Quem cuida dos professores?
O tema da saúde mental vem ganhando relevância e é importante que não seja encarado como mais um modismo na educação. Violência crescente e ataque às escolas torna a questão ainda mais aguda.
texto Paulo de Camargo
Aulas de vôlei, treino funcional, futebol e ioga; orientação emocional, social, financeira e jurídica em um Programa de Apoio ao Educador; palestras sobre saúde, tabagismo, alcoolismo, entre outros temas; monitoramento de indicadores como pressão arterial e glicemia, exercícios para saúde vocal, pesquisa de clima organizacional, trabalho voluntário — a lista de ações do Colégio Santa Cruz, em São Paulo, para oferecer suporte ao equilíbrio emocional dos professores é extensa. Assim como o Santa Cruz, diversas outras escolas particulares e públicas vêm prestando atenção na saúde mental de seus educadores.
Mas se o tema já vinha se mostrando uma prioridade pelos impactos gerados por quase dois anos de escolas fechadas ou funcionando parcialmente, a recente onda de violências e ataques às escolas registrados no Brasil tornou o tema agudo e elevou o problema a uma nova dimensão, com grande sentido de urgência.
O cenário já era preocupante. Uma pesquisa recente realizada regularmente pelo Instituto Ame Sua Mente e pela associação Nova Escola, com a participação de 5 mil profissionais da Educação, mostrou que 21,5% dos educadores consideram sua saúde mental ruim ou muito ruim — um aumento de quase 10 pontos percentuais entre 2021 e 2022. Em 2020, primeiro ano da pandemia, o índice chegou ao seu ponto máximo — 30,1%.
“Os professores são figuras de equilíbrio, referências para os alunos. Portanto, precisam ter uma proteção especial neste sentido para que possam também proteger os outros. Para poder cuidar de outros, precisam antes cuidar de si mesmos”
A pesquisa, denominada Saúde Mental dos Educadores 2022, mostrou em detalhes o atual estágio de estresse dos docentes e gestores. Entre os dados registrados, é relevante notar o sentimento de ansiedade (presente em 60,1% dos entrevistados), seguido por baixo rendimento e cansaço excessivo (48,1%) e insônia, que atinge 41,1% dos entrevistados.
Contudo, o levantamento aponta outros dados preocupantes. Cerca de 70% dos ouvidos no estudo relatam não ter nenhum tipo de suporte, embora tenha sido registrado aumento entre aqueles que indicavam receber algum apoio da própria escola ou de outras instituições. Foram 36,5% neste ano, contra 21,9% no ano anterior.
É bem verdade que este não é um problema unicamente brasileiro. Conforme o pesquisador espanhol José Maria Avilés Martínez, uma das principais referências em convivência escolar na Europa, o necessário apoio ao professor no campo da saúde mental deve ser um tema prioritário. “Os professores são figuras de equilíbrio, referências para os alunos. Portanto, precisam ter uma proteção especial neste sentido para que possam também proteger os outros. Para poder cuidar de outros, precisam antes cuidar de si mesmos”, acredita Avilés, que desenvolve projetos nesse campo na Espanha e em outros países.
Para ele, o mundo atravessa um momento muito delicado, pois acabamos de sair do difícil período da pandemia. “Agora, todos falam de saúde mental, mas passamos décadas pedindo que este fosse um pilar fundamental da convivência na escola. É algo extremamente necessário”, lembra.
É verdade que o cuidado com a saúde dos professores parte de uma visão de respeito profissional, direito que assiste a todos os trabalhadores, e não se pode esquecer que esse tratamento tem reflexos imediatos na sala de aula e na escola. Afinal, lembra o pesquisador espanhol, muitas vezes os professores serão os mediadores das relações da comunidade escolar e precisam estar bem para fazer frente a situações educativas novas e muitas vezes desafiadoras.
Não aos modismos
Para o psiquiatra Rodrigo Bressan, o tema da saúde mental vem ganhando relevância e é importante que não seja encarado como mais um modismo na educação. Segundo Bressan, presidente do Instituto Ame Sua Mente, os índices de afastamento dos professores por depressão são assustadores. “Antes, alguns olhavam para esses números e falavam: é uma fábrica de laudos. Mas não é. Trata-se de um fenômeno mundial”, avalia.
Na sua visão, isso acontece porque os docentes vivem a tempestade perfeita em sua profissão. “São pessoas altamente vocacionadas, com uma estrutura de trabalho precária e remuneração proporcionalmente baixa”, analisa. A própria Organização Internacional do Trabalho (OIT) já colocou a profissão docente entre as mais estressantes que existem. “Tudo leva a um desgaste muito grande”, diz o psiquiatra, que lidera projetos realizados em parceria com escolas das redes pública e privada. “Por isso, a ideia de eu tenho que cuidar de mim mesmo para cuidar dos outros é chave, e não podemos fazer intervenções em escolas que não respeitam os educadores”, afirma.
Estudioso do tema, Bressan costuma lembrar que os transtornos mentais são bastante prevalentes, chegando a afetar entre 25% e 30% da população mundial. São doenças psiquiátricas como depressão, transtorno de ansiedade, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), esquizofrenia, anorexia, entre outros. “É um impacto muito grave e a escola precisa estar muito atenta, tanto pelo trabalho com crianças e adolescentes, como com os profissionais da Educação”, avalia.
Para enfrentar o desafio, Bressan aposta na formação continuada dos educadores como uma ferramenta poderosa. Trata-se, a seu ver, de um letramento que permite aos educadores sair do imobilismo para começar a identificar sinais, a lidar com questões e dar o encaminhamento adequado, seja para os alunos, seja para si mesmos.
Na sua visão, é importante que a sociedade pressione para que o tema não seja tratado como modismo e esquecido em seguida. “Na pandemia, estavam todos estressados e era mais fácil admitir problemas pessoais. Isso fez diminuir o preconceito contra as doenças mentais. Agora, é preciso manter esse tema no topo das preocupações”, defende.
Há exemplos em todo o país. Em janeiro, por exemplo, a Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal lançou um guia para orientar o cuidado da saúde mental entre os servidores, denominado Janeiro Branco: a vida pede equilíbrio. No Rio de Janeiro, a prefeitura deu início, ainda em 2021, ao Programa Saúde Mental para 51 mil profissionais da rede municipal de ensino.
Isso acontece porque os docentes vivem a tempestade perfeita em sua profissão. “São pessoas altamente vocacionadas, com uma estrutura de trabalho precária e remuneração proporcionalmente baixa”
Apesar das muitas iniciativas existentes, ainda é necessário avançar a fronteira das intenções. É o caso do Projeto de Lei n. 3.383/21, proposto pelo senador Alessandro Vieira. O texto institui a constituição de um Comitê Gestor de Atenção Psicossocial, com a participação da comunidade escolar e de representantes da atenção básica local. No entanto, depois de quase dois anos parado, aguardando distribuição, apenas recentemente o texto voltou a tramitar.
Com o agravamento da violência nas escolas, que pode ser verificado pelo encurtamento do tempo entre os episódios, diversas iniciativas surgiram em Estados e municípios. A Secretaria de Estado da Educação de São Paulo retomou, por exemplo, um programa de atendimento psicológico nas escolas – que havia sido desativado ainda em fevereiro.
Deve-se considerar, no entanto, que sempre há o risco de descontinuidade de políticas públicas. Por isso, é necessário estar alerta para o risco de programas pontuais, que nascem durante tragédias, e logo são esquecidos. Mesmo na Espanha, por exemplo, muitas medidas são eleitoreiras, na opinião de Avilés, e miram apenas o curto prazo. Para ele, é fundamental que se criem programas de longo prazo, integrados com o planejamento escolar, em todas as dimensões.
Para o pesquisador espanhol, essa rede de cuidados tem múltiplas dimensões. Naquilo que chama Pedagogia de Cuidados, trata-se de entender a escola muito mais do que um centro de conhecimento, mas sim como um lugar de convivência que deve produzir bem-estar. Avilés chama a atenção, por exemplo, para a importância do trabalho em equipe, com responsabilidade compartilhada e realização coordenada, que atue principalmente de modo preventivo. “A qualidade do ambiente escolar não depende apenas de uma pessoa, mas de uma equipe, de um contexto, de uma escola que assuma essa cultura e proponha estratégias para elaborar e desenvolver essa pedagogia”, afirma.
É importante, no seu entender, também para as questões de gênero. Segundo explica, é muito frequente que recaia sobre as alunas e sobre as educadoras o papel de cuidado. Portanto, desenvolver a responsabilidade coletiva, em que os homens também sejam responsáveis pelo cuidado mútuo, é essencial e educativo, em consonância com as práticas de igualdade de gêneros na sociedade.
Em diversas ações realizadas com escolas e universidades brasileiras, Avilés vem focando na formação de professores. “É preciso construir essas habilidades e competências com os docentes. Isso precisa ser um objetivo educativo, que precisa ser ensinado – o que é plenamente possível”, explica. Como exemplo de parceria com esse objetivo, Avilés realizou uma oficina na Escola Concept, em São Paulo, com foco na Pedagogia de Cuidados. A ação se integrou a um conjunto de iniciativas que já caminham no mesmo sentido. A escola planeja recessos estratégicos com focos no bem-estar físico e mental e promove diversos momentos de vida comunitária, bem como estimula práticas esportivas, culturais e jogos colaborativos entre os docentes. “Essa sempre foi uma prioridade em nosso projeto”, explica a diretora Priscila Torres.
Mas, afinal, quem deve ser o responsável pela proposição de iniciativas para o bem-estar docente? Para Avilés, são os diretores, no caso das escolas privadas, e das políticas públicas, no caso das redes de ensino. Sem o envolvimento dos órgãos gestores, as chances de ações duradouras são pequenas. São necessárias mesmo mudanças de paradigmas, para que a escola se torne um lugar de bem-estar. “Propostas nesse sentido precisam estar articuladas com os demais planos pedagógicos. Está sendo feito menos do que se deveria fazer, o mundo vive uma situação crítica e há consciência da necessidade de se fazer mais pela convivência e pela saúde mental”, finaliza Avilés.
Para saber mais
- JANEIRO BRANCO 2023 – A vida pede equilíbrio. Janeiro Branco. Disponível em: mod.lk/ed24_cd2. Acesso em: 13 abr. 2023.
- LYRA, T. Pesquisa revela que saúde mental dos professores piorou em 2022. Nova Escola, 2022. Disponível em: mod.lk/ed24_cd. Acesso em: 13 abr. 2023.