A hora e a vez da voz de Autores Indígenas
Trazer os autores indígenas para dentro da sala de aula é promover um encontro com um universo cultural amplo, que se faz necessário para a formação de cidadãos conscientes, críticos e engajados com a diversidade de povos que formam o país.

Texto: Maria José Nóbrega e Tom Nóbrega Silva
Para começar esta conversa, é preciso lembrar que a literatura escrita corresponde apenas a uma pequena e localizada parcela entre as diversas formas de literatura que existem. Essas formas antecedem, em muito, a invenção da escrita, e seguem transmitindo de formas diversas uma série de conhecimentos antigos e vastos. Tudo isso se torna ainda mais evidente quando falamos em literatura indígena, já que se trata de uma escrita que brota de tradições orais que permanecem sendo fontes vivas e fundamentais de saber.
A literatura indígena contemporânea surge como uma poderosa ponte entre a nossa familiaridade com a palavra escrita e o sofisticado e intrincado universo da literatura oral dos povos originários, um tesouro cultural que, para muitos de nós, permanece em grande parte desconhecido. Quando nos aproximamos das vozes e das narrativas dos autores indígenas, damo-nos conta de que folhear as páginas dos livros é apenas um primeiro passo que podemos dar rumo à possibilidade de nos aproximarmos de um rico arcabouço de narrativas, cantos, rituais e mitos transmitidos de geração a geração por meio da oralidade.
A pesquisadora Leda Maria Martins, ao refletir sobre as estratégias de transmissão de saberes das populações afro-brasileiras, que guardam paralelos importantes com as tradições indígenas, cunhou o termo oralitura. Podemos dizer que a literatura indígena contemporânea cria uma ponte entre a literatura que nos é familiar, baseada na escrita, e a vastidão da oralitura indígena. Suas narrativas carregam a força da palavra falada, a musicalidade das línguas originárias, raramente ensinadas nas escolas, e os modos de conhecer e de expressar o mundo que permanecem, em grande parte, desconhecidos.

Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela
Leda Maria Martins {Editora Cobogó}
Em Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela, Leda Maria Martins propõe uma reflexão sobre como as culturas afro-diaspóricas produzem e transmitem saberes por meio da oralidade, do corpo e da performance. A autora apresenta as ideias de tempo espiralar e corpo-tela para valorizar formas de memória e conhecimento que não se fixam na escrita, mas se atualizam em práticas como o canto, a dança e o ritual.
As histórias que chegam às nossas mãos por meio da escrita são fragmentos de um legado que antecede a colonização portuguesa e se desdobra em conflitos que seguem presentes até hoje, oferecendo testemunhos de uma existência que precisou (e precisa) se reinventar inúmeras vezes, para resistir à violência e ao apagamento gerados pela imposição de culturas e línguas homogêneas. Não à toa, os povos indígenas precisam se dedicar a uma luta contínua pela demarcação de seus territórios e pelo reconhecimento de seus direitos.
Há séculos, os povos indígenas têm sido silenciados, representados apenas a partir da visão do colonizador, em um processo de apagamento que não termina com a declaração da Independência: segue presente em conflitos bastante atuais. Desde os primeiros registros da história oficial do Brasil, a identidade indígena foi construída como objeto do discurso alheio: primeiro a partir de crônicas coloniais, depois pelas descrições científicas e, mais adiante, por obras literárias que, embora colocassem o “índio” em posição de destaque, faziam-no como personagem idealizado, alegórico ou exótico, e não como sujeito real.
O que é Oralitura?
O conceito de oralitura, proposto por Leda Maria Martins, refere-se ao conjunto de práticas, saberes, técnicas e formas de criação e transmissão de conhecimento que se estruturam e se perpetuam pela oralidade, pela performance e pela corporeidade. É um termo que busca dar conta de uma forma de cultura que não se fixa na escrita, mas que se organiza em dinâmicas rítmicas, corporais, vocais e memoriais, especialmente nas tradições afro-brasileiras e indígenas.
A oralitura envolve não apenas a fala ou a escuta, mas também o gesto, o canto, a dança, o corpo e a memória coletiva, compondo sistemas sofisticados de produção e circulação de conhecimento. Nesse sentido, desafia a centralidade da escrita como única forma legítima de conhecimento e arte, valorizando outras epistemologias e modos de existência.
É sintomático que a literatura indianista se fez tão presente no Romantismo brasileiro. Data do século 19 o surgimento das fronteiras territoriais que delimitaram boa parte dos Estados-Nações que seguem operantes ainda hoje mundo afora, com algumas exceções notáveis, como a de países como a Alemanha e a Turquia, que só se desenhariam depois das grandes guerras do século 20, e dos países do continente africano, cujo processo de colonização se estenderia em meio aos desdobramentos dessas mesmas guerras.
Para os povos originários, noções como nação e território possuem uma complexidade que vai muito além das definições de fronteiras um tanto arbitrárias que nortearam o conflituoso desenho dos nossos mapas: daí por que países como a Bolívia e o Equador optaram por se definir como Estados Plurinacionais — um conceito que, com certeza, caberia bem ao Brasil, que possui 305 etnias diferentes, que falam entre 160 a 274 línguas.
A noção de Estado Plurinacional é um conceito político e jurídico que busca superar o modelo tradicional de Estado-Nação. Enquanto o Estado-Nação pressupõe a existência de uma única nação, uma cultura e uma identidade homogênea dentro de suas fronteiras, que se reúnem, de preferência, sob o domínio de uma única e mesma língua, o Estado Plurinacional reconhece e legitima a coexistência de múltiplas nações, povos e culturas dentro de um mesmo Estado soberano.
Se o Romantismo pode ser entendido como uma tentativa de criar uma fundação estética para o surgimento de um Estado-Nação a partir de uma experiência tão confusa e contraditória quanto a da colonização, entenderemos por que autores não indígenas, como José de Alencar, precisaram cartografar a fundação fictícia de um estado nacional sobre o corpo simbólico do indígena, negando-lhe suas nações e suas línguas.

Infâncias e Leituras: Presenças negras e indígenas na literatura infantil
Márcia Licá (org.), Bel Santos Mayer, Sonia Rosa, Juliana Piauí, Carina Pataxó, Ananda Luz, Magno R. Faria e Tiago Hakiy
{Editora Pulo do Gato}
O livro discute a importância de promover, na infância, o contato com obras que valorizem as vozes, as culturas e as experiências de populações negras e indígenas. Organizado por pesquisadores da área da leitura e da literatura, o livro reúne reflexões e propostas que defendem a diversidade como parte fundamental da formação leitora das crianças.
Os Indígenas, a Mãe Terra e o Bem Viver
Ademario Ribeiro Payayá
{Editora Moderna}
Neste livro, o autor compartilha reflexões sobre o conceito de “Bem Viver”, abordando temas como diversidade, fé, coragem e a conexão profunda dos povos indígenas com a Mãe Terra. A obra visa ampliar o conhecimento sobre a cultura, a origem e os costumes dos povos originários. Pertencente ao povo Payayá (BA), Ademario é escritor, educador e ativista pelos direitos dos povos indígenas. Sua atuação se destaca na reconstrução e na valorização das identidades indígenas no Nordeste do Brasil, com foco na oralidade e nas memórias ancestrais.
A literatura indígena contemporânea rompe com esse silenciamento histórico. Ela é, ao mesmo tempo, um movimento estético e político. Estético, porque articula forma e conteúdo com base em cosmovisões próprias, marcadas pela oralidade, pela circularidade narrativa, pela valorização do coletivo e pela relação viva com a natureza. Político, porque recoloca os indígenas como sujeitos do próprio discurso, afirmando seus saberes, suas línguas, suas memórias e seus direitos num espaço que historicamente os excluiu: o da produção escrita do conhecimento.
Quantas línguas indígenas existem?
Determinar o número exato de línguas indígenas não é tarefa simples. A própria noção de língua esbarra em questões culturais, sociais e políticas complexas. Além disso, não existe um critério linguístico universal e rígido que permita separar, de forma inequívoca, uma língua de um dialeto.
Estudos como o Ethnologue, publicação internacional de referência que cataloga e descreve as línguas faladas no mundo, e o Atlas da UNESCO das Línguas em Perigo, que mapeia as línguas ameaçadas de extinção, apresentam números variados justamente por adotarem critérios distintos de classificação e por lidarem com línguas que, muitas vezes, existem apenas na oralidade e em comunidades pequenas e isoladas.
Trazer a literatura indígena para dentro da escola é promover um encontro com um universo cultural vasto e complexo, essencial para a formação de cidadãos mais conscientes, críticos e engajados com a diversidade de povos que compõem o Brasil. Integrar as vozes e as narrativas dos povos originários no currículo escolar é fundamental, já que a literatura indígena oferece uma perspectiva única e valiosa sobre a história do Brasil, capaz de desconstruir narrativas eurocêntricas que muitas vezes silenciam ou marginalizam as experiências e os conhecimentos dos povos originários.
Ao entrar em contato com obras como essas, os estudantes têm a oportunidade de entrar em contato com ricas cosmologias, guiados pelo olhar sensível de autores e autoras indígenas contemporâneos que podem nos convidar a adentrar esse universo rico e complexo. As narrativas indígenas desafiam as formas convencionais de leitura e estimulam o pensamento crítico e a capacidade de análise intercultural.
As obras de autores como Daniel Munduruku, Cristino Wapichana, Kaká Werá, Ademario Ribeiro Payayá e Tiago Hakiy não são apenas obras de ficção ou poesia: elas podem convidar jovens leitores e leitoras a se darem conta de que vivemos em um lugar em que muitos mundos coexistem. Expor os estudantes a diferentes cosmovisões estimula o respeito pela diversidade cultural, promovendo a empatia e combatendo o preconceito e o etnocentrismo.
Em Crônicas indígenas para rir e refletir na escola, Daniel Munduruku nos convida a questionar estereótipos; em Estações, ele nos apresenta uma visão do tempo enraizada no ciclo natural, muito diferente da lógica linear ocidental. Em Menino-Trovão, Kaká Werá reconta uma narrativa ancestral tupi, trazendo à tona os mitos fundadores de seu povo. Já Cristino Wapichana, em Terra, rio e guerra — A sina de um curumim, constrói uma história comovente sobre perda e resistência diante da guerra e do deslocamento forçado. Ademario Ribeiro Payayá, em Os indígenas, a Mãe Terra e o Bem Viver, propõe um convite à reflexão profunda sobre o modo de vida indígena e a sabedoria ancestral que sustenta a harmonia entre ser humano e natureza. Tiago Hakiy, com sua poesia em Poemas para curumins e cunhantãs, celebra a floresta e o universo amazônico em versos acessíveis e vibrantes.

Ideias para Adiar o Fim do Mundo
Ailton Krenak
{Companhia das Letras}
Neste livro, Ailton Krenak reúne reflexões sobre a crise ambiental e civilizatória causada pela separação entre humanidade e natureza. A partir da perspectiva indígena, ele critica a lógica ocidental que trata a terra como um recurso a ser explorado e propõe uma nova maneira de habitar o mundo, baseada no respeito aos ciclos naturais e na interdependência entre todas as formas de vida. Com um tom provocativo e poético, Krenak nos convida a repensar nossos modos de existência e a construir alternativas para evitar o colapso ambiental e social.
Coleção Mundo Indígena
Em 11 volumes
{Editora Hedra}
A Coleção Mundo Indígena reúne mitos de criação e histórias de transformação de diferentes povos, como os Yanomami, os Guarani e os Tupinambá, sempre com atenção especial à tradução dos textos. Muitas das obras são bilíngues, apresentando o original na língua indígena ao lado da tradução para o português.
As traduções e as adaptações contam com a colaboração de lideranças indígenas, linguistas e antropólogos, o que garante fidelidade ao sentido e respeito às culturas de origem. A coleção inclui, também, materiais de apoio, como glossários, notas explicativas e informações sobre os povos e as línguas envolvidos, auxiliando o leitor a contextualizar as narrativas e aprofundar seu conhecimento sobre as culturas indígenas.
A literatura indígena vai além da palavra escrita. Ela abrange uma pluralidade de manifestações culturais: grafismos, cantos, danças, rituais, narrativas orais, modos de cuidar da terra, de se relacionar com os outros e com os espíritos. Obras como Apytama — Floresta de histórias, uma antologia com diversos autores indígenas, e Histórias de muitos mundos, de Yaguarê Yamã, mostram como essas formas de saber e expressão se entrelaçam e ganham espaço no livro, sem perder suas raízes comunitárias.
Diante disso, a escola tem um papel essencial: valorizar essas vozes e garantir que as novas gerações tenham acesso a elas. Uma educação comprometida com a diversidade e os direitos dos povos indígenas precisa ir além de abordagens folclóricas e caricaturais, como as do “Dia do Índio”. Embora os povos indígenas tenham sido retratados nas escolas, de forma descabida, como seres do passado, os indígenas são cidadãos brasileiros com direitos, lutas e produções culturais vibrantes e bastante atuais, e sua presença não pode ser apagada.
Ao ler autores indígenas contemporâneos, os estudantes podem se conectar com questões que afetam essas comunidades até hoje, como a demarcação de terras, a preservação ambiental, a luta contra o genocídio e o racismo e a busca por autonomia e respeito. É preciso incluir a literatura indígena no currículo, respeitando sua especificidade e reconhecendo sua potência. Isso significa não apenas ler autores indígenas, mas escutá-los, convidá-los, para que nos ajudem a pensar nossas noções de educação, permitindo que suas histórias circulem amplamente.
Trazer a literatura indígena para a escola é uma necessidade ética, além de pedagógica. É uma oportunidade de formar cidadãos mais informados, sensíveis e comprometidos com a justiça social e com a valorização da rica e plural herança cultural deste território que aprendemos a chamar de Brasil. Ao abrir espaço para as vozes indígenas em sala de aula, estamos construindo pontes entre mundos diferente, descolonizando o conhecimento e celebrando a força e a beleza das culturas originárias. A hora é agora. A vez é dos que foram calados, mas nunca deixaram de cantar. Que a escola, os leitores e a sociedade estejam prontos para ouvir — e aprender.
Museu Nacional dos Povos Indígenas
Brasil (rj)
{www.gov.br/museudoindio}
É uma instituição dedicada à preservação e à valorização das culturas, das histórias e dos saberes dos povos indígenas do Brasil localizada na cidade do Rio de Janeiro. Seu site oferece acesso a uma vasta gama de conteúdos sobre a diversidade indígena, incluindo exposições virtuais, artigos acadêmicos, fotos, vídeos e coleções de artefatos. A plataforma é um importante recurso para quem deseja conhecer mais sobre as práticas culturais, a arte, as línguas e as questões contemporâneas que envolvem as comunidades indígenas no Brasil.
Instituto Socioambiental: ISA
ong
{www.socioambiental.org}
É uma organização não governamental brasileira dedicada à promoção da justiça socioambiental e à defesa dos direitos dos povos indígenas, das comunidades tradicionais e do meio ambiente. O site do ISA é uma plataforma essencial para acompanhar as ações e os projetos desenvolvidos pela organização. Nele, é possível acessar informações sobre a atuação do instituto em diversas áreas, como a proteção dos direitos dos povos indígenas, a preservação ambiental e a promoção da sustentabilidade.

Crônicas indígenas para rir e refletir na escola
Daniel Munduruku
{Editora Moderna}
Uma coletânea de crônicas que convida o leitor a questionar ideias preconcebidas sobre os povos indígenas. Com humor e sensibilidade, o autor provoca reflexões sobre os estereótipos e a importância de conhecer diferentes perspectivas culturais.
Maria José Nóbrega
Tem mestrado em Filologia e Língua Portuguesa pela USP. Atua como assessora de Língua Portuguesa na concepção de programas de formação continuada de professores da rede pública de São Paulo.
Tom Nóbrega Silva
É poeta e bacharel em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Seu trabalho se desenrola na zona fronteiriça entre a literatura e as artes visuais, explorando possibilidades híbridas entre ação, vídeo, som e texto.
Para Saber Mais
- HAKIY, Tiago. Poemas para curumins e cunhantãs. 1. ed. São Paulo: Editora Moderna, 2024.
- MUNDURUKU, Daniel. Crônicas indígenas para rir e refletir na escola. 1. ed. São Paulo: Editora Moderna, 2020.
- MUNDURUKU, Daniel. Estações. 1. ed. São Paulo: Editora Moderna, 2024.
- PAYAYÁ, Ademario Ribeiro. Os indígenas, a Mãe Terra e o Bem Viver. 1. ed. São Paulo: Editora Moderna, 2025.
- SIL INTERNATIONAL. Ethnologue: Languages of the World. [S.l.: s.n. s.d.]. Disponível em: https://mod.lk/ed27_cd1. Acesso em: 17 jul. 2025.
- UNESCO. Atlas of the World’s Languages in Danger. Paris: Unesco, 2010. Disponível em: https://mod.lk/ed27_cd2. Acesso em: 17 jul. 2025.
- WAPICHANA, Cristino. Terra, rio e guerra – A sina de um curumim. 1. ed. São Paulo: Editora Moderna, 2023.
- WERÁ, Kaká (org.); et al. Apytama – Floresta de histórias. 1. ed. São Paulo: Editora Moderna, 2023.
- WERÁ, Kaká. Menino-Trovão. 1. ed. São Paulo: Editora Moderna, 2023.
- YAMÃ, Yaguarê. Histórias de muitos mundos: narrativas e crenças indígenas. 1. ed. São Paulo: Editora Moderna, 2025.
