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Bons tempos de autoria

Uma crônica etimológica sobre as relações de poder de quem se dá ao direito de construir caminhos.
Texto Ivan Aguirra

EM XEQUE. É assim que se pode definir hoje a sensação de autoridade do professor nas salas de aula e na sociedade como um todo.

Em meu tempo de escola, nos idos dos anos 1990, como filho, sobrinho e neto de professores, minha autocobrança já era suficiente para querer aprender rápido duas habilidades básicas: ler e contar. A fala vinda da frente da classe era sempre apreendida com atenção. Comandos como “hoje, vocês vão fazer um resumo do capítulo 12 do livro de Geografia e me entregar em um papel almaço até o fim da aula, valendo meio ponto na média” eram realizados mesmo a contragosto e engolidos a seco “pelo nosso bem”. Tínhamos que assimilar tudo, decorar todas as regras, repassar todos os rios, recitar a tabuada de trás pra frente e de frente pra trás. Assim, aprenderíamos, tal qual nossos professores!

Nessa época, a maioria de nós já sabia que eles, na verdade, não possuíam todos os conhecimentos, e muitos sequer tinham habilidade para passá-los adiante, mas mantinham uma autoridade que advinha de sua função social, do imaginário e de uma compreensão comum acerca da escola e do professor. Quem quisesse alcançar tal status recorria ao silêncio monitorado de um centro cultural, madrugava no final de semana na banca para completar os fascículos do Atlas Geográfico, pedia para avó comprar a coleção nova da Barsa, fazia carteirinha na biblioteca e cuidava para não rasurar nem atrasar a devolução do livro para não ficar suspenso por uma semana. E a gente sempre se esquecia!

Pouco a pouco, experimentando metodologias e estilos, descobríamos que o dedilhar do violão da professora de Gramática impregnava com muito mais sentido cada instante das nossas descobertas. E como é bom se lembrar de cada acorde naquelas rodas de sarau, em que aprendíamos coisas novas juntos e tudo parecia mais leve. Saudosa e sábia professora Regina! Sabia que não precisava saber de tudo para garantir sua autoridade. Nunca hei de esquecê-la falando: “fique aqui no fim da aula para pensarmos juntos nisso aí que você me perguntou”. E eu ficava porque, ali, éramos como dois amigos matutando, um ao lado do outro, em busca de uma solução em comum. Aqueles encontros, fora do tempo oficial de aula, só geravam mais autoridade ao aprendizado mútuo.

Recorrendo a um passado ainda mais distante, a origem da palavra autoridade deriva do latim auctoritas, que vem de auctor, derivado de augere, que significa, em linhas gerais, fazer crescer. Essa conexão logo impregnou minha mente, sobretudo porque sempre associamos autoridade a autoritarismo, e nunca a um trabalho autoral, de construção contínua, em oposição a repasse, transmissão. Proveniente de um mesmo campo semântico de autoridade, autor é aquele que cria, dá origem, descobre; e sempre foi justamente esse o papel essencial do professor: ser pioneiro em sua jornada, aquele que produz, mostra caminhos em direção ao crescimento.

Imagem Ilustrativa

Hoje, convivendo com máquinas e inteligências artificiais, o professor tem sido questionado e até rechaçado na sociedade. Diriam: para ser jogador de futebol ou digital influencer, o topo da cadeia alimentar das aspirações adolescentes, não precisa ostentar diploma, nem sequer saber a tabuada do 8. Ora, para ser autor de sua própria jornada é preciso, antes de mais nada, decodificar as duas habilidades básicas que se interconectam e que sempre serão universais: ler – o mundo – e contar – sua própria história. Para isso, precisamos que mais e mais Reginas produzam novos acordes por aí.


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