Espírito bilíngue
Vamos adentrar as histórias de três escolas que expandiram o inglês para além da disciplina de língua estrangeira e vivenciam o ensino bilíngue.
texto Ricardo Prado
O idioma do mundo globalizado é o inglês. O domínio da língua inglesa tornou-se incontestável, e muito disso se deve a uma realidade geopolítica anterior à globalização: o inglês foi o idioma usado pelos impérios britânico e estadunidense, que, sucessivamente, se tornaram potências mundiais – a Inglaterra no século 19 e os Estados Unidos durante o século passado. Assim, o inglês já estava bem posicionado, nos quatro cantos do mundo, quando a conectividade chegou para a maioria da população. A internet, que trouxe a possibilidade do mundo alcançável por meio de simples cliques, já nasceu falando e escrevendo em inglês. Quem não dominava o idioma tratou de aprender como podia para se entender na nova selva midiática: a world wide web. Expressões ligadas ao mundo da informática, desde download a browser, de e-mail a chat, invadiram a vida das pessoas. E, claro, chegaram às escolas.
Buscando se adaptar ao cenário, no qual o domínio do inglês como segunda língua pode ser um diferencial na vida profissional dos estudantes, algumas instituições adotaram o ensino bilíngue. Não são escolas que nasceram bilíngues; estas geralmente se concentram nas grandes metrópoles e atendem, em sua maioria, filhos de estrangeiros residentes no país. Estamos tratando aqui de escolas falantes de português, com perfil inovador, buscando se reinventar. Caso do Colégio Vera Cruz, do Recife (PE), uma instituição confessional católica com 90 anos de existência que adotou um programa bilíngue e, com isso, reestruturou o currículo, de forma que o inglês não ficasse confinado às aulas de língua estrangeira.
Caso também do Colégio Santo Antônio, de Feira de Santana (BA), que desde que abriu a escola para a comunidade – a instituição antes era dedicada apenas à formação de noviços para a ordem dos Capuchinhos –, se tornou uma das maiores instituições de ensino da cidade com mais de 1.200 alunos. Ao perceberem a magnitude do desafio de preparar seus alunos para o nível de exigência do idioma inglês em quase todas as profissões, os coordenadores pedagógicos e a direção planejaram a adoção gradual de um programa de ensino bilíngue.
O terceiro exemplo vem do Colégio Educador, de Caldas Novas (GO), que atende mais de 500 alunos do berçário ao Ensino Médio. Aqui a experiência ainda dá os primeiros passos, com a ampliação da carga horária e um trabalho de formação concentrado inicialmente nos professores da disciplina, mostrando que essa adequação de rumo, e de currículo, é algo que se instala aos poucos na cultura escolar.
A seguir, conversamos com as coordenadoras pedagógicas das três escolas que aceitaram o desafio do ensino bilíngue como tarefa educacional e que comentam as aprendizagens de turbinar uma engrenagem em pleno movimento.
Preparação para o ensino bilíngue
O Colégio Santo Antônio (BA) iniciou a implementação de ações de favorecimento da língua adicional em 2015. Lílian Leal de Araujo, coordenadora da escola, conta que a instituição optou por adotar uma abordagem comunicativa, com a ampliação da carga horária em todas as turmas, da Educação Infantil ao Ensino Médio. “Criamos projetos voltados para o idioma, e atividades sequenciadas com celebrações de outros países falantes de Língua Inglesa. O ambiente da escola começou a ser sinalizado em português e inglês. Além disso, houve a criação de um laboratório de Língua Inglesa, possibilitando muitas trocas entre os estudantes com jovens de outras nacionalidades, como Rússia, Tailândia, Itália, Islândia, entre outros países”, relembra. No final de 2019, após longa pesquisa e estudo, e a participação em cursos e congressos, a escola iniciou a formação dos professores para o início da Educação Bilíngue, que aconteceu em 2020.
O desafio do Colégio Vera Cruz (PE) foi unir a tradição de mais de 90 anos com as atualizações educacionais da
contemporaneidade. “Decidimos investir em um programa bilíngue que se adequasse às nossas convicções educacionais, e que, por outro lado, ofertasse para os nossos alunos ainda mais qualidade no seu desenvolvimento pedagógico e cultural”, conta Anne Teixeira, coordenadora da instituição. Foi preciso passar por um processo de implantação do programa bilíngue. A escola reforçou o corpo docente com especialistas na área e investiu na formação dos professores mais antigos com cursos e avaliações do próprio programa. “Hoje temos em nossa equipe três professoras exclusivas para o programa. Mesmo sendo uma escola que tem apenas um programa bilíngue, os desafios são enormes, pois nós saímos de uma zona de conforto e mergulhamos dentro de uma realidade nova. E bastante dinâmica”, destaca.
O Colégio Educador (GO) iniciou sua jornada no ensino bilíngue em 2019. O programa foi implementado pela Educação Infantil e de lá para cá vem avançando gradualmente. “No primeiro ano, o ensino bilíngue foi instituído desde a turminha de 3 anos até os alunos do 5o ano. Daí, no ano seguinte, 2020, incluímos o 6o ano. Agora em 2021 entramos com o 7o ano. A formação foi feita exclusivamente com os professores de inglês. Na época foram quatro professores. Para nós, o currículo bilíngue ainda é apenas um algo a mais, uma vez que é um programa e que não envolveu ainda todas as turmas da escola”, explica a coordenadora Marli Fonseca Miranda.
Buscamos estratégias que estimulem o uso da língua adicional e, ao mesmo tempo, aumentem o engajamento dos estudantes de uma forma lúdica.
Diferenças entre o currículo regular e o currículo bilíngue
Há certa flexibilidade para as escolas construírem o currículo e as cargas horárias dos seus programas bilíngues, focando em um modelo que faça sentido para alunos, famílias e docentes. No caso do Colégio Educador, a principal diferença está no formato das aulas, ministradas 100% do tempo em inglês, com algumas ressalvas, todos os dias da semana. “Temos observado um resultado satisfatório entre alunos e pais, mesmo que a experiência não seja para todas as turmas”, comemora Marli.
O Colégio Vera Cruz aposta em um currículo bilíngue baseado em quatro pilares principais de ensino. O primeiro é o Content and Language Integrated Learning, uma abordagem educacional na qual o inglês não é estudado de forma isolada. Ele atua também na aprendizagem de outros conteúdos, como Artes, Matemática e Ciências. O segundo pilar, chamado de Blended Learning, consiste no uso integrado e consistente das ferramentas de aprendizagem presencial e virtual. Os recursos digitais, portanto, não são meramente periféricos ou ilustrativos, mas sim parte integral do programa. O terceiro pilar é o Experiential Learning, que prevê uma aprendizagem incentivada por meio de vivências e atividades colaborativas, com o objetivo de consolidar o conhecimento de forma divertida e inteligente. Por fim, o quarto pilar é o ensino para as competências socioemocionais. “Dá para perceber a diferença de um currículo regular porque o programa bilíngue traz um repertório maior de competências e habilidades. O foco é o protagonismo do aluno, vivenciando experiências cotidianas e não apenas um currículo engessado baseado em teorias, sem didática nem prática”, comenta Anne Teixeira.
A Base Nacional Comum Curricular é o documento norteador para o currículo do Colégio Santo Antônio (BA). Para construir o seu programa bilíngue, a escola se debruçou sobre as competências e habilidades exigidas para cada segmento/série. A coordenadora Lílian explica que “a multidisciplinaridade é uma constante aqui na escola. Abordamos na língua adicional uma gama de temas voltados a linguagem, matemática, história, geografia, artes e música. Isso permite que os estudantes criem conexões entre diversos saberes e, ao mesmo tempo, amplia as possibilidades de comunicação entre os alunos. A língua inglesa passa a ser uma ferramenta facilitadora ao acesso de um mundo de informações”.
Lidando com as dificuldades pedagógicas no ensino bilíngue
Ao falar sobre o ensino de um segundo idioma, a atuação dos professores para identificar e intervir em possíveis dificuldades pedagógicas costuma despertar o interesse dos pais. Anne Teixeira, do Colégio Vera Cruz (PE), conta que são realizadas reuniões trimestrais com as famílias com o intuito de compartilhar feedbacks e orientações pedagógicas viáveis para cada criança de uma maneira personalizada. “Os nossos estudantes são avaliados por meio de conceitos, em que a professora verifica seu desempenho, a oratória e a escrita, entregando ao final de cada semestre um relatório com os avanços e os pontos a melhorar”, conta. Todo esse processo é compartilhado com a professora do programa, a coordenação da escola e a família, formando uma tríade que atua diretamente no crescimento educacional daquele estudante.
No Colégio Santo Antônio, a orientação é identificar a dificuldade aluno a aluno e buscar as ações necessárias para o desenvolvimento de cada criança. “Buscamos estratégias que estimulem o uso da língua adicional e, ao mesmo tempo, aumentem o engajamento dos estudantes de uma forma lúdica, por meio de materiais concretos, ampliando o uso da expressão facial e corporal, incluindo músicas, filmes, cooking classes e games para incentivar a comunicação desde a Educação Infantil”, relata a coordenadora Lílian. Em 2021, a escola também criou iniciativas e momentos importantes para ampliar o contato das crianças com a língua inglesa. “O primeiro foi uma semana de contação de histórias em inglês, o CSA Storytelling Week: Engaging and entertaining with tales (CSA Semana do Storytelling: Envolvendo e divertindo com contos). O segundo foi o Kids Week, uma semana de brincadeiras e interatividade, tudo feito em inglês”, complementa Lílian.
Ferramentas digitais e inovação
O acesso a ferramentas digitais inovadoras se torna mais facilitado pelo fato de as turmas e professores poderem trabalhar com softwares em outra língua? Esse foi um dos mistérios que buscamos desvendar com as coordenadoras. Para Anne Teixeira, do Colégio Vera Cruz, essas ferramentas digitais facilitam bastante e de forma global. “Mesmo os professores que não estão inseridos no programa bilíngue tiveram avanços positivos. Trabalhamos com as ferramentas do Google For Education, Google Meet, Zoom e o portal do Educate Bilingual Program”, conta.
No Colégio Educador, além das plataformas digitais parceiras inclusas no programa bilíngue, a escola também utiliza o Google For Education e Google Meet. “Os alunos também passaram a usar tablets, smartphones e notebooks com mais frequência no período das aulas”, explica a coordenadora da instituição.
Lílian Leal de Araujo, do Colégio Santo Antônio, relata que as ferramentas digitais tiveram lugar de destaque na transição para o ensino bilíngue. “Foram necessárias pesquisas, levantamentos e muitas leituras. Os professores participaram de diversas formações remotas para se familiarizarem com o uso dessas ferramentas digitais. Nós também contamos com a plataforma digital do Educate Bilingual Program para professores e alunos. Essa plataforma tem atividades interativas, vídeos, games, pôsteres, além de uma biblioteca virtual com cerca de 6.000 volumes”, finaliza a coordenadora.
Ricardo Prado é jornalista e roteirista freelancer, editor da revista digital de educação Veras e autor do romance A fala do céu (Global) e dos livros infantis Uma cor só minha: o diário de um daltônico (Moderna) e No meio da bicharada (Moderna).