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Prevenção como política pública

Joinville ganha destaque pelos protocolos para o enfrentamento da violência nas escolas e a promoção da saúde mental e vem inspirando outros estados e prefeituras.  

Texto: Paulo de Camargo

Às 9 horas da manhã no dia 5 de abril de 2023, Blumenau foi palco de um dos crimes mais chocantes do Brasil do século XXI. Um homem de 25 anos pulou o muro da creche Cantinho do Bom Pastor e matou quatro crianças a golpes de machadinha, além de ferir outras cinco. O crime de Blumenau já seria trágico e inadmissível se fosse isolado, mas é mais dramático ainda porque se insere em uma série de eventos violentos em escolas e instituições de ensino que vem desestabilizando as relações das comunidades educativas e deixando pesquisadores perplexos.  

Conforme um estudo produzido pela equipe da pesquisadora Telma Vinha, da Unicamp, de 27 ataques contra alunos e professores em escolas, em 21 anos, 14 ocorreram entre agosto de 2022 e maio de 2023. Fenômeno de alta complexidade para o qual não há respostas únicas, os ataques violentos nas escolas têm múltiplas causas, e seu enfrentamento passa por políticas públicas em diferentes áreas e por uma reflexão da escola sobre a construção de valores e de um ambiente inclusivo. “A escola pode ser cenário de violência e sofrimento emocional, mas também pode ser um espaço privilegiado de prevenção das violências, de proteção e para a promoção do bem-estar e da convivência democrática”, esclarece Telma. 

Diferentes redes vêm aprimorando suas reflexões, e um bom exemplo vem de Joinville, município localizado a apenas cem quilômetros de Blumenau. Por absoluta coincidência, na mesma manhã em que ocorria o ataque às crianças, a Secretaria da Educação de Joinville lançava dois documentos que vêm sendo construídos desde 2022: Protocolos de Prevenção à Violência Escolar e Protocolos de Saúde Mental. Apesar da casualidade, a iniciativa de Joinville não nasceu como uma resposta direta aos ataques, mas se insere nas raras políticas públicas preventivas, pensadas coletivamente antes das grandes tragédias.  

Segundo Giani Magali da Silva de Oliveira, diretora de Políticas Educacionais da Secretaria de Educação de Joinville, a força da iniciativa se deve, entre outros aspectos, ao fato de ser multissetorial. Envolveu a Secretaria da Saúde, o Ministério Público, o Conselho da Criança e do Adolescente, a Guarda Municipal, entre outros organismos e instituições, a convite do Secretário da Educação, Diego Calegari. A ideia surgiu em meados de 2022 como um esforço para padronizar os protocolos de prevenção e os fluxos de encaminhamento já existentes e previstos na legislação, mas, principalmente, para construir um instrumento de diálogo acessível aos professores, aos demais profissionais da escola e às famílias. “Não são documentos reativos”, salienta o coordenador do Núcleo de Desenvolvimento Integral da Secretaria de Educação de Joinville, Gabriel Horn Iwaya, “mas uma ferramenta para coordenar formações, orientar esforços e alinhar as respostas das escolas às diferentes situações cotidianas que afetam a todos”. 

“Os protocolos buscam sistematizar o atendimento às crianças e dar mais assertividade ao nosso trabalho, que é garantir a presença dos alunos na escola e em condições de aprender. São conjuntos de procedimentos que vão permitir uma atuação eficaz em situações de violência ou de questões de saúde mental”, explicou o secretário de Educação em uma das formações já realizadas. 

As diretrizes de prevenção à violência escolar e de saúde mental estão inseridas no programa “Busca Pró-Ativa”, cujo objetivo é assegurar o direito ao acesso e à permanência das crianças e dos adolescentes nas escolas públicas do município.  

O governo municipal também investiu em outras frentes, a partir do ocorrido em Blumenau, no campo da segurança pública. As escolas ganharam botões de pânico, câmeras foram instaladas e foi proposto um Grupamento Escolar da Guarda Municipal, com o objetivo de qualificar o trabalho da guarda nas unidades de ensino públicas e privadas, entre outras medidas em implantação pela Prefeitura. 

Os Protocolos de Prevenção à Violência 

Com 84 páginas, os Protocolos de Prevenção à Violência da rede de ensino de Joinville preocupam-se em estabelecer conceitos baseando-se na sistematização de diferentes referências. De início, faz uma distinção importante entre a violência que acontece na escola, na forma do bullying e do preconceito, e aquela da qual a escola é vítima, com os ataques extremos. Em todas as suas formas, a violência afeta a vida dos alunos, suas famílias e professores, e deve ser combatida. “Importante observar que a violência escolar impacta o processo de ensino e aprendizagem de crianças e adolescentes, pois ambientes de aprendizagem instáveis e não seguros afetam o bem-estar dos estudantes”, enfatiza o texto. 

A proposta “trata das violências na escola e contra a escola, e busca estabelecer tipologias, como a violência física, psicológica, sexual, contra o patrimônio e, também, a negligência, que requer atenção especial em contextos envolvendo crianças e adolescentes”. Há capítulos específicos para o bullying e o cyberbullying, o racismo e as ações antirracistas, a intolerância religiosa e a xenofobia. Além do quadro de referência, os Protocolos de Prevenção à Violência de Joinville propõem estratégias responsivas, inclusive avançando em discussões sobre mediação, círculos da paz e práticas restaurativas. Alerta sobre as limitações das iniciativas baseadas em sanções – que podem produzir conformidade, mas não promovem reflexão e mudança – e busca a valorização da escuta. “A mediação escolar oportuniza a humanização, novas aprendizagens, o espaço da escuta e da palavra”, explica o documento. 

Por fim, o último capítulo é destinado aos chamados Fluxos de Encaminhamento, em diagramas que orientam as equipes escolares a endereçar providências, até mesmo quando necessário acionar instâncias como os Conselhos Tutelares. São sistematizados dez fluxos para questões como a depredação patrimonial, a agressão verbal, a agressão física, ameaças à escola, entre outros, sempre remetendo às legislações vigentes, como o Estatuto da Criança e do Adolescente. 

Diego Callegari, Secretário Municipal de Joinville, em apresentação para a formação de gestores escolares de escolas do município

A Educação em Joinville

Cidade do norte de Santa Catarina com pouco mais de 600 mil habitantes, Joinville é conhecida como um dos municípios brasileiros com maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Com forte influência da colonização alemã, foi elevada à categoria de cidade em 1877. 

Conforme o último censo escolar publicado, o município possuía, em 2022, 199 escolas, sendo 160 pertencentes à rede municipal e, entre essas, 21 rurais. Nas escolas do município, atuam quase dois mil professores. A maior parte dos seus 75 mil alunos encontra-se no Ensino Fundamental – Anos Iniciais (30,5 mil) e Anos Finais (21,7 mil). As escolas municipais registraram avanço no Ideb, que passou de 5,0 pontos, em 2005, para 6,8, em 2021, no Ensino Fundamental – Anos Iniciais. Nos Anos Finais, considerando o mesmo período, foi de 4,6 para 5,9. Segundo o censo escolar, ainda, 92% das escolas têm acesso à banda larga, 100% tem água tratada, e 97%, energia elétrica.

Estudo caracteriza violência contra a escola e suas causas  

Um estudo em curso, coordenado pela pesquisadora Telma Vinha, da Unicamp, e produzido pela Organização Social D3e, tem foco nos ataques violentos às escolas e busca encontrar características que se sobressaiam. Na definição estabelecida pelo estudo, os ataques de violência extrema são aqueles ocorridos intencionalmente no espaço escolar, caracterizam-se como crimes de ódio e/ou movidos por vingança (atos infracionais quando autores menores de 18 anos). Caracterizam-se também pelo planejamento e emprego de algum tipo de arma com a intenção de causar morte de uma ou mais pessoas. O estudo traz, principalmente, recomendações para ações preventivas e de remediação. Veja, abaixo, as principais conclusões já divulgadas. 

Característica dos autores 
  • Jovens, sexo masculino e brancos, em isolamento social. 
  • Gosto pela violência e culto às armas de fogo. 
  • Concepções e valores opressores (racismo, misoginia, ideais nazistas). 
  • Ausência de sentido de vida e perspectiva de futuro. 
  • Indícios de transtornos mentais. 
  • Busca por notoriedade — nos últimos anos, matando o máximo de pessoas. 
  • Percepção da escola como lugar de sofrimento. 
  • Usuários da subcultura extremista, consumindo conteúdos de ódio. 
  • Inspiração e admiração por autores de outros ataques. 
Principais recomendações 
  • Controle rigoroso de armas de fogo e munições. 
  • Maior regulação e responsabilização das plataformas digitais. 
  • Políticas públicas direcionadas às escolas com foco na convivência democrática e cidadã. 
  • Investimentos na expansão e no fortalecimento da rede de atendimento psicossocial. 
  • Ampliação dos espaços na comunidade para lazer, socialização, esportes e cultura. 
  • Responsabilização de quem compartilha vídeos dos ataques e informações dos autores. 
  • Adoção de programas que auxiliem jovens na desradicalização e reintegração à sociedade. 
  • Integração dos ataques de violência extrema à legislação de Situações de Emergência. 
  • Construção de protocolos adequados à realidade brasileira para atuar após os ataques. 
  • Criação de um sistema integrado de dados sobre esse tipo de violência. 

Protocolos de Saúde Mental 

Elaborado simultaneamente ao documento da prevenção à violência, os Protocolos de Saúde Mental da rede de ensino de Joinville partem do diagnóstico do impacto provocado pela pandemia da covid-19 para o bem-estar emocional de crianças e adolescentes. Para isso, assume a definição da Organização Mundial da Saúde (OMS), que define a saúde mental como “um componente da saúde e do bem-estar que sustenta nossas habilidades individuais e coletivas para tomar decisões, construir relacionamentos e moldar o mundo em que vivemos”.  

O documento chama a atenção, em sua introdução, para o papel das instituições educativas. “A escola é o espaço social ao qual crianças e adolescentes dedicam a maior parte do seu tempo e, principalmente, onde desenvolvem relações e competências, ao passo que manifestam importantes aspectos do seu desenvolvimento. Os educadores devem assegurar que a escola seja um ambiente de proteção, atentando-se ao estado de saúde mental dos estudantes para atuar como o primeiro ponto de apoio e encaminhamento”, propõe o texto. 

Partindo da legislação específica que deve circunscrever o espaço das ações dos educadores, o documento estabelece parâmetros para o que os educadores podem fazer – e também para o que não podem. “É importante ressaltar, mais uma vez, que a escola e os profissionais da educação não são responsáveis e não podem diagnosticar e tratar a saúde de seus estudantes. Seu papel é de apoio a órgãos e instituições de saúde e demais equipamentos da Rede de Apoio e Proteção à Criança e ao Adolescente”, definem os Protocolos. 

Ao mesmo tempo, ressalta a importância de observar sinais que, somados e contextualizados, podem indicar situações de risco que precisam de atenção urgente, como mudanças repentinas de comportamento, brincadeiras sobre suicídio e automutilação, tristeza e isolamento, sinais de violência repetidos, incapacidade de autocuidado, entre outros indicativos. 

Por fim, o documento ressalta a importância da formação das equipes para o preparo para a ação intersetorial e até para a tomada de consciência, combatendo estigmas e preconceitos com relação à saúde mental. 

Formação continuada 

Bons protocolos são apenas boas intenções, se não chegam às escolas e promovem transformações. Por isso, a Secretaria de Educação deu início a um conjunto de formações desde o lançamento dos documentos. Foram oito encontros no primeiro semestre e diversas outras ações no segundo semestre, envolvendo orientadores educacionais e outros profissionais. Segundo o coordenador Gabriel Iwaya, os protocolos foram importantes para a formação de 400 novos contratados para atuar nas escolas da rede municipal. Além disso, foram um dos temas centrais da educação de 200 gestores no programa denominado Escola de Líderes. O próximo passo é realizar formações para compartilhamento de boas práticas responsivas no trabalho educativo de enfrentamento do bullying e do cyberbullying. 

Enquanto isso, novas formações acontecem para apresentar os protocolos para um número crescente de estados e municípios que se mostram interessados. Já foram feitas apresentações para universidades e conselhos que atuam na rede de proteção à infância e à adolescência. Prefeituras de diversos estados já procuram Joinville para buscar referências — que, afinal, pode ser descrita como um grande esforço de acolhimento e de diálogo. “Temos convicção na postura dialógica para enfrentar esse grande desafio”, finaliza o coordenador.  


Para saber mais

  • Protocolos de Prevenção à Violência Escolar da Rede Municipal de Ensino de Joinville. Prefeitura de Joinville. Disponível em: mod.lk/ed25_ps1. Acesso em: 11 out. 2023.  
  • Protocolos de Saúde Mental da Rede Municipal de Ensino de Joinville. Prefeitura de Joinville. Disponível em: mod.lk/ed25_ps2. Acesso em: 11 out. 2023. 
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