Livro didático: a democratização do conhecimento
A importância do livro didático se reafirma no país. O PNLD chega a 30,6 milhões de alunos, com a distribuição de 206,2 milhões de exemplares, enquanto o mundo editorial se prepara para um futuro híbrido.
Texto: Paulo de Camargo
Vidas secas, Capitães da areia e outras obras literárias de referência para a educação brasileira são textos agora conhecidos pelos jovens alunos do Ensino Médio da Casa Familiar Agroflorestal do Baixo Sul da Bahia, a quase 300 quilômetros de Salvador. Chegaram às suas mãos pontualmente, ao lado de livros didáticos de Língua Portuguesa e outros componentes curriculares, para fortalecer uma experiência de aprendizagem inovadora ainda pouco conhecida no país — as casas familiares rurais, escolas regulares que adotam a pedagogia da alternância. Nessas escolas, os alunos revezam períodos residindo na própria escola com outros de trabalho no campo, em sua região de origem, para aplicação dos conhecimentos adquiridos. Na expressão da professora de História, Katiane Gomes, os livros chegam lá carregados de conhecimentos, de possibilidades, mas também de esperança para os alunos.
Bem longe dali, na Escola de Ensino Médio Nova Sociedade, no Rio Grande do Sul, que fica em um assentamento do MST, o livro também cumpre um papel fundamental de ampliar o acesso à cultura, diz a diretora Raquel Monteiro. “Quando não há um universo literário na família, o acesso ao conhecimento é responsabilidade da escola. Os alunos adoram quando os recebem”, lembra.
As histórias se multiplicam em todos os contextos da escola pública e da escola privada, comunidades mais ou menos vulneráveis, em todas as regiões e contextos sociais. O livro didático faz parte — e não é de hoje — da cultura pedagógica brasileira e do recurso de aprendizagem com o qual as famílias aprenderam a contar.
O grau de reconhecimento da importância pode ser avaliado pela intensidade da reação à iniciativa manifestada pela Secretaria de Educação de São Paulo, em agosto, de deixar o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), abrindo assim mão dos livros didáticos que seriam adquiridos pelo governo federal e recebidos por mais de 1 milhão de alunos da rede estadual do maior estado da federação.
O argumento inicial da Secretaria de Educação de São Paulo expressa alguns dos preconceitos existentes sobre a produção de obras didáticas. O primeiro é de que o livro nasce apenas da iniciativa isolada de um autor, que, sendo professor de uma área, cria conteúdos posteriormente transformados em livro. Evidentemente, os autores são imprescindíveis, mas os livros são fruto do trabalho de grandes equipes e especialistas em diversas áreas — até mesmo para prevenir eventuais equívocos e para garantir que as mais recentes tendências pedagógicas estejam incorporadas, dentro dos parâmetros dos marcos regulatórios. Isso quer dizer que apesar de uma obra ser assinada por um autor, o trabalho naquela coleção envolve diversas perspectivas e estudos diferenciados de vários especialistas que aplicam a metodologia daquele autor para o ensino dos alunos.
Outra incompreensão da proposta paulista é a de assumir que o uso da tecnologia se resume à transformação de conteúdos em aulas pré-produzidas, com o uso de aplicações de apresentação, como o PowerPoint. Em poucos dias, foram tantas críticas que o Governo do Estado de São Paulo foi obrigado a voltar atrás por medida judicial e pedir o reingresso no programa, mesmo fora do prazo de adesão. É importante, no entanto, entender o porquê dos argumentos que fizeram o governo paulista voltar atrás e aderir ao PNLD.
Política pública longeva
Em um país com colossais desafios na educação, em contextos de desigualdade e de pobreza, o PNLD é motivo de orgulho para as políticas públicas brasileiras. A começar pela sua longevidade: sobrevivendo aos governos de todas as orientações partidárias, o PNLD completou 86 anos de história. O formato foi aprimorado até o desenho atual, nas últimas décadas do século passado. Trata-se, portanto, de uma política de Estado à qual redes federais, estaduais e municipais aderem voluntariamente.
O programa tomou proporções do tamanho do Brasil. Apenas na última edição foram distribuídos 206,2 milhões de exemplares, com um investimento público de R$ 1,8 bilhão. Embora o valor pareça elevado, o ganho de escala e o refinamento do processo permitem que cada exemplar seja adquirido pelo governo a um valor de R$ 8,57. Com isso, 30,6 milhões de alunos foram beneficiados, da Educação Infantil ao Ensino Médio e da Educação de Jovens e Adultos (EJA).
A operação logística coordenada para os programas, em parceria com os Correios, leva os livros por estradas, rios, mares e caminhos na floresta e é uma referência internacionalmente premiada. A cada ano, são 80 mil toneladas de carga, 3,2 mil caminhões circulando e um planejamento detalhado, que leva a cada escola os títulos e a quantidade de livros de que necessitam, calculados conforme o Censo Escolar, registrado anualmente por cada escola.
Para além da operação, o que torna o PNLD um exemplo de política democrática é a qualidade dos livros que chegam aos alunos. “O livro didático é a única tecnologia que está à disposição de todos os estudantes brasileiros. Mesmo com a difusão da tecnologia digital para todos, o livro jamais deixará seu papel de apoio didático aos professores e à aprendizagem dos alunos”, defende a pesquisadora Maria Inês Fini, ex-presidente do Inep/MEC e atual presidente da Associação Nacional de Educação Básica Híbrida (Anebhi).
Qualidade do livro
O aspecto da democratização associado ao PNLD e ao livro didático não se deve apenas à extensão da cobertura, mas sim, especialmente, à qualidade. Os livros didáticos que chegam às escolas públicas têm o mesmo rigor dos que são consumidos na rede privada. A cada edital, há um processo de qualificação das editoras para verificar se atendem aos critérios necessários, além da análise dos livros por especialistas — que podem recusar obras, frequentemente pedir ajustes e aprovar (veja, no boxe, o processo de produção do livro).
Para a coordenadora geral do PNLD, Nadja Cezar, o coração do programa é justamente garantir para todos um livro de excelência, tanto em relação ao conteúdo como à qualidade estética. Formada em Letras, Nadja foi professora da rede pública e privada antes de chegar ao Ministério da Educação. Segundo ela, o programa passou por transformações ao longo da história, mas com uma evolução contínua com uma base técnica estável.
“É um dos melhores materiais do mundo em relação à qualidade”, assegura a coordenadora. O controle de produção envolve até mesmo o Instituto de Pesquisa Tecnológica (IPT), que certifica as especificações técnicas — que usa 100% do papel certificado para que venha apenas de madeira de reflorestamento. Ao todo, são dezesseis etapas cujo objetivo é garantir que o livro chegue intacto ao seu destino. Mas, para ela, o principal fator que garante a integridade do programa ao longo dos governos é o fato de o professor sempre ter sido o responsável pela escolha das obras, na ponta do sistema. “Esse é o aspecto central. Já no Decreto-lei n. 1.006, de 1938, está determinado que o professor e o diretor escolhem os livros”, lembra a coordenadora, que fez seu mestrado sobre o PNLD, apresentado na Universidade de Brasília (UnB).
Ao longo do tempo, o programa passou por muitos incrementos, como a adoção do censo escolar com base de dados para o programa, bem como a extensão contínua, que passou a atender da Educação Infantil ao Ensino Médio. Foram feitos editais específicos para a Educação de Jovens e Adultos (EJA) e a Educação do Campo — que devem ser reeditados —, bem como incluídas obras literárias.
Nadja salienta que os livros produzidos para os editais contemplam aspectos fundamentais, de preocupação com a regionalidade, o cuidado da inclusão, da igualdade, das minorias, entre outros. “Quando avaliamos um livro didático para a rede pública, ele não será aprovado se não incluir referências sobre cidades pequenas e se referir apenas a capitais”, exemplifica.
Evidentemente, sempre é possível melhorar. Um estudo realizado pelo Instituto Reúna, em 2019, ouvindo 2 mil professores, faz recomendações para a ampliação dos critérios de seleção pelos docentes. A pesquisa indicou como principal dificuldade no processo de escolha a falta de tempo para analisar os materiais. Há queixas dos professores quanto a atrasos de entrega ou de número inferior de exemplares. Mas, de forma geral, o estudo reitera a importância do programa e seu sucesso como política pública. Há percepção majoritária da qualidade dos livros pelos docentes, tanto no que se refere aos livros do aluno quanto aos guias dos professores.
“Ferramenta essencial para democratizar o acesso à educação no Brasil, o livro didático tem como grande objetivo permitir aos estudantes e professores uma experiência de qualidade no processo de ensino e aprendizagem”, diz Ângelo Xavier, presidente da Associação Brasileira de Livros e Conteúdos Educacionais (Abrelivros).
É um esforço que muitas vezes cria desafios hercúleos para as editoras. Instrumento considerado essencial para a implantação de políticas públicas, como foi no caso da implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o livro didático muitas vezes precisa correr para chegar a tempo, no vaivém dos marcos legais. No caso da BNCC, quando foram publicadas versões com mudanças — precisamente quatro, até a homologação final —, as novas obras foram sucessivamente reformuladas para chegar a tempo de as escolas poderem utilizá-las. Para que se tenha ideia do que isso representou, apenas na área de Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental — Anos Iniciais, 309 das 363 habilidades foram alteradas.
Produção do livro didático
Conheça o passo a passo e a complexidade da produção de recursos para que um livro didático chegue aos alunos com a máxima qualidade possível
1. elaboração do projeto editorial
Determinar as diretrizes gerais da coleção.
2. curadoria do conteúdo
Nessa fase, definem-se as frentes de conteúdo, garantindo o alinhamento com a BNCC e com o edital do PNLD
3. produção do conteúdo
Os autores e editores produzem os primeiros originais. Nessa fase, acontece a seleção de textos de terceiros (como artigos, fragmentos de textos literários, infográficos, iconografia).
4. direitos autorais e estrutura
Especialistas, professores e acadêmicos leem e fazem apontamentos nos originais enquanto acontece o licenciamento dos conteúdos utilizados. Nada é publicado sem a cessão de direitos autorais de cada um dos autores de textos, imagens, fotos etc.
5. projeto gráfico
Momento em que se elabora a forma como o conteúdo será apresentado para o estudante de maneira que garanta a legibilidade, a clareza e seja atrativo para os leitores. A linguagem visual é essencial.
6. edição do conteúdo
Na edição dos originais, acontece a preparação de textos, o que garante não apenas o apuro conceitual, mas a uniformidade, acessibilidade e clareza da linguagem. Para isso, as editoras contam com o apoio de especialistas e assessores externos.
7. conteúdos multimeios
Com o conteúdo editado, inicia-se a elaboração do Manual do Professor, para orientar o uso da obra, e a preparação dos conteúdos digitais que acompanham a obra. São utilizados diversos recursos, como podcasts, audiovisual, videoaulas, animações, jogos interativos e simuladores.
8. revisão e arquivo final
Todos os conteúdos são revisados minuciosamente para verificação das exigências e clareza. Por fim, caminha-se para a etapa da produção editorial, com a geração do arquivo para a impressão gráfica.
9. acessibilidade
As editoras também cumprem – seja nos objetos digitais, seja no arquivo impresso – a legislação de acessibilidade com a descrição de imagens e recursos, versões ampliadas das letras do material etc.
10. impressão e distribuição
Com todos os conteúdos definidos, revisados e finalizados, os livros estão prontos para a impressão e distribuição para as escolas de todo o país.
Livro digital
Não seria muito mais fácil se todos os conteúdos fossem digitais, facilitando a produção? Nada disso. A pandemia e as experiências de países que adotaram materiais didáticos digitais mostram que o caminho é bem mais complexo do que parece, seja do ponto de vista da produção, seja do ponto de vista das metodologias, seja do ponto de vista do leitor.
Em primeiro lugar, há um dado de realidade: o acesso. A pandemia escancarou a desigualdade do acesso a dispositivos digitais e, sobretudo, às redes de dados. Em grande parte, isso se deve à pobreza. “O acesso é a grande barreira no mundo, e ainda mais no Brasil, por sua grande desigualdade”, diz Lúcia Dellagnelo, consultora da Unesco.
Contudo, garantir acesso também não é suficiente. O uso de recursos digitais pressupõe competências e metodologias muito diversas do que são utilizadas hoje em sala de aula. “Estamos avançando e as lacunas de acesso podem ser fechadas, mas o gap das competências digitais, ou seja, de saber usar para gerar mais aprendizagem será a grande desigualdade que teremos de enfrentar”, diz Lúcia. “Sem metodologia, ensino a distância é uma enganação. Vivemos isso durante a pandemia”, acrescenta Claudio Miceli, especialista da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Não à toa, há uma intensa discussão global sobre o futuro das produções dirigidas às crianças e aos jovens, especialmente após o advento da inteligência artificial generativa, como ChatGPT. Segundo o estudo Papel e digital — Pesquisa sobre a eficácia dos materiais didáticos, editado no Brasil pela Abrelivros, o futuro é híbrido. “Como vimos nas pesquisas, a constituição do leitor desde o nascimento requer um trabalho cognitivo e socioemocional sólido, que pode ser auxiliado pela tecnologia — sem, entretanto, substituir inconsequentemente o material impresso por ela. É fundamental que as nossas crianças desenvolvam competências digitais, mas também é importante que aprendam a ler no papel para desenvolverem habilidades de leitura profunda”, escreve Maria Inês Fini no posfácio da publicação.
No Brasil, a indústria editorial vem se preparando para um salto digital, enriquecendo o conteúdo do livro físico com plataformas e objetos virtuais de aprendizagem. Mas é apenas o início da jornada. Por isso, é hora de um amplo diálogo envolvendo governos, editoras, universidades, autores e outros especialistas. Afinal, como serão desenvolvidas as competências digitais previstas na própria BNCC? Quais são as metodologias que podem ser utilizadas? Qual é o lugar do conteúdo editorial, físico ou digital? E a formação do professor? Há muitas questões a serem respondidas.
Para Ângelo Xavier, da Abrelivros, é certo que o livro não vai desaparecer, mas vai, de alguma forma, ser reinventado. “O impresso e o digital vão coexistir, e é importante saber qual é o melhor uso de um e de outro recurso. Precisamos de força política para dialogar com os responsáveis pelos editais em busca de mais modernidade em sua estruturação, respeitando os novos paradigmas educacionais que priorizam as aprendizagens, a interatividade e a construção do conhecimento. Os avanços tecnológicos são inevitáveis e os sistemas escolarizados terão que se adaptar a eles sem, contudo, desconsiderar nenhum dos componentes estruturantes do desenvolvimento de uma educação interativa, híbrida e flexível que atenda às expectativas e aos projetos de vida de cada estudante”, finaliza Maria Inês Fini.