Meu aluno cometeu bullying. E agora?
Popularmente conhecido no Brasil, o fenômeno bullying apresenta demandas complexas que desafiam escolas em todo o mundo. Em seu continuum de violência, o agressor permanece sendo o agente principal, escondendo atrás de seu comportamento demandas urgentes a serem compreendidas e atendidas de forma restaurativa.
Texto: Benjamim Horta
Começo este texto com uma história pessoal. Durante alguns anos, tive o privilégio de morar no Sul da Inglaterra, período no qual trabalhei em uma ONG que atendia a comunidade local. Semanalmente me reunia com crianças e adolescentes, muitos em situação de vulnerabilidade, a fim de desenvolver suas habilidades sociais, fortalecer a formação de seu caráter e enfrentar, juntos, os obstáculos respectivos às suas idades.
Dentre todos os desafios imaginados ao viver naquele país, havia um entre os grupos de estudantes que jamais havia passado pela minha cabeça: Peter (para preservar a sua identidade, esse nome é fictício). Aquele garoto franzino e quieto conseguia driblar os olhares dos professores e responsáveis com seus argumentos e, ao mesmo tempo, ser cruel com alguns colegas. Fazia observações negativas sobre alguns alvos específicos enquanto insistia em manipular outros, sempre dando um tom de espontaneidade a suas ações. Era possível perceber que ele era um praticante de bullying.
O caráter heterogêneo de uma sala de aula, geralmente percebido e tratado por muitos de maneira homogênea, lança aos educadores questões que desafiam o âmago do exercício docente, isso porque a expectativa criada em torno desse ambiente é, usualmente, baseada em um ideal que visa ao coletivo e ao seu funcionamento sistemático a fim de que o objetivo final daquele momento, chamado de aula, seja alcançado.
Em tal fato, residem dois pontos de alerta: em primeiro lugar, a individualidade de cada estudante, por mais que percebida por nós, se dilui em meio às nuances da coletividade. Em segundo lugar, a incapacidade de possibilitar que outros temas permeiem, com a devida atenção e tempo, obstáculos presentes na dinâmica social de uma sala de aula e escola. Atenção e tempo, portanto, estão correlacionados. Sem esse devido olhar, o nosso prisma se torna genérico, incapaz de assimilar questões complexas a respeito das pessoas com as quais convivemos, tanto alunos como pais, colegas de trabalho etc.
A nossa percepção temporal tem sido cada vez mais comprometida. Estamos, realmente, nos dedicando ao que interessa? O que ofereço e o que disponibilizo são suficientes e permitem responder adequadamente à demanda do meu aluno, ou o setor de orientação pedagógica se encarregará disso? Sobre esse aspecto, é um desperdício outorgar, unicamente, aos outros a oportunidade dada a nós, educadores, de transformar vidas.
O bullying na escola
Muito mais do que livros e cadernos, cada estudante traz consigo uma história, repleta de situações adversas e, muitas vezes, marcadas por sofrimentos, instabilidade, dor e falta de cuidados básicos que possibilitem promover certo nível de saúde mental. Como um rio que ganha cada vez mais força a partir de sua nascente, demandas específicas se manifestam no ambiente escolar de formas variadas. Dentre elas, está o bullying, fenômeno conceituado por dr. Dan Olweus, pioneiro em pesquisas sobre esse comportamento, como um ato no qual “um aluno é exposto de forma repetitiva e durante um tempo a ações negativas de um ou mais colegas, apresentando dificuldades de se defender” (olweus, 1986).
Termo originário da língua inglesa, o bullying ainda sofre distorções conceituais no Brasil e em outros países devido à sua utilização em contextos equivocados. Distinguir o bullying de outros comportamentos agressivos nem sempre é uma tarefa fácil, pois a linha que os separa é tênue.
Por mais que muitos tratem essa prática de maneira simplista, geralmente associando-o a um rito de passagem ou a uma simples brincadeira, o bullying carrega um nível considerável de complexidade. Compreendê-lo exige atenção e dedicação, principalmente por possuir características específicas e por envolver um padrão comportamental realizado por um grupo singular de agentes enredados em atos de violência, geralmente velada. Considerado uma subcategoria do comportamento agressivo (smith, 1999), o bullying ganha diferentes facetas e compromete de maneira negativa o clima social da escola, afetando alunos, colaboradores, famílias e até mesmo a comunidade externa.
Nos últimos anos, o aumento de demandas relacionadas ao bullying, no Brasil, nos serve como um alerta para os desafios enfrentados no ambiente escolar. É preciso agir de maneira veemente, a começar pelo reconhecimento dos perigos e danos causados pela dinâmica e pela abertura à implementação de ações preventivas eficazes, evitando soluções paliativas para problemas sistemáticos como esse.
Gentileza e firmeza significam respeito ao outro sem negociação de valores inegociáveis.
Grupos envolvidos
Ao pensar em um trabalho preventivo, é fundamental levarmos em conta todos os possíveis grupos envolvidos, não omitindo nem desconsiderando qualquer participante envolto na dinâmica até termos a certeza de que o problema foi, de fato, resolvido. Deve-se considerar que falar de bullying é levar em conta o funcionamento grupal presente nesse mecanismo. Olweus cita oito diferentes grupos envolvidos em um ato de bullying, distribuídos entre possíveis agressores, espectadores e agredidos. Focar em todos os grupos é migrar de uma ação somente mediadora para uma ação preventiva, pois a extensão do problema poderá de fato ser mensurada e sanada.
A agressividade se transforma em um mecanismo de defesa a partir do desencontro entre expectativas internas e a falta de provisão de cuidados em um ambiente externo no qual a criança está inserida.
Donald Winnicott
Lidando com o praticante de bullying em um contexto social
Todos os agentes envolvidos na dinâmica do bullying (agredidos, agressores e espectadores) inclinam-se a possuir características específicas. Segundo Olweus, indivíduos que praticam bullying tendem a:
🐚 Apresentar uma atitude positiva em relação à violência.
🐚 Ser impulsivo e facilmente irritável.
🐚 Demonstrar pouca empatia por estudantes que sofrem bullying.
🐚 Ser agressivo com adultos.
🐚 Sentir prazer em subjugar outros estudantes.
🐚 Envolver-se em atividades antissociais ou violar regras.
🐚 Apresentar maior força física do que outros colegas.
O grande pediatra e psicanalista Donald Winnicott dedicou anos de sua vida à compreensão do comportamento agressivo em crianças e adolescentes. Seus estudos, datados de décadas atrás, ainda possuem extrema relevância nos dias de hoje e são fundamentais para melhor compreendermos os possíveis praticantes de bullying. Ele afirma que a agressividade, um elemento central e salutar durante os estágios iniciais do desenvolvimento da criança e, portanto, parte da natureza humana, se transforma em um mecanismo de defesa a partir do momento em que há um desencontro entre expectativas internas de cuidados básicos e a falta de provisão desses cuidados em um ambiente externo no qual a criança está inserida. Mais do que uma agressão, devemos levar em conta que a prática do bullying pode ser um grito de socorro, uma reivindicação de algo (neste caso, cuidados básicos) que lhe foi prometido.
Ao conseguir mudar as lentes pelas quais percebemos os praticantes de bullying, talvez seja possível criarmos estratégias mais assertivas de intervenção, pois lidaremos não só com o comportamento em si, mas também com indivíduos e seus desajustes, o que possibilita separar de forma clara o erro de quem o cometeu.
Adler e Dreikurs dizem que “um aluno indisciplinado é um aluno desencorajado” (nelsen, 2017). Segundo esses especialistas, a indisciplina e o mau comportamento são baseados na necessidade de pertencimento, que se manifestam seja por meio do controle sobre outros, atenção indevida, agressividade ou sentimento de incapacidade.
E qual seria uma resposta adequada a um aluno com esse perfil? Para responder a essa pergunta, precisamos levar em conta contextos sociais em que os indivíduos estão inseridos. Os contextos familiar e escolar integram um microssistema de fundamental importância na formação do indivíduo (bronfenbrenner, 2002) e, portanto, devem receber a devida atenção quando o assunto é coibir a ação de agressores, como também educá-los para a convivência. Para isso, o primeiro passo é que haja um alinhamento moral entre escola e família, estabelecendo firmes limites para comportamentos inaceitáveis.
Firmes limites não se referem a punição, mas sim não relativizar comportamentos inadequados. Quanto maior for a consonância entre comunidade escolar e famílias a respeito desses limites, mais claramente os estudantes saberão o que esperar dos adultos com os quais convivem. O objetivo é que convivência e conivência estejam o mais distante possível uma da outra.
Ainda falando em contextos sociais, a criação de acordos em um sentido coletivo e participativo tem um papel importante. Regras, quando impostas, acabam sendo mais um atrativo para alunos com comportamento antissocial, pois muitos não se sentem compelidos a respeitá-las, e sim desafiá-las. Portanto, a composição desses compromissos deve ser democrática e horizontalizada, permitindo que os próprios estudantes proponham expectativas comportamentais no ambiente escolar.
Quando alunos criam regras sobre o bullying, por exemplo, agressores começam a entender o comprometimento da parte de muitos colegas que o apoiam e o empoderam. Um pacto coletivo contra o bullying pode trazer um maior aprofundamento moral para os envolvidos nesse tipo de violência, bem como um maior compromisso. Além disso, esses acordos tornam-se um guia de conduta a ser relembrado ao longo do ano letivo, caso situações de bullying aconteçam.
Lidando com o praticante de bullying individualmente
- Conexão antecede a correção (nelsen, 2017). Sem vínculo ou alguma forma de silogismo, atos puramente punitivos podem ganhar um caráter perigosamente destrutivo. Ao intervir junto a um aluno praticante de bullying, tenha em mente que a correção precisa estar atrelada a uma percepção cuidadosa e acolhedora da parte dos adultos, como citado anteriormente, separando o erro de quem cometeu o erro. Se a agressividade é a defesa utilizada pelo sujeito para dar cobertura a si mesmo, um atendimento punitivo, e até mesmo hostil, servirá somente para ativar suas defesas e reduzir as possibilidades de resgate e mudança de comportamento.
- Firmeza e gentileza caminham juntas. Gentileza e firmeza significam demonstrar respeito ao outro sem, no entanto, negociar valores inegociáveis. Ao conversar com um estudante praticante de bullying deixe claro que você desaprova – de forma veemente – esse comportamento, mas sempre em um tom aceitável, que não fira os direitos daquela criança ou adolescente. Eles são estudantes, não vilões, e seus sentimentos precisam ser validados. Pense em frases como “eu entendo que você esteja se sentindo frustrado hoje, e sinto muito por isso. Mas isso não justifica agredir ou prejudicar alguém”.
- Seja preciso sobre os fatos ocorridos.Muitos praticantes de bullying, ao serem confrontados, assumem três diferentes posturas. Alguns optam por recusar o seu envolvimento, entrando em um verdadeiro estado de negação sobre sua participação no ocorrido. Outros tentam minimizar suas ações, acusando outros como culpados. E há aqueles que optam por responsabilizar o estudante agredido, justificando o bullying mediante o comportamento do outro. Por isso, é necessário o maior número possível de informações sobre a situação de bullying. Essa estratégia não visa acusar o agressor, mas apresentar informações consistentes a fim de que ele reconheça os fatos e fundamente a sua intervenção. Dados como local, frequência, estudantes envolvidos, testemunhas (evite citar nomes de colegas), formas de bullying, dentre outras, podem auxiliar nesse processo. Tais informações não devem ser utilizadas com um caráter acusatório, mas sim comprobatório.
- Utilize uma abordagem restaurativa.“Ao invés de se aplicar uma ‘lógica tutelar’ (autoridade imposta), é importante que o diálogo seja a principal ferramenta para a prevenção e intervenção, aplicando a ‘doutrina de proteção integral’. Essa abordagem atual, na qual o direito da criança é exercido de forma prática, fortalece a visão da criança como sujeito de direitos” (mariela a. fortunato, 2015).
Um dos direitos fundamentais da criança e do adolescente é o direito de ser ouvido, consagrado no artigo 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança. Aplicar esse direito em uma conversa significa propiciar condições para que lugares de pertencimento sejam recriados, ressignificados. Nesse ato, reside a possibilidade de ensinar à criança que sua voz fala mais alto que seus atos de agressão e, como adultos, estamos dispostos a ouvi-la. Faça perguntas restaurativas que visem propor ao agressor maneiras práticas e cabíveis de restaurar o dano causado.
Proponha uma reflexão sobre os estudantes mais afetados, como foram atingidos por aquele comportamento, e acompanhe a aplicação da solução proposta pelo estudante ao longo das semanas seguintes.
Relembrando Peter
“Ostra feliz não faz pérola.” Essa belíssima frase de Rubem Alves não poderia ser mais adequada ao contexto de Peter. Não desistir dele foi uma decisão que tomei, decisão, muitas vezes, desconfortável. As coisas não aconteceram como em um toque de mágica. Foram necessárias resiliência e determinação. Mas transformar a dor em beleza é um dos papéis da educação. Aos poucos, meu vínculo com o garoto foi aumentando, bem como a importância que as minhas palavras tinham para ele. Com o passar do tempo, aquele semblante de desânimo ao chegar à aula foi se transformando em empolgação e alegria. Ele ouvia tudo com atenção e participava ativamente. Tratava os colegas com respeito e entendia o fato de ter mais afinidade com uns do que com outros. Ele sabia que ali estava seguro e integrado. Ter praticado bullying não o definia. Ele era uma criança incrível e inteligente que por algum tempo esteve equivocada sobre si mesmo. Havia algo maior dentro de Peter que estava, de alguma forma, sendo suprimido por um possível desajuste. Ele era um grão de areia prestes a se transformar em pérola.
Benjamim Horta é diretor presidente da Abrace – Programas Preventivos e Escola Sem Bullying.
Para saber mais
- CATALANO, R.; MORITA, Y.; OLWEUS, D.; SMITH, P. K. (eds.). The Nature of School Bullying: A Cross-national Perspective. Abingdon: Routledge, 2014.
- HORTA, B.; VARGAS NETO, E. J. Bullying, ética e direitos humanos. Curitiba: Abrace – Programas Preventivos, 2016.
- NELSEN, J.; GFROERER, K. Positive Discipline Tools for Teachers. Lagos: Harmony, 2017.
- OLWEUS, D. Bullying at School: What We Know and What We Can Do. New Jersey: Wiley-Blackwell, 2013.