Pelos caminhos da Matemática
É hora de desvendar os mistérios da matemática e entender como a neurociência pode ser uma aliada no combate às defasagens de aprendizagem desde os primeiros anos escolares.
Texto: Tiago Eugênio
A história de John Nash, retratada em Uma mente brilhante, exemplifica como a matemática e a mente humana podem superar desafios extraordinários. Nash, um pesquisador brilhante que lutou contra a esquizofrenia, identificou padrões complexos em meio ao caos, seguindo caminhos não convencionais que oferecem lições valiosas para o ensino da Matemática hoje. Assim como Nash teve que desenvolver métodos próprios para compreender o mundo ao seu redor, os sistemas educacionais modernos precisam repensar a maneira como a matemática é ensinada.
O ensino de Matemática no Brasil e no mundo enfrenta desafios consideráveis, sobretudo em um cenário em que essas habilidades são cada vez mais essenciais para a compreensão e a atuação em um planeta altamente tecnológico e interconectado.
Tradicionalmente, o ensino da disciplina tem sido estruturado em torno de um currículo linear, focado em operações básicas, resolução de problemas e conceitos abstratos. No entanto, muitos alunos encontram dificuldades em acompanhar esse modelo, seja por falta de conexão entre o conteúdo e suas experiências diárias, seja pela natureza abstrata dos conceitos matemáticos.
Os dados de exames nacionais, como o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e a Prova Brasil, apontam que um número alarmante de estudantes brasileiros enfrenta dificuldades significativas em Matemática. Segundo os resultados de 2019, cerca de 60% dos alunos do 5o ano e aproximadamente 95% dos alunos do 9o ano da rede pública não alcançaram os níveis desejados de proficiência matemática.
Esses resultados indicam que muitos alunos apresentam deficiências graves em habilidades básicas, como operações aritméticas, compreensão de frações e resolução de problemas, o que evidencia a extensão do desafio.
Entre as crianças em idade escolar, uma parcela significativa apresenta dificuldades no aprendizado da Matemática. Essas dificuldades podem variar desde problemas temporários de compreensão até transtornos específicos de aprendizagem, como a discalculia. Estima-se que entre 3% e 6% das crianças brasileiras sofram de discalculia, um transtorno que afeta a capacidade de manipular números e realizar operações matemáticas.
A cognição numérica
A cognição numérica forma a base neurocognitiva para a compreensão dos números e suas quantidades ao longo do desenvolvimento infantil.
Inicialmente, essa capacidade se manifesta como uma percepção pré-simbólica de grandeza (como volume, área e comprimento) e de quantidades (como coleções de objetos). Bebês de seis meses já conseguem discriminar grandes quantidades, mas essa habilidade é limitada tanto em extensão quanto em precisão. A capacidade de discriminação melhora com a idade, e as pequenas coleções de até quatro elementos são processadas com exatidão (subitizing), enquanto que para quantidades maiores a avaliação é aproximada.
O neuropsicólogo Michael von Aster e a psicóloga Ruth Shalev propuseram o Modelo de Desenvolvimento da Cognição Numérica (tabela ao lado), que descreve o desenvolvimento dessa capacidade em quatro passos.
O primeiro, chamado de cardinal, refere-se à representação numérica inata e permite um entendimento básico dos números na infância. O segundo, verbal, envolve a associação de números com palavras ouvidas e escritas. O terceiro, arábico, ocorre no ensino fundamental, quando as crianças aprendem a associar algarismos arábicos às palavras que representam quantidades. O quarto, ordinal, é marcado pela criação de uma linha numérica mental que organiza as quantidades em um continuum, desenvolvendo-se ao longo da escolarização e da vida adulta. Cada passo é pré-condição para o seguinte, formando um sistema interligado para a compreensão numérica.
A abordagem tradicional do ensino de Matemática, muitas vezes baseada em métodos expositivos e repetitivos, pode ser insuficiente para atender às necessidades dos estudantes. A falta de personalização no ensino, associada à pressão por resultados rápidos, acaba por alienar alunos que necessitam de um ritmo de aprendizado diferente ou de métodos mais interativos. Diante desse cenário, surge a necessidade de repensar as metodologias de ensino, integrando novas tecnologias e abordagens baseadas em evidências para criar um ambiente de aprendizado mais inclusivo e eficaz.
Rastreio das habilidades preditoras
A avaliação e a estimulação das habilidades preditoras é fundamental para garantir uma base sólida para a chamada cognição matemática. Essas habilidades formam os alicerces sobre os quais conceitos matemáticos mais complexos são construídos e para expandir a cognição numérica.
Avaliar e fortalecer essas competências desde cedo asseguram que as crianças estejam bem-preparadas para os desafios matemáticos futuros, promovendo um aprendizado mais eficaz e prevenindo dificuldades subsequentes. Com uma compreensão clara dessas habilidades preditoras, educadores e profissionais podem implementar intervenções específicas e personalizadas, ajudando a maximizar o potencial de cada aluno na área de matemática.
Habilidades
- Magnitude não simbólica: capacidade de estimar e comparar quantidades sem usar números específicos.
- Noção de magnitude simbólica: compreensão de números como representações de quantidades e sua relação entre si.
- Representação simbólica da magnitude: capacidade de visualizar e manipular números de forma simbólica, como em uma linha numérica.
- Contagem numérica: habilidade de contar objetos ou números sequencialmente e compreender a ordem numérica.
- Valor posicional: compreensão do sistema numérico decimal e importância das posições dos dígitos em um número.
- Transcodificação numérica: habilidade de converter números entre diferentes formas de representação, como palavras e dígitos.
- Fato numérico: memorização de fatos matemáticos básicos, como tabuada, que facilitam cálculos mentais rápidos.
- Resolução de problemas: capacidade de aplicar conhecimentos matemáticos para resolver questões práticas e abstratas.
Ao rastrear e avaliar as habilidades preditoras nos primeiros anos da jornada escolar, é possível identificar precocemente dificuldades de aprendizagem e orientar intervenções que podem transformar a trajetória de aprendizado de um aluno e prepará-lo para conceitos matemáticos mais complexos.
Essa ideia pode ser comparada ao filme O jogo da imitação, em que Alan Turing e sua equipe trabalham para decifrar o código Enigma, utilizado durante a Segunda Guerra Mundial. Assim como Turing teve que identificar padrões e falhas no código para quebrá-lo com sucesso, os educadores precisam mapear as habilidades matemáticas das crianças desde cedo, identificando quaisquer dificuldades ou lacunas que possam impedir o progresso.
Nesse filme, a descoberta de uma abordagem para decifrar o código foi essencial para o sucesso da missão, e, em última análise, para salvar milhões de vidas. Da mesma forma, ao rastrear e avaliar habilidades como contagem numérica, valor posicional e resolução de problemas, os educadores podem intervir antes que as dificuldades se transformem em obstáculos maiores.
Para garantir que o rastreamento e a avaliação das habilidades matemáticas sejam eficazes, a tecnologia se torna uma aliada indispensável. Ferramentas digitais permitem que educadores realizem diagnósticos precisos e intervenções personalizadas, identificando rapidamente áreas nas quais as crianças podem estar enfrentando dificuldades. Um exemplo disso é a Clickneurons, uma plataforma desenvolvida para auxiliar na avaliação de habilidades cognitivas e matemáticas em crianças (Hennemann; Eugênio, 2024).
O córtex parietal é particularmente importante para o processamento numérico e espacial, enquanto o córtex pré-frontal desempenha um papel crucial no raciocínio lógico, no planejamento e na resolução de problemas. O aprendizado matemático também depende de habilidades cognitivas básicas, como a memória de trabalho, a atenção e o controle inibitório. Essas funções executivas são essenciais para que os alunos possam manipular informações matemáticas, resolver problemas complexos e aplicar conceitos em diferentes contextos.
Contudo, em um mundo cada vez mais acelerado, com informações fragmentadas e em grandes volumes, o cérebro é constantemente desafiado a processar e integrar esses dados. A sociedade moderna, com seus vídeos curtos e conteúdos de consumo rápido, não favorece o aprofundamento necessário para a consolidação de conceitos.
Pesquisas mostram que o aprendizado profundo, especialmente em disciplinas como Matemática, exige um tempo de exposição prolongado e repetitivo ao conteúdo, para que as informações sejam devidamente processadas e armazenadas na memória de longo prazo (Soderstrom; Bjork, 2015). Ou seja, aprender matemática requer tempo, repetição e reflexão – processos incompatíveis com a cultura de gratificação instantânea e superficialidade do consumo de informação nos dias de hoje.
A repetição espaçada é uma técnica particularmente eficaz para a retenção de conceitos matemáticos, pois permite que o cérebro reforce as conexões neurais necessárias para o entendimento e a aplicação desses conceitos (Rohrer, 2015). A consolidação dessas informações, por sua vez, depende de uma prática deliberada e constante, que vai muito além do consumo passivo e fragmentado de informações.
Para alunos com discalculia ou Transtorno do Espectro Autista (TEA), o processo de aprendizado da matemática pode ser ainda mais desafiador. A discalculia, hoje conhecida como Transtorno Específico de Aprendizagem com prejuízo na Matemática, por exemplo, é associada a uma disfunção na região parietal do cérebro, que prejudica a capacidade de manipular números e compreender relações espaciais (Butterworth; Varma; Laurillard, 2011).
No caso do TEA, os déficits podem se manifestar em várias áreas, desde dificuldades em compreensão de conceitos abstratos até problemas com a generalização de habilidades aprendidas em novos contextos (Pellicano, 2013). Esses desafios ressaltam ainda mais a necessidade de abordagens de ensino que considerem as diferenças individuais no processamento cerebral e ofereçam suporte personalizado para cada aluno.
A crítica à cultura do consumo rápido de informações também se aplica à educação. A Matemática, como disciplina, não pode ser reduzida a pedaços de informações que podem ser rapidamente consumidos e descartados. Exige um processo contínuo de construção e revisão, que deve ser respeitado e valorizado, mesmo em um mundo que parece estar sempre correndo.
Assim, em vez de encorajar práticas de aprendizado que se alinhem com a tendência da superficialidade, é essencial que os educadores e os sistemas educacionais promovam um ambiente que permita tempo para a reflexão, a prática repetitiva e o aprendizado profundo, assegurando que os alunos desenvolvam uma compreensão sólida e duradoura dos conceitos matemáticos.
Tiago Eugênio é psicobiólogo e neuropsicopedagogo clínico e autor de livros como Aula em jogo e da coleção Caminhos neuroeducativos. É diretor executivo da Clickneurons.
Para saber mais
- BUTTERWORTH, B.; VARMA, S.; LAURILLARD, D. (2011). Dyscalculia: From brain to education. Science, 332(6033), 1049-1053. doi:10.1126/science.1201536.
- EUGÊNIO, T. (2024). Aula em Jogo: descomplicando a gamificação para educadores. Editora Évora.
- HENNEMANN, A.; EUGÊNIO, T. (2024). Coleção Caminhos Neuroeducativos – Volume 1: identificação precoce das dificuldades e transtornos de aprendizagem. Editora Évora.
- PELLICANO, E. (2013). Testing the Predictive Power of Cognitive Atypicalities in Autistic Children: Evidence from a 3-Year Follow-Up Study. Autism Research, 6(4), 258-267. doi:10.1002/aur.1286.
- ROHRER, D. (2015). Student instruction should be distributed over long time periods. Educational Psychology Review, 27(4), 635-643. doi:10.1007/s10648-014-9284-z.
- SODERSTROM, N. C.; & BJORK, R. A. (2015). Learning versus performance: An integrative review. Perspectives on Psychological Science, 10(2), 176-199. doi:10.1177/1745691615569000.
- VON ASTER, M.; SHALEV, R. S. Number development and developmental dyscalculia. Developmental Medicine & Child Neurology, v. 49, p. 868-873, 2007.