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Língua oficial, mas (quase) desconhecida

Castanhal (PA) terá em 2023 uma escola pública bilíngue Português-Libras. Conheça aqui essa experiência bem-sucedida de duas décadas de inclusão na rede pública de ensino, e que prepara um passo adiante.

texto  Ricardo Prado

Pouca gente sabe, mas desde 2002 somos um país com duas línguas oficiais: o Português e a Língua Brasileira de Sinais (Libras), que por meio da Lei n. 10.436 passou a ser considerada a língua materna da comunidade surda no Brasil. Se, duas décadas após a promulgação da lei, as implicações educacionais dessa oficialização ainda se apresentam como iniciativas tímidas e pontuais frente ao desafio de oferecer um ambiente de inclusão e qualidade de ensino para uma população estimada pelo IBGE em cerca de 2,2 milhões de pessoas com surdez ou deficiência auditiva grave, já surgem, aqui e ali, algumas ilhas de excelência.  

Uma delas é Castanhal, cidade localizada a 70 quilômetros de Belém, no Pará, que no ano seguinte à aprovação da Libras como língua oficial brasileira enviou o primeiro grupo de 300 professores da rede municipal para um curso de formação na capital do estado, ministrado pela Universidade Federal do Pará. Nesse grupo pioneiro estava Gilsiane Paixão, que atualmente é coordenadora de educação especial do município. Na ocasião, ela se tornou especialista em tradução e interpretação em Libras e ganhou, juntamente com os outros professores desse grupo, a missão de multiplicar na rede a aprendizagem adquirida na capital. Ela se lembra de que, na época, havia seis alunos surdos. Em poucos anos, seriam centenas. 

“A comunidade de surdos é muito comunicativa. Então, quando um surdo sabe que em determinada escola tem um professor que conhece Libras, tem um tradutor-intérprete, automaticamente um chama o outro, que chama o outro, e aí a gente foi recuperando alguns alunos que até então se encontravam fora do sistema educacional”, explica Renan Cabral, graduado em Educação Física e Pedagogia, especialista em tradução da língua de sinais e mestre em Educação. Trabalhando como auxiliar de coordenação da educação especial de Castanhal, Renan pertence à segunda geração de professores a abraçar a causa da inclusão de surdos no município. Ele explica o efeito da lei nos sistemas de ensino do país: “Antes dessa lei, se reconhecia a Libras como linguagem. Sendo linguagem não havia todo esse aparato de suporte para o ensino e aprendizagem. Quando a lei foi aprovada e sancionada, os sistemas educacionais precisaram se adequar a essa necessidade, pois, se eu tenho uma língua oficial, preciso acessibilizar a língua escrita e a língua falada a esse novo dispositivo legal”.  

Libras Para Todos 

Mas Castanhal fez mais do que formar e replicar internamente uma formação inicial em Libras para uma parcela dos professores. Em 2012 o município paraense promulgou uma lei que incluiu o ensino de Libras como disciplina no currículo escolar de todos os alunos do Ensino Fundamental, ou seja, o ensino da Língua Brasileira de Sinais foi equiparado ao ensino de uma língua estrangeira, como o inglês. O objetivo do decreto era evidente: ampliar a inclusão, fazendo com que a população ouvinte conseguisse se comunicar melhor com a comunidade surda que passava a frequentar, cada vez mais, as escolas da rede.  

Com isso, muitos alunos começaram a vir dos municípios vizinhos, recorda Gilsiane, e acabavam se transferindo com suas famílias para Castanhal. Era porque nesta cidade uma barreira de exclusão histórica estava sendo vencida. “Se a gente verificar as pesquisas no Brasil e no mundo, vamos descobrir que a grande maioria dos surdos é de filhos de pais ouvintes. E a maior parte deles não aprende Libras dentro de casa. Eles começam a aprender a língua de sinais em pequenas comunidades surdas. E dentro da escola, em contato com estudantes mais velhos”, explica Renan.  

Mas, afinal, o que vem a ser a Língua Brasileira de Sinais? Trata-se de uma língua criada no século XIX, inspirada na Língua Francesa de Sinais, já que foi na França que surgiu a primeira escola para surdos, criada pelo religioso Charles Michel de l’Epée no século XVIII. Em 1857, a convite de d. Pedro II, o conde francês Hernest Huet, que era surdo, chegou ao país para criar a primeira escola para surdos, que teria sede no Rio de Janeiro. Como Huet era usuário da Língua Francesa de Sinais proposta por l’Epée, usou-a como arcabouço para criar a Língua Brasileira de Sinais – que acabaria por incorporar sinais de comunicação que a comunidade surda brasileira já usava na época. O interesse do monarca por esse tema era familiar: seu genro, conde D’Eu, casado com a princesa Isabel, era parcialmente surdo.  

Oralistas versus Gestualistas

Havia no final do século XVIII uma disputa entre duas concepções de ensino para pessoas surdas: o gestualismo, que se apoiava na experiência francesa iniciada com L’Epée, e o oralismo, corrente defendida por boa parte dos médicos e cientistas da época, liderados por Alexander Graham Bell, o inventor do telefone. O embate entre as duas correntes pedagógicas teve um momento de triunfo da corrente oralista no Congresso de Educadores Surdos de Milão, realizado em 1880. Essa linha de pensamento defendia o ensino da leitura labial e o desenvolvimento da oralidade nos surdos e abominava qualquer uso gestual para a comunicação. Segundo alguns especialistas da época, essa gestualidade seria inadequada para seres humanos, pois aproximava os surdos dos macacos. 

Contando com apenas um surdo entre seus 164 participantes e com uma seleção que excluiu boa parte dos defensores do gestualismo, dali sairiam oito resoluções que lançariam as comunidades surdas em uma espécie de Idade das Trevas. Dentre elas, a resolução mais draconiana proibia o uso da língua de sinais nas escolas para surdos sob o argumento de que a comunicação manual desestimularia a aprendizagem da língua oral. Seria, em outras palavras, uma “muleta” que deixaria os surdos “preguiçosos” para a fala. Em algumas escolas, quem fosse flagrado se comunicando por meio de gestos seria castigado. Chegavam a amarrar as mãos de crianças para forçá-las a se comunicar oralmente.  

O Congresso de Milão sedimentaria uma concepção da surdez como doença, como falta, deficiência, e retardaria por décadas a integração das comunidades surdas à sociedade. Na verdade, nessas comunidades, que se tornaram quase clandestinas por questão de sobrevivência, a língua de sinais continuou viva, sendo praticada e se adequando às mudanças e aos novos hábitos de seus praticantes. Por outro lado, instituições como escolas, centros profissionalizantes, associações de apoio e clínicas para surdos, mesmo aquelas consideradas centros de excelência para a reabilitação desse público “deficiente”, o faziam por meio de um viés assistencialista e sempre tendo como princípio norteador o desenvolvimento da habilidade oral e da leitura labial por parte dos surdos. 

Paralelamente a outros movimentos de inclusão e questionamento de paradigmas ocorridos ao longo do século XX, em diferentes países, as comunidades surdas começaram a buscar o reconhecimento daquelas línguas de sinais que, na prática, nunca deixaram de ser usadas. Um trabalho relevante no sentido de reabilitar a corrente pedagógica que defendia o gestualismo foi feito pelo linguista norte-americano William Stokoe, que, nos anos 1960, identificou na American Sign Language (ASL), a língua de sinais criada nos Estados Unidos, aspectos lexicais e sintáticos presentes em outras línguas genuínas. Por meio de estudos linguísticos e pesquisas pedagógicas, aos poucos o paradigma da falta começaria a ser alterado. No Brasil, a movimentação das comunidades surdas teve início em 1993 e uma década depois culminaria com a oficialização da Libras como segunda língua oficial brasileira.  

Uma língua viva 

Na Libras não existem tempos verbais nem artigos; portanto, a ordem das informações é diferente, sendo esta uma língua que também incorpora expressões faciais e corporais. Ou seja, um mesmo sinal, dependendo da expressão que o acompanha, pode ter significados diferentes. Também há regionalidades, como explica Renan Cabral, exemplificando o caso com o gesto para “cachorro”, que na região Sul é feito com a mão cobrindo a boca, imitando uma focinheira, enquanto na região Norte o sinal é feito por um dedo à semelhança do rabo de um cachorro. Já o conhecido alfabeto feito com os dedos das mãos, que muitas crianças aprendem como sendo a “língua de sinais” (também chamado de dactilologia), é usado com o objetivo de representar palavras que não têm gesto equivalente, como nomes de pessoas ou de localidades, ou para se ensinar ou aprender determinada língua gestual. No entanto, quem consegue usar esse alfabeto, que apenas realiza a equivalência entre letras e gestos, não é fluente em Libras. Para aprendê-la, é necessária a mesma disposição que precisamos reunir para nos apropriar de uma segunda língua, diferente da materna. Isso nos faz retornar à experiência pioneira de Castanhal, que agora se prepara para criar a primeira escola bilíngue Português-Libras da região Norte do país. 

Como é uma escola bilíngue 

A expansão no ensino de Libras em Castanhal é fruto de um planejamento de longo prazo que teve início com o decreto municipal de 2012 que, como vimos, tornou obrigatório o ensino da Língua Brasileira de Sinais nas escolas. Por causa daquela legislação, foram criados alguns cargos estratégicos na Secretaria de Educação que respaldaram o crescimento, como o de professor de Libras e de tradutor-intérprete, profissional que, em salas de aula inclusivas, traduzem para os alunos surdos os conceitos das disciplinas por meio da língua de sinais, explica Leno Favacho, licenciado em Letras-Libras, mestre em Educação e assessor de educação especial de Castanhal. “O profissional para poder dar aula de Libras precisa ter uma formação específica em Letras, Língua Portuguesa, ou Pedagogia com especialização em Libras. Por ser um componente curricular gera-se essa exigência, porque esse profissional precisa ir para a sala de aula dominando realmente os conceitos gramaticais, semânticos, porque a Libras tem que ser respeitada e ensinada como língua, igual à língua inglesa, espanhola etc. Hoje, o profissional só entra na rede se tiver a formação específica para ministrar essa disciplina.”  

O passo seguinte na expansão e qualificação da oferta de ensino para a comunidade surda aconteceria em 2022, quando a secretária de Educação Cláudia Seabra se encontrou, em um evento em Macapá, com a secretária nacional para educação de surdos do MEC. Da conversa entre as duas, e da atenção que o município já dispensava ao tema, surgiria a oportunidade de apresentar ao Ministério uma antiga reivindicação da comunidade surda de Castanhal, cada vez mais empoderada: a criação de uma escola bilíngue, na qual os conteúdos fossem ministrados por professores em Libras, de forma que conseguissem se preparar melhor para ultrapassar a difícil barreira do Enem, com uma formação mais sólida. Pela proposta apresentada, e já aprovada, da merendeira à direção, todos na escola serão bilíngues. E, sendo uma proposta inclusiva, a escola estará aberta também a ouvintes. Em uma escola bilíngue Português-Libras as salas de aula são dispostas em forma de semicírculo para que todos na classe possam ter uma boa visualização do professor e dos colegas. A sala de computação também precisa ter equipamentos adequados, bem como a biblioteca. Para a formação do acervo, o apoio do material didático criado pelo Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines) e pela Secretaria Nacional de Educação de Surdos do MEC será fundamental. 

Essa experiência, no entanto, não estaria indo na contramão do movimento feito pelos próprios surdos de se integrarem às suas comunidades, em vez de se isolarem em grupos? Ao saber mais detalhes da iniciativa, Doug Alvoroçado, pedagogo e intérprete de Libras, Google Innovator que trabalha com formação de professores no Rio de Janeiro desde 2014, especialmente com tecnologias educacionais e assistivas, se entusiasma com a ideia: “A proposta é incrível. Um sujeito surdo precisa, em algum momento, do par linguístico e de um par mais experiente. Se esses surdos e surdas estiverem pulverizados em todas as unidades o processo perde força e fica bem mais caro. É necessário em algum momento que esses alunos estejam trocando com usuários de sua língua, aprendendo Libras e português em igualdade de espaço e oportunidade. Assim, ao frequentarem outros espaços, incluindo espaços educacionais, estarão mais preparados”, avalia o especialista. Para ele, existem várias maneiras de incluir: “Cada especialidade tem a sua característica. Incluir não é apenas frequentar a mesma sala, mas é ter as mesmas oportunidades de aprender, e aprender a aprender”.  

Doug cita algumas experiências estaduais, como a do Rio Grande do Sul, e o trabalho da TV Ines, com conteúdo para surdos e mantida pelo Instituto Nacional de Educação de Surdos, mas o cenário geral não é animador; segundo ele, o poder público precisaria investir mais no bilinguismo Português-Libras. Com esse esforço, a quantidade de materiais didáticos aumentaria. “O que vemos hoje na sua maioria são professores bem-intencionados aprendendo Libras por seu interesse próprio, mas a disponibilidade da formação às vezes não avança até a página 2. Os professores conhecem a datilologia (que não é Libras) e aprendem outras comunicações básicas. Vemos também ações pontuais para resolver problemas emergenciais, mas precisamos de um pacto de pulverização desta língua em todos os espaços”, recomenda o especialista.

A escola bilíngue é um sonho da comunidade surda

Maílson de Jesus Teixeira Coutinho é o único surdo em uma família de ouvintes. Seu caso é semelhante ao da maioria dos demais surdos, quase sempre nascidos em ambientes em que a língua de sinais não é necessária – para os demais, diga-se de passagem, pois para o surdo ali se encontra a primeira de muitas barreiras de comunicação que ele precisará enfrentar. O caso de Maílson é emblemático do papel fundamental que a escola tem no sentido de dar participação na sociedade a milhões de pessoas que, sem o apoio de profissionais com fluência em Libras, permanecerão à margem em suas comunidades, sendo pouco compreendidos e compreendendo pouco do mundo por falta de instrumentos para isso. Depois de passar pela escola em Castanhal, como um dos beneficiários do consistente programa de inclusão em curso naquele município paraense, ele hoje trabalha como bibliotecário em uma universidade privada. Ele conta, com satisfação, que seus colegas toda hora estão perguntando os sinais para essa ou aquela palavra. “Acho que estão apaixonados pela língua de sinais e já planejamos um curso de Libras para que o atendimento aos alunos surdos possa ser melhorado”, contou Maílson nesta entrevista, que teve o apoio da tradutora Daniela. 

Educatrix | Como aconteceu seu contato com a Libras? 

Maílson: A minha família é composta toda de ouvintes, todos oralizam e eu sou o único surdo na família. A comunicação através da língua de sinais se dá mais no contexto entre amigos, com quem eu posso conversar livremente, mas com a família mesmo é apenas a oralização que funciona. E isso sempre foi uma barreira na comunicação. Como é que eu ia dizer que estava sentindo dor, que estava me sentindo mal? Quando eu tinha que ir ao médico, era sempre essa dificuldade, essa barreira na comunicação. Foi no convívio com os amigos [surdos] na praça e em outros lugares fora de casa que comecei a aprender um pouco mais da língua de sinais. A partir do momento em que tive contato com a comunidade surda, fui sentindo interesse e me desenvolvendo, e isso foi abrindo caminhos para mim. 

Educatrix | E a entrada na escola, como foi? 

Maílson: Eu participei na escola de um AEE [Atendimento Educacional Especializado, que é uma sala especializada com professor fluente em Libras na qual o aluno ganha fluência na língua de sinais no contraturno da escola], o que foi muito positivo pra mim. Dentro da sala de aula, eu sempre interagia muito com os colegas ouvintes, tirava as dúvidas. Por ser uma pessoa surda, todos eles interagiam comigo, havia trocas, eles me ensinavam algumas palavras, eu ensinava alguns sinais para eles, e aí eu fui desenvolvendo, em sala de aula com eles, e com apoio do intérprete. Quando passei para o Ensino Médio, no 1o ano eu não tive intérprete. Quando eu passei para o 2o ano veio o apoio de um intérprete, no 3o ano do mesmo jeito. E continuei aprendendo, desenvolvendo, principalmente aprendendo mais vocabulário da língua portuguesa, que era o que me interessava. Então, eu sempre tive uma boa interação com os meus colegas ouvintes em sala de aula. A interação com as pessoas surdas que frequentavam a escola também acontecia, havia muita troca de opiniões porque eu me sentia bem à vontade entre elas. Eu procurava não ficar isolado, gostava de interagir, sempre tive a mente muito aberta referente a isso. 

Educatrix | Deve ter sido bem difícil esse 1o ano do Ensino Médio sem o apoio de um tradutor-intérprete, não? 

Maílson: Sim, a profissão de intérprete é muito relevante porque quando você não tem um intérprete fica sem acessibilidade comunicacional, e aí todo mundo fica achando que a gente nunca sabe de nada. E tem aqueles olhares que a gente percebe… Quando não tem o tradutor intérprete eu fico sem entender nada. O professor fica oralizando em sala de aula, e eu aprendo através da Língua de Sinais. O tradutor-intérprete é um facilitador porque a gente aprende através da língua de sinais. 

Educatrix | E sobre a escola bilíngue de Castanhal, qual sua opinião? 

Maílson: A escola bilíngue é um sonho da comunidade surda aqui de Castanhal e vai ser uma satisfação imensa contribuir para esse movimento porque a comunidade surda precisa. A criança surda precisa de uma escola bilíngue, na qual ela possa aprender um ensino de qualidade, com professores fluentes em Libras. 

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