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Competências socioemocionais: efetividade e avaliação andam de mãos dadas  

Para além dos modismos, escolas e instituições buscam caminhos para garantir bons resultados no trabalho com os alunos. 

Texto:  Fernando Leal

“Vamos fazer um brinde à mudança. Todas as vozes que disseram que vocês não podem serão silenciadas. Tudo que diz que as coisas não vão mudar desaparecerá.” Assim, a professora Erin Gruwell convida seus alunos, em pé, em sala de aula e ainda um tanto surpresos, a pegarem os livros que serão lidos no semestre que se inicia. O evento marca um momento especial, em que ela própria celebra um vínculo com a turma de Ensino Médio que seria impensável meses antes. 

O esforço de aproximação dessa professora com os jovens, retratado no filme Escritores da liberdade, começou de forma tímida, com abordagens mais tradicionais e baseadas quase exclusivamente no conteúdo a ser ensinado, de Inglês e Literatura. Após tentar vários caminhos, ela dá os primeiros passos na direção de conquistar e motivar o grupo quando realiza uma dinâmica em que todos são convidados a lembrar de amigos e amigas vítimas da violência das gangues que dominam o bairro em que vivem. E mais: ela propõe que eles escrevam um diário, na forma de uma narrativa ou de poemas (não importa), e sem que isso tenha impacto na avaliação formal dos alunos. “Todos têm a sua própria história e é importante que contem essa história, até para vocês mesmos. Não vou dar notas para o que escreverem. Como posso dar um A ou um B por falarem a verdade? E não vou ler, a menos que me deem permissão”, diz ela.  

À medida que as escolas brasileiras vêm se debruçando crescentemente sobre as competências socioemocionais – inclusive por conta da exigência da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) –, há uma busca natural por resultados concretos muitas vezes experimentando rotas até encontrar aquela que propicia a comunicação mais efetiva com determinado grupo de estudantes, como ocorre com a professora do filme. Ao mesmo tempo, porém, já é possível contar com o apoio de experiências positivas, modelos organizativos testados na prática, além de abordagens pedagógicas e propostas de avaliação indicadas por especialistas. 

“Sempre trabalhamos visando a uma formação integral, desenvolvendo habilidades de liderança e empatia, por exemplo”, destaca Solange Petrosino, diretora acadêmica da Fundação Santillana. “A principal diferença, agora, é que sabemos da necessidade de avaliar os projetos colocados em prática, a fim de descobrir se estamos alcançando os resultados esperados.” 

Tal premissa influencia diretamente o trabalho do dia a dia em sala de aula, demandando, entre outras medidas, uma estratégia que vai da definição de objetivos à mensuração das respostas dos estudantes, passando pela formação dos professores e o envolvimento da comunidade escolar, sempre tendo no horizonte a transversalidade e a efetividade das ações.  

Da portaria à sala de aula 

O caminho a ser percorrido pelas escolas começa frequentemente com a adoção de uma aula específica, geralmente semanal, para trabalhar as competências socioemocionais com as crianças e os jovens. No entanto, a complexidade desse campo demanda que algumas características estejam presentes desde os primeiros passos. Uma delas é a promoção de atividades relacionadas a situações reais que estimulem a reflexão e o debate, sempre com ajuda de um professor mediador que saiba, por exemplo, fazer perguntas que ajudem na compreensão das habilidades em foco. “No que diz respeito à sala de aula, é fundamental que os temas e valores essenciais perpassem todas as disciplinas e sejam incorporados concretamente à estrutura curricular”, afirma Solange Petrosino.  

Localizada na zona oeste de São Paulo, a Escola Vera Cruz desenvolve um trabalho de destaque voltado à formação integral de crianças e jovens, e a capacitação dos professores é respaldada pelo Instituto Superior de Educação. “Assim como acontece na alfabetização e no ensino das disciplinas regulares do Fundamental e do Médio, é preciso que haja intencionalidade no trabalho com as competências socioemocionais”, pontua a professora Adriana Ramos, que coordena o curso de pós-graduação “Relações interpessoais na escola: das competências socioemocionais à personalidade ética”. 

Essa intencionalidade ocorre em várias dimensões: na estruturação do Projeto Político Pedagógico da escola; na proposição de ações concretas de curto, médio e longo prazos; e nas relações com a comunidade escolar, incluindo, além dos estudantes, professores, gestores, funcionários e familiares. “Aproveitando os conteúdos curriculares, as diversas disciplinas podem abrir espaço para a discussão sobre o que acontece atualmente, sobre as relações na sociedade e sobre as interações entre os próprios estudantes”, explica Adriana.  

Idealmente, o desenvolvimento das competências socioemocionais no âmbito da educação evolui para se tornar parte indissociável da cultura de aprendizagem, como explica a professora Solange Petrosino. Desse modo, passam a influenciar a gestão escolar, as práticas dos professores, o comportamento dos funcionários e as relações entre a instituição e a comunidade. “Uma escola que promove a empatia, por exemplo, deve ter um segurança na porta que seja empático. Todos precisam vivenciar os valores centrais da instituição na convivência cotidiana”, afirma.  

O Colégio Elvira Brandão, instalado na zona sul da capital paulista, tem uma atuação baseada nessa visão ampla das competências socioemocionais. “Entendemos que elas estão presentes em todo o trabalho realizado pela escola, desde os projetos interdisciplinares até as escolhas curriculares para cada área”, relata Júlia Arnold, líder de Orientação Educacional. “Por sermos uma escola sociointeracionista, buscamos, por meio de nossas práticas educativas, promover o acolhimento e o desenvolvimento pleno de nossos estudantes, compreendendo a escola como um espaço democrático e investindo na participação e no protagonismo das crianças e dos adolescentes.” 

Tal postura se reflete, inclusive, nos momentos de avaliação da evolução dos estudantes, combinando a reflexão coletiva sobre as temáticas trazidas e a conversa individual sobre desafios específicos. A ideia é caminhar para instrumentos de autoavaliação para todos os segmentos, algo que acontece atualmente no Ensino Médio”, explica a gestora.  

Organizando o projeto da escola 

Outra característica decisiva para o sucesso no trabalho com as competências socioemocionais é a sistematização do projeto da escola — ou da rede de ensino — nesse campo, considerando as características do público atendido e cada faixa etária.  

O Instituto Ayrton Senna construiu um modelo organizativo que traz cinco macrocompetências: abertura ao novo, autogestão, engajamento com os outros, amabilidade e resiliência emocional — buscando uma abrangência de aspectos emocionais alinhada a evidências validadas em diversos países, incluindo o Brasil. As macrocompetências, por sua vez, foram desdobradas em 17 competências correlatas: determinação; foco; organização; persistência; responsabilidade; empatia; respeito; confiança; tolerância ao estresse; autoconfiança; tolerância à frustração; iniciativa social; assertividade; entusiasmo; curiosidade para aprender; imaginação criativa e interesse artístico. 

“Trata-se de um instrumento que oferece uma base para o uso de estratégias voltadas a facilitar, avaliar e estimular o desempenho dos estudantes”, comenta Gisele Alves, psicóloga e gerente executiva do eduLab21, Laboratório de Ciências para Educação do Instituto Ayrton Senna. “Além disso, apoia os educadores no desenvolvimento de competências dos seus alunos, partindo das capacidades mais simples para as mais complexas.”  

Portanto, contar com uma sistematização desse tipo contribui para o trabalho do dia a dia com as competências socioemocionais, especialmente ao reunir grupos de características, em vez de analisar separadamente cada um dos inúmeros traços particulares que compõem a identidade humana. Gisele destaca ainda que as evidências disponíveis sobre a eficácia de estratégias de desenvolvimento socioemocional indicam a relevância de um planejamento de atividades conhecido pela sigla Safe

S

  • Sequencial: determinar situações variadas e sequenciais que possibilitem mobilizar de modo cada vez mais complexo a respectiva competência. 

A

  • Ativo: adotar metodologias ativas de ensino e de aprendizagem que coloquem o estudante em situações ativas na construção do conhecimento. 

F

  • Focado: garantir intencionalidade e tempo suficiente, definindo uma competência de cada vez como objeto de trabalho. 

E

  • Explícito: explicitar qual é a competência em foco e propor o estabelecimento de metas de desenvolvimento. 

Além disso, o planejamento deve prever a realização de avaliações formativas, capazes de mensurar a evolução dos estudantes e, ao mesmo tempo, promover o diálogo e a autorregulação. 

A hora de avaliar 

Como bem lembra a professora do filme Escritores da liberdade a seus alunos, as competências socioemocionais não são mensuráveis com base em questões do tipo certo e errado. Assim, vários especialistas recomendam a avaliação formativa por meio de rubricas estruturadas de acordo com níveis de desenvolvimento em dimensões específicas, trazendo descrições detalhadas e claras. 

Na prática, isso significa traduzir habilidades e valores em ações, da forma mais perceptível. “Como você sabe se uma pessoa é mais ou menos empática, por exemplo? Por suas atitudes e por aquilo que ela demonstra. Você não mede a empatia, mas a atitude que decorre dela”, explica Solange Petrosino, acrescentando que uma mesma competência socioemocional pode se desdobrar em mais de uma rubrica, a fim de captar uma gama variada de aspectos relacionados a ela.  

Na construção das rubricas, é fundamental descrever claramente a ação ou o comportamento a ser medido e criar uma escala, que pode ir, por exemplo, de “nunca faz” para “sempre faz”, passando por níveis como muito frequentemente e pouco frequentemente. A escala deve ser compreensível tanto pelos professores como pelos alunos – por isso mesmo, em alguns casos, como na Educação Infantil, é comum a utilização de símbolos e dos populares emojis.  

As avaliações mais tradicionais são as de observação, em que professores ou outros profissionais ficam responsáveis pela mensuração do progresso de crianças e jovens. No entanto, geralmente é recomendada a complementação com outros formatos, como a autoavaliação, quando todos são convidados a analisar suas próprias atitudes. Nesse caso, é importante que os alunos possam comparar suas respostas com as do professor ou da escola. “Assim ele entende como está se percebendo e como está sendo percebido, e isso é muito importante quando se trata de competências socioemocionais”, lembra Solange. No mesmo sentido, a avaliação pelos colegas também traz o elemento externo para o diálogo comparativo e costuma ser muito bem aceita tanto pelas crianças mais novas como pelos adolescentes.   

O Instituto Ayrton Senna possui uma iniciativa que une avaliação e desenvolvimento, tendo como foco a avaliação formativa baseada em rubricas, que é respondida pelos estudantes e serve como base para o trabalho em sala de aula, visando, por exemplo, ao autoconhecimento.  

Somente em 2022, essa aplicação prática do modelo organizativo do Instituto esteve presente em duas redes estaduais e em cinco redes municipais – totalizando quase 300 mil estudantes. Além disso, foram atendidos mais de 20 mil estudantes por meio da aliança com um parceiro. O público-alvo são os estudantes dos Anos Finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, assim como a equipe pedagógica das secretarias, diretores, coordenadores pedagógicos e docentes. 

Tão importante quanto realizar mensurações regulares e o monitoramento da evolução das turmas é traduzir os dados obtidos em planos de intervenção e até mesmo no replanejamento do projeto, a fim de lidar com desafios coletivos – resultados distantes dos objetivos estabelecidos, por exemplo – e com questões pontuais, incluindo crianças e jovens resistentes em relação a alguma atitude trabalhada. “Diante de resistências específicas, é essencial fornecer informações e subsídios que motivem o aluno a mudar, escapando de qualquer abordagem do tipo certo ou errado”, alerta Solange Petrosino.  

No esforço contínuo de busca pela atuação mais efetiva, com base nas escutas ativas das crianças e dos jovens e nos dados provenientes das avaliações, os professores dão apoio adequado por meio de formação conceitual e prática e de materiais pedagógicos. Mas não apenas isso. 

O Instituto Ayrton Senna vem implementando uma nova linha de pesquisa dedicada ao estudo das competências socioemocionais dos professores. “O desenvolvimento intencional das competências socioemocionais do educador contribui na promoção de seu bem-estar e sua eficácia, além de contribuir para a qualidade da assistência que fornece ao estudante”, comenta Gisele Alves. “Ao professor, vivenciar uma formação de qualidade, que integre os processos cognitivos, afetivos e sociais, é a base para a qualidade do trabalho docente e para o fortalecimento da educação integral nas escolas do país.” 

Mudança de paradigma 

A presença crescente das competências socioemocionais nos estabelecimentos de ensino se insere num contexto mais amplo, de transformação do próprio ensino, voltada aos desafios do século XXI. “A Educação para a Cidadania Global é um marco paradigmático que sintetiza o modo como a educação pode desenvolver conhecimentos, habilidades, valores e atitudes de que os alunos precisam para assegurar um mundo mais justo, pacífico, tolerante, inclusivo, seguro e sustentável”, diz a Unesco em um documento que é referência nesse campo. Para isso, reconhece o imperativo de o trabalho pedagógico ir além do conhecimento das disciplinas tradicionais. 

O debate sobre a maior efetividade do trabalho com as competências socioemocionais ganha contribuições valiosas vindas de diversas áreas, como o estímulo da criatividade e da inovação. “Por meio de atividades práticas, muitas vezes lúdicas, abrimos espaço para situações em que crianças e jovens podem explorar inúmeras possibilidades, sem julgamento e sem medo de errar ou de serem julgados”, conta Betina von Staa, doutora em Linguística Aplicada. “Práticas desse tipo são valiosas para promover habilidades que, no geral, ainda estão distantes do universo escolar.”  


Para saber mais

  • EDUCAÇÃO Integral para o Século 21: o desenvolvimento pleno na formação para a autonomia. (n.d.). São Paulo: Instituto Ayrton Senna. Disponível em: mod.lk/ed25_fc2. Acesso em: 4 out. 2023. 
  • EDUCAÇÃO para a Cidadania Global: preparando alunos para os desafios do século XXI. Brasília: Unesco, 2015. Disponível em: mod.lk/ed25_fc1. Acesso em: 4 out. 2023. 
  • ESCRITORES da Liberdade. 122 min. Direção de Richard LaGravenese. Estados Unidos. Paramount Pictures, 2007. 
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