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Covid-19: desinformação e o analfabetismo científico brasileiro

O que a Covid-19 e as notícias falsas nos mostram sobre a alfabetização científica do brasileiro e a relação entre o ambiente acadêmico, a escola e a população?

Texto  Laura Celotto Canto Leite

A covid-19 surgiu em dezembro de 2019, em Wuhan, na China, e, em pouco tempo, começou a se espalhar por outros países, chegando oficialmente ao Brasil em fevereiro de 2020. Com a pandemia, vimos um aumento substancial na criação e na divulgação de diversas notícias falsas sobre a doença no país. Alguns estudos mostram que, entre março e abril de 2020, cerca de 90% das notícias falsas compartilhadas por redes sociais como WhatsApp, Facebook e Instagram se referiam ou a métodos caseiros não testados cientificamente para prevenir ou curar a Covid-19 ou à ideia fantasiosa de que o Sars-CoV-2 foi criado como estratégia política. 

Em tempos nebulosos como estes, diante de uma pandemia de surgimento inevitável — mas de prevenção e gestão pública possíveis —, deparamo-nos com diversas informações falsas, sem nenhum embasamento científico, e com divulgação de pensamentos abstratos e infundados que levam a comportamentos antiquados, como o negacionismo diante de vacinas comprovadamente eficazes. Essa simples percepção da dinâmica social que estamos vivendo, não só no Brasil, mas em outros países, é um indicativo que prenuncia o tamanho da população que pode ser considerada analfabeta ou pouco alfabetizada cientificamente.

Em pleno século 21, em meio a tantas descobertas científicas e do poder de divulgação de informações da internet, parece que voltamos para o século 15, quando a peste bubônica assolava a população da Europa e de parte da Ásia e tudo o que se podia fazer era torcer por uma cura ou fim milagroso da doença. Pois bem, no caso da Covid-19, a prevenção foi trazida pela tão esperada vacina e, com ela, a possibilidade de diminuição dos casos, mas uma parcela bastante considerável da nossa população continua a preferir não se vacinar, por medo de tudo o que foi disseminado pelas notícias falsas. Imaginem o que a população europeia do século 14 pensaria ao descobrir que seus descendentes negariam a prevenção tão pedida por eles contra uma doença. Negacionistas sempre existiram, como é exemplificado por eventos históricos como a Revolta da Vacina (1904), mas o movimento tem sido potencializado pela facilidade de comunicação promovida pela internet.

Hoje, somos ainda mais suscetíveis a pandemias do que a população do século 14 ou a de 1918, que enfrentou a gripe espanhola, pois, entre outros motivos, estamos nos locomovendo de maneira bem mais rápida a regiões muito mais distantes. No início da pandemia, Yuval Noah Harari, professor de História da Universidade Hebraica de Jerusalém e famoso por suas obras de divulgação científica, como Sapiens: uma breve história da humanidade, escreveu o artigo “Na batalha contra o coronavírus, faltam líderes à humanidade”, publicado na revista Time, em que fala sobre a globalização permitir a dispersão muito mais rápida de um vírus, mas também ser a responsável pela distribuição mais rápida de uma possível cura ou prevenção.

Se, por um lado, estamos sob a ameaça das notícias falsas, por outro, a globalização nos trouxe a vantagem da rapidez no compartilhamento de informações reais e estudos avançados — o que pode ser o ponto de virada contra um novo patógeno e outras ameaças. Mesmo com tantas informações confiáveis, por que a população ainda não está bem informada? Porque a rapidez de um clique de compartilhamento em qualquer rede social também facilita a divulgação de informações falsas, principalmente vindas de pessoas (familiares ou amigos) que nos parecem relevantes ou bem-informadas. Compartilhamos o que recebemos sem acessar o nosso senso crítico e a apuração dos dados. 

O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, utilizou a frase “nós não estamos lutando apenas contra uma pandemia, nós estamos lutando contra uma infodemia” durante a Conferência de Segurança de Munique de 2020 para descrever este momento pandêmico. Não estamos enfrentando apenas a Covid-19 e problemas econômicos decorrentes dela: a situação é extremamente crítica quando falamos sobre desinformação e disseminação de notícias com conteúdos equivocados e, até mesmo, perigosos para a saúde de quem os segue. Temos chefes de Estado, médicos e outros profissionais ao redor de todo o planeta que continuam a incentivar, após um ano de pandemia, a ingestão de remédios sem eficácia comprovada contra a infecção pelo Sars-CoV-2.

Nesse contexto de imersão em inúmeras informações, o cidadão que não é alfabetizado cientificamente — aqui, não estamos falando em classe social — não consegue detectar erros conceituais básicos em notícias falsas, se sente perdido em meio ao excesso de informação e escolhe o que mais lhe convém, de acordo com opinião pessoal, política, religiosa ou, ainda, movido pela antipatia ao divulgador de notícias, jornal ou site. E, então, nos encontramos em uma sociedade em que a opinião pessoal, baseada em qualquer pensamento, que não o científico, acaba se sobrepondo, nas conversas e práticas cotidianas, a evidências, argumentos e estudos científicos.

A relação entre a academia e a sociedade

As universidades públicas e outros institutos e órgãos têm como função, de forma breve, a pesquisa científica e o desenvolvimento de tecnologia visando à melhora na qualidade ambiental e de vida dos integrantes da sociedade. Por esse motivo, esses ambientes deveriam estar conectados com a população constantemente, mas faltam políticas públicas, conhecimento da população e desenvolvimento de mais projetos que efetivem essa conexão. Diante do desconhecido, diversas notícias falsas sobre o ambiente acadêmico são compartilhadas todos os dias nas redes sociais.

O problema da divulgação dos estudos e descobertas das universidades públicas é um pouco maior do que a discussão sobre o ambiente acadêmico estar ou não disponível para acolher a população em geral: a maioria das pessoas não sabe como funciona a academia, nem que pode conhecer mais sobre o que é produzido para a própria população dentro desse ambiente.

Afinal, como os cientistas podem levar informação de qualidade e conhecimento para a população fora da academia? Divulgação científica! Uma pessoa que pouco lê, que pouco se informa, não irá, de repente, passar a se interessar por ler artigos científicos, muitas vezes em outras línguas e bastante complexos. Fazer divulgação científica, que seja chamativa, rápida, informativa e até mesmo divertida, é mais do que obrigação dos acadêmicos e cientistas, é uma necessidade social.

Desde o início da pandemia, muitos laboratórios de universidades ou grupos de cientistas criaram conteúdos diferenciados para as redes sociais. Muitas lives foram oferecidas por institutos, museus, laboratórios, e por cientistas em suas casas. Canais que já eram conhecidos cresceram, principalmente os que trazem informações confiáveis sobre o Sars-CoV-2 e a pandemia de Covid-19.

A função da escola no combate às notícias falsas e na alfabetização científica

A escola e seus educadores têm como função centralizadora promover a autonomia no estudo e no aprendizado dos estudantes, o que, se for feito, contribui para o protagonismo do aluno em seu desenvolvimento científico, escolar e de cidadão informado. Dentro dessa situação, é essencial que a escola promova atividades que estimulem a empatia e a formação de uma visão voltada para a sociedade e não para o individualismo. Quando essas qualidades são formadas, junto com uma visão positiva da Ciência, o sujeito passa a se posicionar de forma mais justa e ética.

Não estamos lutando apenas contra uma pandemia, estamos lutando contra uma infodemia.”

Tedros Adhanom Ghebreyesus

Voltando um pouco ao início, você reparou o número de pessoas que se nega a tomar a vacina contra Covid-19, utilizando argumentos enviesados, errôneos e sem embasamento científico algum? Pessoas que se negam a entender que sua postura é extremamente egoísta em relação à sociedade. Sabemos que a vacina só funciona se for administrada em uma grande parcela da população, pois, se isso não ocorrer, o vírus, que apresenta altas taxas de mutação, passa a ter outras variedades e a causar, inclusive nas pessoas vacinadas, outra variedade da doença, provocando uma nova onda de infecções e uma consequente nova pandemia. Indivíduos pertencentes a grupos populacionais que, por falta de estudos científicos conclusivos, ainda não podem receber a vacina (como gestantes, menores de 18 anos e pessoas com reação anafilática contra algum dos componentes da vacina) dependem de o resto da população ser imunizada para que possam se beneficiar da tão falada imunidade de rebanho.

Essa é uma conclusão a que jovens estudantes de Ciências da Natureza (Fundamental 2 e Médio) chegam ao estudar os princípios básicos de epidemias e pandemias, vacinas, prevenção, mutação de vírus — e consequente formação de novas variedades desses microrganismos e da doença causada por eles —, antigas epidemias e pandemias e a erradicação de doenças (como a varíola, primeira doença para a qual foi criada uma vacina). No entanto, curiosamente, muitos adultos que não atuam na área científica não conseguem perceber o mesmo que as gerações mais novas, não aceitam e, pior, perdem tempo contestando informações validadas cientificamente em vez de se informar em fontes confiáveis.

Com as mudanças na educação propostas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e outras tendências que surgiram na educação, espera-se que as escolas e os educadores abordem os temas relevantes para o desenvolvimento de cidadãos bem-informados, que consigam tomar decisões responsáveis para si e para a sociedade. É essencial que o ensino deixe de flertar constantemente com o tradicionalismo e passe a estimular o protagonismo dos estudantes, utilizando-se de técnicas de ensino como as metodologias ativas, que não deixam a curiosidade humana se esvair. É necessário que, como estudantes, os futuros adultos aprendam a procurar e identificar informações confiáveis, assim como validá-las quando recebidas em qualquer tipo de formato (conversas, vídeos, textos), acompanhadas ou não de fontes, assim como saber pesquisar se a fonte citada é verídica ou se o nome de uma instituição de credibilidade ou de um especialista foi utilizado apenas como suporte a uma mentira.

Apenas com a permanência da curiosidade e do desenvolvimento adequado de senso crítico dos jovens, desenvolveremos uma sociedade mais saudável, cunhada em conhecimento científico, com cidadãos que escolham adequadamente seus representantes, contestem suas decisões e condenem a divulgação de notícias falsas.

LAURA CELLOTO CANTO LEITE é bacharela e licenciada em Ciências Biológicas pela Unicamp, professora de Ciências da Natureza e de Biologia em escolas particulares de Campinas (SP) e autora de livros didáticos de Ciências da Natureza.

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