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ESPECIAL BULLYING 02 | Desconstruindo a intolerância

Conheça o relato de educadores que decidiram combater o bullying, empoderando os alunos e tornando-os protagonistas dessa luta.

por Lara Silbiger

relato de Marília Navegante
Professora de arte
EE Maria do Carmo Viana dos Anjos Macapá (AP)

“há quatro anos, sou professora de Arte das turmas de 9o ano à 2a série do Ensino Médio na Escola Estadual Maria do Carmo Viana dos Anjos, em Macapá (AP). As diversas formas de intolerância entre os alunos – principalmente pela cor da pele, sexualidade e gênero – chamaram minha atenção desde o início. Eram tão frequentes que chegavam a parecer naturais. Mas não são e ofendem!

Os principais alvos eram os adolescentes que se destacavam nos estudos ou aqueles mais calados, tímidos e que pouco interagiam com os outros. Dado ao isolamento social desses estudantes e ao tabu que existia para abordar certos temas na escola, nem sempre era fácil diagnosticar o bullying. Por outro lado, havia indícios de que o corpo desses meninos e meninas gritava por socorro, com casos de automutilação e baixo rendimento em todas as disciplinas.

Meu ponto de partida para intervir foi um período de observação. Durante um ano, passei os intervalos de aula conversando com os alunos e participando de suas rodinhas. Ouvi e anotei cada xingamento e piadinha em torno de estereótipos – gorda, sapatão, bicha, preto, cabelo ruim, macumbeiro etc. – até que um dia, em classe, consegui abordar o tema do preconceito com uma das turmas.

Naquela classe especificamente, havia um aluno que vivia dando tapas em um colega que ele tinha apelidado de “viadinho”. Foi só a partir da fala dos demais que o agressor entendeu que o sorriso “sem-jeito” da vítima não era um sinal de consentimento à brincadeira ou, na prática, à humilhação constante.

Ao me dar conta de que o princípio da intolerância estava no reconhecimento das diferenças, sendo a própria identidade o ponto de referência para um se sentir superior ao outro, entendi a urgência de traba- lhar com os alunos o corpo deles. Um corpo, aliás, tão em evidência na adolescência. Foi assim que, em 2015, lancei o projeto “Experimentações em Arte: a performance como meio de autoinvestigação das identidades para além do corpo”*.

Tudo começou com uma performance que eu mesma fiz no refeitório da escola. Em “Apedrejamento”, cada bolinha de papel que o público atirava em mim continha um dos xingamentos coletados previamente. Foi uma provocação e, ao mesmo tempo, um convite para que as turmas também utilizassem essa linguagem das artes visuais para se expressar de forma autoral.

A princípio, minhas aulas não tocavam diretamente nas feridas dos alunos. Apenas traziam referências de artistas como Mariana Abramovic e Hélio Oiticica e discutiam a temática de algumas de suas performances. Mas a conversa sempre se desenrolava e chegávamos às vivências pessoais de bullying e intolerância.

Uma das experiências mais emblemáticas do projeto foi a da aluna que discutiu os padrões impostos à beleza feminina em uma performance de desconstrução. Ela tirava o sapato de salto, mudava o penteado e trocava várias vezes de roupa até achar o visual que lhe fizesse se sentir bem. A proposta problematizava a sua própria dificuldade de se relacionar com um corpo que havia sido taxado de gordo e feio durante anos. Para ela, a atividade acabou sendo uma espécie de libertação dos preconceitos ge- rados em casa e reafirmados na escola, inclusive por uma das melhores amigas. Como era de se esperar, nem todos receberam com bons olhos o trabalho. Mas foi unânime a percepção da autoaceitação e do maior engajamento da estudante nas aulas.

Lidar com as diferenças continua sendo um desafio, até mesmo para os professores. Tem gente que não se permite sensibilizar, principalmente quando se trata de gênero, sexualidade e cor. É preciso que mais educadores abracem a causa e se empenhem no enfrentamento, que demanda conhecimento específico e formação continuada. Até aqui, posso dizer que a performance tem contribuído com o seu potencial de promover encontros e distanciamentos, construções e desconstruções. Mas acabar com o bullying é uma ilusão.”

* O projeto foi vencedor do XVIII Prêmio Arte na Escola Cidadã, na categoria Ensino Médio.


Entre amigos

relato de Ana Cláudia Correa

Orientadora educacional Stance Dual School
São Paulo (SP)

“sou orientadora educacional do Fundamental 2 na Stance Dual School, em São Paulo (SP), onde desenvolvemos um projeto de convivência focado na prevenção ao bullying. Tudo começou em 2014, quando dedicamos o ano todo à formação dos professores, com base nos estudos de Psicologia Moral. Sob essa abordagem, o bullying é visto como um problema moral que impe- de os indivíduos de se comover com a dor alheia e que demanda prevenção, sensibilização e conscientização de toda a comunidade escolar.

No ano seguinte, foi a vez de envolver os alunos, por meio das aulas de Orientação Educacional. Com o 6o ano, por exemplo, focamos a diferença entre bullying e demais conflitos; com o 7o ano, a empatia; e com o 8o, a coragem e a resiliência. Esse trabalho foi o pontapé para avançarmos na formação de valores e na implantação de uma “equipe de ajuda” no Fundamental 2. Essa solução não foi inventada aqui na escola, mas idealizada pelo professor espanhol José Maria Aviles Martinez e encabeçada no Brasil pelo Gepem (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral da Unicamp/ Unesp). Ela parte da premissa de que as vítimas de bullying tendem a recorrer aos próprios pares quando se sentem intimidadas.

Antes de estruturar nossa “equipe de ajuda”, cada classe passou por uma sequência de atividades para mapear as características ideais de quem os representaria na equipe. Perguntas como “para quem eu contaria um segredo: para alguém que não dá risada de mim ou para alguém que não acharia meu problema uma bobagem?” ou “o que torna alguém confiável?” deveriam ser respondidas individualmente de forma que a escolha fosse a mais consciente possível.

Os selecionados passaram por uma capacitação em estratégias de mediação, calcada em valores como respeito, justiça e tolerância. Aprenderam também técnicas de escuta ativa e como se distanciar dos sentimentos que afloram durante os conflitos.

Uma vez por mês, a “equipe de ajuda” se reúne com os gestores da escola. É o momento em que trocam experiências, compartilham as dificuldades e recorrem à equipe de Orientação Educacional para achar as melhores estratégias de intervenção para um conflito – que vai da briga entre colegas a situações de isolamento social e adaptação de novos alunos. Em paralelo, participam de encontros individuais de acompanhamento sempre que enfrentam algum desafio.

Toda essa rede de apoio que criamos entre os pares é mais uma opção para fortalecer a criança que se encontra em sofrimento. Isso não quer dizer, no entanto, que a Orientação Educacional não tenha controle sobre os casos de violência escolar. Pelo contrário. Estamos atentos e atuamos não só junto à criança em questão, mas ao agressor, aos espectadores, às famílias dos envolvidos e aos professores.

Com cada um, intervimos em momentos diferentes. Ouvimos todos durante o processo, traçamos planos de atuação e acompanhamos a execução do que foi pactuado. Essa visão holística é fundamental para reverter o bullying e fazer com que o agressor se sensibilize com o sofrimento da vítima. Aliás, é por essa sensibilização que tanto lutamos quando falamos de educação dos sentimentos na formação moral.

Como resultado, temos colhido uma convivência mais colaborativa na escola, com alto grau de verbalização dos problemas e respeito mútuo. Hoje, sem medo de errar, afirmo que erradicamos o bullying na Stance Dual School. Temos, sim, algumas crianças com problemas mais acentuadas de convivência e socialização, mas aqui elas não vítimas de humilhações e agressões recorrentes devido às suas fragilidades.”

Para saber mais

  • Site Gepem (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral da Unicamp e Unesp).
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