Políticas inclusivas para TEA desafiam rede pública de ensino
Matrículas de alunos com diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA) aumentaram 44,4% na Educação Básica. Redes de ensino buscam aprimorar trabalho realizado com crianças e adolescentes.

Texto: Paulo de Camargo
A divulgação do mais recente Censo Escolar pelo Ministério da Educação, em abril de 2025, trouxe um retrato contundente do que vem acontecendo nas redes públicas de ensino e não surpreendeu só quem trabalha no dia a dia da educação. As matrículas de alunos com diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA) aumentaram 44,4% na Educação Básica, apenas entre 2023 e 2024, saltando de 636,2 mil para 918,8 mil matrículas.
Os dados traduzem, em números, a corrida iniciada em redes públicas de todo o país para ampliar as práticas inclusivas em todas as áreas, e, em especial, no campo do TEA, ainda muito marcado pelo preconceito e pela desinformação. Para o diretor de Estatísticas Educacionais do Inep, Carlos Eduardo Moreno, a explicação para o aumento se deve a uma maior consciência para o tema. “A escola passou a identificar mais essa característica”, acredita.
Educação Especial
Matrículas no Brasil por tipo de deficiência, transtorno global do desenvolvimento ou altas habilidades/superdotação

Com isso, a educação especial – que compreende estudantes com deficiência, TEA e altas habilidades ou superdotação – se torna cada vez mais uma área prioritária para as políticas públicas. As matrículas cresceram 17,2%, passando de 1,8 milhões para 2,1 milhões. O número de estudantes matriculados na educação especial aumentou 58,7%, em relação a 2020.
Na ocasião da divulgação do Censo, o atual ministro de Estado da Educação, Camilo Santana, assegurou que o fortalecimento da Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da inclusão é uma estratégia do ministério. Santana prometeu que, até 2026, todas as escolas públicas brasileiras terão salas de recursos multifuncionais. Para ele, o crescimento nas matrículas especiais retrata uma educação pública inclusiva na escola regular.
No quadro mais geral da educação especial, o atendimento educacional de crianças do espectro autista vem preocupando particularmente as redes de ensino, não apenas pelo crescimento do número de casos diagnósticos. Falta formação em uma área que vem sendo cada vez mais estudada pela ciência.

Heterogeneidade
O TEA é definido como uma condição de neurodesenvolvimento caracterizada por dificuldades de comunicação e interação social. Manifesta-se de modos diferentes, e por isso é considerada uma condição heterogênea, embora haja aspectos comuns, como comportamentos repetitivos, foco em objetos específicos e alterações sensoriais. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma em cada 160 crianças apresenta algum nível do TEA, somando aproximadamente 70 milhões de pessoas em todo o mundo.
O Brasil celebra desde 2018, no dia 2 de abril, o Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo, com objetivo de enfrentar o capacitismo e promover o direito das pessoas autistas. De acordo com a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, instituída pela Lei nº 12.764/2012, a pessoa com TEA é considerada pessoa com deficiência para todos os efeitos legais.
Como em muitas outras áreas na educação brasileira, o país está mais avançado na legislação e nos marcos legais do que na realidade de sala de aula. Ainda são muitos os desafios enfrentados no chão da escola, em especial pela falta de estrutura e pela falta de políticas de formação continuada.
Em artigo científico publicado neste ano na Revista Ensaio: Avaliação de Políticas Públicas Educacionais, os pesquisadores Claudia Tania Picinin, José Roberto Cantorani e Vagner Scamati explicam que o desafio da educação de pessoas com TEA são variados, inclusive pela falta de consenso sobre os resultados dos processos de aprendizagem.
“Não há um padrão metodológico que atenda a todos os casos, pois a variabilidade das características individuais ao longo do espectro é um fato e não pode ser negligenciado. As alternativas para conciliar esses aspectos têm sido frequentemente apresentadas por meio de metodologias heterogêneas, confusas e genéricas, criando barreiras significativas para o desenvolvimento cognitivo desses alunos”, escrevem os autores.
Ressaltando o papel dos educadores e dos cuidadores, o estudo alinha que os desafios estão relacionados ao planejamento pedagógico multidisciplinar, à promoção da inclusão social, à formação adequada sobre o TEA, à falta de recursos apropriados para a educação inclusiva, ao apoio especializado e à infraestrutura acessível. “Esse contexto evidencia a falta de sincronização entre as dificuldades enfrentadas por indivíduos com TEA e o ambiente educacional”, conclui o estudo. A falta de uma metodologia fundamentada faz com que muitos professores recorram a práticas inadequadas.

Para o pedagogo Pedro Lucas Costa, doutorando em Psicologia do Desenvolvimento Escolar, também autista e atuando como professor no Distrito Federal, o principal desafio vivido pelas escolas é estabelecer relações de ensino que levem ao desenvolvimento dos alunos. “Hoje, na minha avaliação de quem na escola, pesquisando a escola, formando professores, foi aluno e que vive com autismo, o maior problema está nas relações de ensino”, assegura. “É preciso estar muito atento ao processo de desenvolvimento conceitual dos alunos. Como eles estão operando o significado das palavras para compreender as situações sociais que estão em volta dele”, explica o pesquisador. “O processo de significação é o mais importante para uma mediação pedagógica que seja realmente provocadora de desenvolvimento em estudantes autistas. Isso é fundamental, mas é muito difícil”, diz.
Conforme Pedro, as palavras são fundamentais. “É a partir da palavra que eu uso, que na verdade não é só a palavra, mas o sentido dessa palavra, o contexto específico”, explica. Para ele, sem essa percepção, as relações sociais que vão se estabelecer na escola não vão ser relações sociais dialéticas, nas quais o professor elabora um conceito e o aluno devolve a sua elaboração. “O professor precisa perceber a elaboração do aluno e, a partir disso, propor uma mediação para qualificá-la”, ensina.
Isso acontece com os conteúdos escolares e com as instruções mais iniciais de uma relação escolar. Por exemplo, o próprio ato de sentar-se em uma cadeira. “Será que o aluno percebe aquela situação social? Então, preciso saturar as mediações com o signo, com o significado, com o sentido tanto no nível cognitivo quanto afetivo, pois essas dimensões não se separam”, diz. Por isso, as relações de ensino-aprendizagem precisam permitir ao aluno trazer sua visão e conseguir estabelecer relações com o professor. “Caso contrário, ele vai estar sempre numa situação apartada daquele momento social com o coletivo”, explica Pedro.
“Se as relações de ensino para serem inclusivas ficarem resumidas ao que eu consigo observar, é muito pouco. Isso não é pedagógico, beira o adestramento. É preciso oferecer vias alternativas para esse aluno”, analisa. “Acredito que o desenvolvimento das pessoas ocorre necessariamente nas relações sociais, e, por isso, a educação deve ser inclusiva, para que possa permitir o real desenvolvimento”, defende.
Para ele, as escolas e os educadores precisam ter boas condições materiais para realizar a mediação pedagógica inclusiva. “Vejo boas experiências, há professores fantásticos, mas existe uma repetição nessas boas experiências: as condições de trabalho. Isso vai desde salários decentes, da infraestrutura da escola, do prédio, do número de alunos reduzido e oportunidades de planejamento e trabalho colaborativo”, acredita. “A inclusão não pode ser reativa, um desespero. O professor precisa estar preparado e ter condições”, finaliza.

Atuação das Redes Públicas
As redes de ensino vêm buscando se preparar para aprimorar o atendimento de alunos com TEA, com ações próprias e a partir das políticas propostas pelo Ministério da Educação, no Governo Federal.
O MEC prioriza duas frentes: a estruturação do Atendimento Educacional Especializado (AEE) e a formação de profissionais da educação. O AEE é um profissional complementar, que possibilita a elaboração de estratégias pedagógicas para garantir a inclusão educacional dos estudantes autistas nas escolas comuns. Busca organizar recursos pedagógicos e de acessibilidade para eliminar as barreiras presentes no ambiente escolar e é conduzido pelo professor específico do AEE em parceria com todos os profissionais que atuam no contexto escolar, além do estudante e da sua família.
Segundo o MEC, foram investidos, em 2023 e 2024, R$ 439 milhões com recursos do Programa Dinheiro Direto na Escola para Salas de Recursos Multifuncionais (PDDE-SRM), contemplando 21,3 mil escolas públicas. A verba é destinada às escolas públicas para a aquisição de materiais pedagógicos, equipamentos multifuncionais e tecnologia assistiva, voltados à realização do AEE.
Outra ação do MEC é o Curso de Aperfeiçoamento em Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Foram oferecidas 250 mil vagas iniciais, com um investimento de R$ 20 milhões. Até 2026, serão ofertadas para professores de classes comuns 1,25 milhão de vagas.
O MEC também realizou, em 2024, o Seminário Internacional Autismo e Educação Inclusiva, momento em que foram compartilhados estudos, práticas pedagógicas e experiências educacionais inclusivas para estudantes autistas. Houve, ainda, a homologação do Parecer CNE/CP nº 50/2023, que traz as Orientações Específicas para o Público da Educação Especial: Atendimento de Estudantes com TEA. O documento objetiva qualificar o atendimento educacional para estudantes autistas, de forma alinhada à PNEE-PEI, além de orientar as redes de ensino e atender à demanda das famílias.
As redes estaduais e municipais também vêm intensificando as iniciativas. Em Mogi das Cruzes, em São Paulo, há 1.697 alunos com TEA atendidos nas escolas públicas municipais. Segundo Cláudia Regueiro, diretora do Departamento de Educação Especial e Inclusiva da Secretaria de Educação, a prefeitura dispõe de uma equipe multidisciplinar formada por professores especialistas, pedagogas, psicólogas, fonoaudiólogas, psicopedagogas e fisioterapeutas, que atuam no contraturno. Além de três unidades voltadas à Educação Especial, as escolas também possuem salas de Atendimento Educacional Especializado — AEE.
“A Escola Clínica realiza uma média de 3.044 atendimentos mensais, no contraturno. A triagem é conduzida por uma assistente social. Em seguida, a criança passa por avaliação com uma neuropsicóloga, que define as terapias necessárias. A partir dessas recomendações, é agendada a consulta com o neuropediatra ou outro médico especialista em TEA, dando início ao fluxo completo de atendimento”, explica Cláudia.
A Escola Clínica conta com ambientes preparados para os atendimentos terapêuticos, clínicos e educacionais, conduzidos por uma equipe transdisciplinar.
Os alunos da rede têm prioridade, inclusive os que já recebem suporte nas salas de recursos das escolas polos e da Escola Municipal de Educação Especial (Emesp).
No Paraná, a Secretaria de Estado da Educação possui um Departamento de Inclusão, que procura atender a todos os estudantes que integram o público da Educação Especial, tanto no turno como no contraturno.
Para além do atendimento educacional especializado ofertado nas salas de recursos multifuncionais e no atendimento educacional especializado integral quando da matrícula na Escolas de Tempo Integral, ainda são ofertados: professor de apoio educacional especializado; professor de apoio à comunicação para o atendimento ao estudante com deficiência física neuromotora; tradutor e intérprete de Libras, para o atendimento ao estudante surdo; guia intérprete para o atendimento de estudantes surdocegos; e profissional de apoio escolar, sempre a partir do estudo de caso.
“Todo o trabalho desenvolvido nas escolas tem como objetivo o desempenho pedagógico do estudante da Educação Especial, sempre respeitando suas especificidades e trabalhando para um acolhimento e pertencimento no ambiente escolar”, diz Maira Oliveira, chefe do Departamento de Educação Inclusiva, Diversidade, Direitos Humanos e Educação Especial.
Atualmente, o estado do Paraná conta com aproximadamente 94 mil estudantes da Educação Especial atendidos nas 2.057 escolas da rede pública estadual.

A Experiência de São Paulo
Em São Paulo, segundo Ana Paula Oliveira Piu, consultora especialista em inclusão da Secretaria da Educação de São Paulo, entre os principais apoios e serviços dirigidos aos alunos TEA estão professores especializados, responsáveis pelas classes de Atendimento Educacional Especializado (AEE), que realizam a avaliação pedagógica inicial e identificam potencialidades e características específicas. A partir desse atendimento, será elaborado um Plano de Atendimento Educacional Especializado, realizado no contraturno e como serviço complementar, com foco na eliminação de barreiras à aprendizagem, na potencialização de habilidades e no engajamento do estudante.
Além disso, é oferecido o Projeto Ensino Colaborativo, baseado na modalidade de AEE, expandido e realizado no mesmo turno da aula regular, com atuação conjunta entre o professor especializado do AEE, o regente, os profissionais de apoio e os agentes escolares. São utilizados recursos pedagógicos, de acessibilidade e tecnologia assistiva, o que inclui pranchas de comunicação alternativa, softwares adaptados, materiais concretos, ampliação de fontes, fones com redutor de ruído e dispositivos de apoio à escrita.
Entre os profissionais de apoio, estão os que cuidam das atividades de vida diária, auxiliando os estudantes em alimentação, locomoção e higiene. A Secretaria realiza orientações técnicas mensais com as equipes de Educação Especial das Diretorias Regionais de Ensino, abordando temáticas como características do TEA, acolhimento dos estudantes e responsáveis e práticas pedagógicas inclusivas que envolvem estratégias de acessibilidade e adaptação de material.
Em 2025, o investimento para atendimento a estudantes TEA, altas habilidades/superdotação e estudantes com deficiência, matriculados na rede estadual, é de R$ 474 milhões, superando em 116% os investimentos realizados antes da pandemia. “São mais de 10,2 mil profissionais de apoio escolar para atividades de vida diária; 8,9 mil profissionais de apoio escolar para atividades escolares; e 11,6 mil especializados”, assegura. Outro aspecto que ela destaca é a qualificação dos Professores Especializados em Currículo (PECs) e Supervisores de Ensino por meio de encontros presenciais e orientações técnicas mensais online via Teams.
Esses encontros promovem atualização de conhecimentos, troca de experiências e fortalecimento das práticas. Também há articulação constante entre as diretorias de ensino, supervisão e equipe de Educação Especial para alinhamento de ações.
Como material formativo, recentemente a rede publicou o guia Transtorno do Espectro Autista: Diretrizes para as escolas estaduais de Ensino Fundamental e Médio de São Paulo, que oferece compreensão sobre o TEA no ambiente escolar, esclarecendo o que é o transtorno, as barreiras enfrentadas e as potencialidades dos estudantes, além de combater mitos e preconceitos.
O documento apresenta orientações práticas para professores, gestores e estudantes, abordando acolhimento, inclusão, aprendizagem, caminhos de apoio na escola, ingresso no ensino superior, mundo do trabalho e legislação vigente. Tem sido um recurso importante para a formação continuada e as ações inclusivas nas escolas.
Para Saber Mais
- BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Apresentação coletiva: Censo Escolar 2024. Brasília: INEP, 2024. Disponível em: https://mod.lk/ed27_pl1. Acesso em: 1o ago. 2025
- BRASIL. Lei nº 12.764/2012, de 27 de dezembro de 2012. Institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, instituída pela Lei nº 12.764/2012. Disponível em: https://mod.lk/ed27_pl4. Acesso em: 31 jul. 2025.
- BRASIL. MEC inicia curso de formação em educação especial. Brasília: MEC, 2025. Disponível em: https://mod.lk/ed27_pl5. Acesso em: 31 jul. 2025.
- BRASIL. Parecer CNE/CP nº 50/2023, aprovado em 5 de dezembro de 2023 – Orientações Específicas para o Público da Educação Especial: Atendimento de Estudantes com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Brasília, DF: 2023. Disponível em: https://mod.lk/ed27_pl6. Acesso em: 31 jul. 2025.
- CAPELLINI, Vera Lúcia; DUARTE, Priscila; DIPPÓLITO, Amanda. Transtorno do Espectro Autista (TEA): orientações para as Escolas Estaduais de Ensino Fundamental e Médio de São Paulo. São Paulo: Unesp, 2024. Disponível https://mod.lk/ed27_pl3. Acesso em: 1o ago. 2025.
- ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. OMS afirma que autismo afeta uma em cada 160 crianças no mundo. Nova Iorque, 2025. Disponível em: https://mod.lk/ed27_pl7. Acesso em: 31 jul. 2025.
- SCAMATI, Vagner; CANTORANI, J. R. Herrera; PICININ, Claudia. Os desafios na aprendizagem de indivíduos com transtorno de espectro autista (TEA). Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação, v. 33, n. 125, jan./mar. 2025. Disponível em: https://mod.lk/ed27_pl2. Acesso em: 1o ago. 2025.
