidades não seriam distribuídos equitativamente. A expressão digital divide emergiu como um lembrete das dificuldades para as promessas de inclusão numa publicação oficial do US Department of Commerce’s National Telecommunications and Information Administration (1999) (Departamento Americano de Telecomunicações e Informação do Comércio).  

Frequentadora assídua nas Ciências Sociais e nas Humanidades, comumente traduzimos digital divide como “exclusão digital”, “desigualdade digital”, “fosso digital” e “brecha digital” (mais usado em espanhol). A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE [do inglês OECD – Organisation for Economic Co-operation and Development], 2001) traz a seguinte definição:  

“[…] refere-se à desigualdade entre indivíduos, famílias, empresas e áreas geográficas em diferentes níveis socioeconômicos relacionados a oportunidades de acesso às TIC e à sua utilização na internet para atividades variadas. A desigualdade reflete várias diferenças entre e dentro dos países” (tradução livre). 

Van Dijk (2017) sublinha que a expressão traz implicitamente quatro pressuposições problemáticas:  

  1. A existência de uma simples divisão entre dois grupos e um fosso entre eles; 
  2. A realidade única de uma lacuna muito difícil de ser superada; 
  3. Uma desigualdade absoluta entre incluídos e excluídos; 
  4. Uma condição permanente numa situação estática. 

Diferentemente da exclusão, que aponta para a inacessibilidade, a realidade mostra que a desigualdade abriga uma variedade de acessos e usos, alguns mais desiguais do que outros. Existem distintas realidades sociais e pessoais que concorrem para o fenômeno da desigualdade digital, mesmo dentro de um idêntico segmento de gênero, idade, raça/etnia e renda – a deficiência é uma delas. Portanto, há múltiplas dimensões de desigualdades digitais, mas isso não deve indicar que não haja exclusão, e sim que a realidade é majoritariamente diversa e mais complexa. Com a crise em decorrência da covid-19 e o posterior empobrecimento da população, famílias inteiras se tornaram desabrigadas e se veem em situação de rua. Aquelas que tinham algum acesso digital passaram a não ter nenhum. 

O desenvolvimento contínuo das TIC coloca desafios que se superpõem a outros existentes. Van Dijk lembra que os primeiros estudos enfatizavam o acesso (computadores e conexão) e suas correlações sociais e demográficas: renda, educação, idade, gênero e raça/etnia. Depois, o foco se voltou para as habilidades e os usos das TIC, assim como as decorrências do acesso ou a sua interdição. Foram sugeridas outras dimensões de desigualdades: second-level divide (segundo nível de desigualdade) (Hargittai, 2002), usage gap (desigualdade de uso), knowledge gap (desigualdade de conhecimento), deepening divide (aprofundando a desigualdade) (Van Dijk, 2005). É que “o problema da desigualdade digital não termina com o acesso físico, mas efetivamente começa quando o uso das mídias digitais é incorporado ao cotidiano” (Van Dijk, 2017, p. 2 [tradução livre]).  

Na contemporaneidade, são muitas as metodologias e teorias disponíveis na literatura internacional:  

  1. Teoria da Adoção e Difusão (ADT);  
  2. Modelo de Acesso à Tecnologia Digital (Van Dijk);  
  3. Teoria Unificada de Aceitação;  
  4. Uso de Tecnologia (UTAUT) e Modelo de utilização de Tecnologia de Reconhecimento Espacial (SATUM). Essas teorias buscam abarcar a complexidade do fenômeno da desigualdade digital (Pick; Sarkar, 2016).  

Em síntese, são recomendadas as seguintes dimensões de análise:  

  1. Disponibilidade de conexão e de equipamentos compatíveis com as necessidades de uso.  
  2. Preços sustentáveis e acessíveis à aquisição de serviços e equipamentos.  
  3. Qualidade de serviços e equipamentos correlacionados ao uso.  
  4. Percepção social de necessidade, benefícios, relevância e conhecimento dos recursos digitais.  
  5. Segurança na aquisição e uso dos recursos.  
  6. Competências digitais para manejar as complexas infovias da internet. 

Em 2016, a Internet Society fez um estudo global sobre mudanças e impactos na internet em 5 ou 7 anos: inteligência artificial, ameaças cibernéticas etc. Juntamente com as forças propulsoras, três áreas provavelmente sofreriam grandes impactos — a desigualdade digital era a primeira delas.

O desenvolvimento da internet aumentaria as desigualdades digitais se ações não fossem realizadas. O gráfico ao lado resume os elementos de mudança e as áreas de impacto (Internet Society, 2017). Não sofremos esse impacto no Brasil a partir da pandemia de covid-19? 

Com o fechamento das escolas a partir de março de 2020, houve um exponencial agravamento das condições de aprendizagem na educação básica, particularmente na educação infantil e nos anos iniciais. O percentual de crianças não alfabetizadas no início do Ensino Fundamental I saltou de 25% em 2019 para 40% em 2021, mas para as crianças pretas e pardas, respectivamente, o aumento foi 28,8% para 47,4%, e 28,2% para 44,5%. Para as brancas, de 20,3% para 35,1%. Para as mais pobres, de 33,6% para 51%. Para as ricas, de 11,4% para 16,6% (Todos pela Educação, 2021, p. 3). 

No mundo todo verificou-se a dificuldade de adaptar as experiências pedagógicas presenciais para o universo on-line na educação infantil, mas as possibilidades de atuação na educação secundária teriam sido melhores se as condições estruturais fossem menos desiguais. Em 2018, o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), avaliou a competência de leitura no mundo digital aos 15 anos. Nosso resultado mostrou que aproximadamente 50% não souberam como avaliar a credibilidade de fontes de informação na internet, nem diferenciar fatos e opiniões. Isso significa dificuldades consideráveis para fazer uma leitura significativa considerando texto, contexto digital, objetivos e estratégias de leitura (OCDE, 2021, 45). Infelizmente, a pandemia agravou a situação.  

Em 2019, antes da pandemia, 74% da população brasileira acessava a internet, mas havia no país 20 milhões de domicílios sem internet, o que representava aproximadamente 47 milhões de pessoas desconectadas. A boa notícia é que avançamos consideravelmente: 50% das classes D e E já tinham internet em suas casas (eram 30% dois anos antes). Também alcançamos um equilíbrio entre as regiões: Norte, 74%; Nordeste, 71%; Sul e Sudeste, 75%; e Centro-Oeste, 76%. Mas persistem grandes desigualdades por renda: as classes A e B detinham, respectivamente, 99% e 95% dos domicílios com internet. A qualidade da conexão é outro ponto, visto que 99% dos usuários acessavam a internet pelo celular (Cetic, 2020). 

A dificuldade de acesso tem aspectos econômicos uma vez que a carga tributária brasileira é de 40% nas telecomunicações, a segunda maior do mundo. Nos países desenvolvidos, é cerca de 10%. Apesar disso, entre 2000 e 2020, o percentual de acesso cresceu significativamente (Data World Bank, 2022). 

Nesse período, foram arrecadados R$ 22,6 bilhões pelo Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), mas somente 1,2% foi usado para a expansão dos serviços, conforme previa a legislação (TCU, 2017, p. 52). Com a pandemia, as Leis 14.109/2020 e 14.173/2021 alteraram a Lei 9.998/2000: 

Art. 1o  É instituído o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), com as finalidades de estimular a expansão, o uso e a melhoria da qualidade das redes e dos serviços de telecomunicações, reduzir as desigualdades regionais e estimular o uso e o desenvolvimento de novas tecnologias de conectividade para promoção do desenvolvimento econômico e social. (Redação dada pela Lei n. 14.109, de 2020.) 

[…] § 2o Na aplicação dos recursos do Fust será obrigatório dotar todas as escolas públicas brasileiras, em especial as situadas fora da zona urbana, de acesso à internet em banda larga, em velocidades adequadas, até 2024. (Incluído pela Lei n. 14.109, de 2020 [grifos nossos]). 

É preciso acompanhar para que a lei seja cumprida e não se torne novamente promessa vaga em 2024, a exemplo do Plano Nacional de Educação (2014-2024). Precisamos urgentemente reduzir o abismo da desigualdade social para enfrentarmos como nação os desafios digitais, climáticos, econômicos, sociais e educacionais que as contingências da pandemia avolumaram e tornaram ainda mais complexas. 

A redução das diversas desigualdades digitais aqui elencadas implica mais do que o necessário desenvolvimento de competências digitais. Na verdade, é condição para tornar mensurável os princípios constitucionais de cidadania plena e capacidade para o mundo do trabalho numa era cujo fenômeno digital engloba múltiplas dimensões da vida humana.  

Nesse período de pandemia, vimos sofrendo o incontornável caráter global da economia e as muitas transformações disruptivas engendradas pelas complexidades políticas (guerras, inflação, profunda desunião nacional). Transpassados pela onipresença digital, os novos processos de inovação e redimensionamento das forças produtivas mudam o mundo, as mentes e as subjetividades. Por tudo isso, é ainda mais desafiador entoar a melodia do esperançar na expectativa de que busquemos de maneira coletiva um futuro melhor num país arraigadamente racista, desigual, sem projetos e por isso mesmo tão vulnerável. Sintonizar o país às demandas contemporâneas certamente exigirá diversas modalidades de inclusão digital.

Ivan Siqueira 
é Doutor em Letras pela FFLCH/USP. Foi professor da Educação Básica. É professor titular no Instituto de Humanidades, Artes e Ciências na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atualmente, é Membro do Conselho Nacional de Educação (CNE). 

Para saber mais

  • BRASIL. Relatório anual de atividades: 2016/Tribunal de Contas da União. Brasília: TCU, 2017. Disponível em: mod.lk/ed23_pa1. Acesso em: 8 set. 2022. 
  • CENTRO REGIONAL DE ESTUDOS PARA O DESENVOLVIMENTO DA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO (CETIC.BR). TIC Domicílios 2019. Principais resultados, 20 maio 2020. Disponível em: mod.lk/ed23_pa2. Acesso em: 8 set. 2022.   
  • HARGITTAI, E. “Second-level digital divide: Differences in people’s online skills”. First Monday, v. 7, n. 4, 2002. Disponível em: mod.lk/ed23_pa3. Acesso em: 8 set. 2022.  
  • OECD. “Understanding the digital divide”. OECD Digital Economy Papers 49, OECD Publishing, Paris, 2001. Disponível em: mod.lk/ed23_pa4. Acesso em 8 set. 2022.   
  • OECD. 21st-Century Readers: Developing Literacy Skills in a Digital World, Pisa, OECD Publishing, Paris, 2021. Disponível em: mod.lk/ed23_pa5. Acesso em: 8 set. 2022.  
  • THE WORLD BANK. The World Bank Data. Disponível em: mod.lk/ed23_pa6. Acesso em: 8 ago. 2022.  
  • TODOS PELA EDUCAÇÃO. Impactos da pandemia na alfabetização de crianças. Fev. 2021. Disponível em: mod.lk/ed23_pa7. Acesso em: 8 set. 2022.    
  • VAN DIJK, G. “Digital Divide: Impact of Access”. The International Encyclopedia of Media Effects. John Wiley & Sons, Inc, 2017. Disponível em: mod.lk/ed23_pa8. Acesso em: 8 set. 2022.    
  • VAN DIJK, G. The deepening divide: Inequality in the information society. Londres: Sage, 2005. Disponível em: mod.lk/ed23_pa9. Acesso em: 8 set. 2022.
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