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Um bem comum milenar

A matemática como saber é um patrimônio da humanidade ao qual todos, potencialmente, devem ter acesso.

Texto: André Lázaro

A história da matemática como saber sistematizado nos conta que foram as civilizações do Oriente Médio que desenvolveram dois campos importantes: a aritmética e a geometria. Para controlar impostos, monitorar reservas de alimentos, definir áreas de plantio, estimar colheitas, trocar mercadorias, operações necessárias ao funcionamento das sociedades antigas, foram desenvolvidos saberes que se constituíam em ferramentas de poder, controle e domínio. A matemática está na base dos feitos de engenharia e administração que caracterizam os povos da Mesopotâmia.

Do mesmo modo, a incrível cultura egípcia, com a monumentalidade de suas pirâmides e seus templos, contava com elevados conhecimentos de matemática e de astronomia para alcançar suas realizações, tendo início há mais de 3 mil anos. 

Um debate entre historiadores e matemáticos ainda hoje questiona como se desenvolveram esses saberes, se a partir de demandas práticas do dia a dia ou a partir da especulação lógica, que permitiu construir modelos abstratos que orientam as ações concretas. Se as noções de quantidade e distância são inatas, sua organização num sistema é tarefa cultural, ou seja, fruto das interações entre as demandas sociais e as condições naturais. 

Os historiadores lembram que há evidências milenares na África de registros de contagem, muito anteriores ao que se reconhece na região do Oriente Médio. A matemática nasce em distintos povos antigos, como entre os maias na América Central, cuja precisão na astronomia surpreende ainda hoje. O teorema de Pitágoras, por exemplo, que relaciona os lados de um triângulo retângulo, já era conhecido há mais de mil anos por matemáticos babilônios e egípcios, e iconografias africanas representam geometricamente esse teorema. 

No mundo grego, as propriedades e os usos desse teorema foram incrementados. Foram os filósofos gregos, a partir de conhecimentos desenvolvidos pelas civilizações vizinhas, em particular a Babilônia e o Egito, que introduziram métodos e a exigência de provas que tornaram a matemática um sistema, ou, como dizemos hoje, uma ciência. Tales de Mileto (624 a.C. – 546 a.C.), Pitágoras (570 a.C. – 496 a.C.), Platão (428 a.C. – 347 a.C.) e Arquimedes (287 a.C. – 212 a.C.) são alguns nomes que atestam a persistência da dedicação à matemática – palavra grega que significa “tema de conhecimento”, ou ainda, “aquilo que pode ser aprendido”. 

Um exemplo da interação cultural que faz avançar a matemática como bem comum é a transformação dos signos que representam os números. Na Antiguidade, são distintas as bases para o cálculo: por exemplo, os egípcios utilizavam a base 10 – a partir da contagem dos dedos das mãos. Já sumérios e babilônios usavam a base 60, que sobrevive entre nós na divisão do tempo do relógio: horas, minutos e segundos estão organizados na base 60.

Além dessa variação, havia as diferenças de notação: na Grécia e entre os hebreus, as letras iniciais do alfabeto representavam os números e havia regras para permitir contagem de centena e milhar. Nosso sistema decimal atual e sua notação são herdeiros da Índia, que já havia anotado a sequência de 0 a 9 e incluído o sistema posicional, em que a posição do algarismo determina seu valor: o 0 antes do número não altera sua grandeza e, após o número, indica sua multiplicação para base, ou seja, por 10.

Segundo Gerdes, em sua obra Ideias matemáticas originárias da África e a educação matemática no Brasil, a história da notação revela detalhes da interação entre culturas e continentes: a notação indo-arábica foi desenvolvida pelos africanos islâmicos que ocuparam a Península Ibérica por mais de sete séculos. Os chamados números árabes – esses que usamos atualmente – já eram utilizados desde o século 9 na área da África Oriental e na Ásia, e foram levados para a Península Ibérica no período de ocupação islâmica, em torno do século 11, sendo progressivamente adotados pela Europa e exportados para as terras do Novo Mundo.

Coube ao matemático italiano Leonardo Fibonacci (1170-1250) o reconhecimento pela difusão das notações indo-arábicas e o ensino de seu uso nas operações básicas da aritmética. Com a criação da imprensa no século 15, a forma de notação expandiu-se por toda a Europa. 

“A matemática é a linguagem em que Deus escreveu a natureza.” 

Galileu 

A esse mesmo matemático atribui-se a construção de uma sequência numérica cuja aplicação encontrou impressionante correspondência na organização do mundo natural. A partir de um problema teórico, Fibonacci elaborou uma sequência que posteriormente foi identificada na distribuição das sementes na flor do girassol, por exemplo, assim como, atualmente, as variações da bolsa de valores são associadas a essa sequência. 

Essas breves anotações pretendem destacar ao menos dois aspectos: a matemática não é um código rígido, mas um sistema de representação do mundo que se desenvolve a partir de um conjunto de pressupostos e regras que demonstram a capacidade de dialogar com a organização do mundo natural, com padrões da natureza. 

Em segundo lugar, é importante destacar a construção multicultural e milenar desse sistema de representação, que demonstra a unidade do espírito humano atravessando a diversidade cultural em busca da compreensão e da operação sobre o mundo em que vivemos. Portanto, a matemática como saber expressa um patrimônio da humanidade ao qual todos, potencialmente, devem ter acesso.

André Lázaro é diretor de políticas públicas da Fundação Santillana no Brasil, professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e coordenador acadêmico da Faculdade Latino-
-Americana de Ciências Sociais (Uerj).

Para saber mais

  • GERDES, P. Ideias Matemáticas Originárias da África e a Educação Matemática no Brasil. Tópicos Educacionais, Recife, v. 18, n.1-2, jun./dez. 2012. p. 139 a 158.
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