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Escola: espaço de experiências e elaboração de perdas na pandemia

No retorno ao presencial, gestores, professores e famílias repensam o papel da escola para além das vivências e buscam novas formas de torná-las significativas para a formação dos estudantes. 

ilustração Ricardo Davino

texto Lara Silbiger  

a volta às aulas presenciais vem, aos poucos, trazendo contornos de normalidade à escola neste terceiro ano de pandemia. Pais formam fila para deixar os filhos na porta do colégio, crianças circulam pelos diferentes ambientes e professores interagem entre si e com os alunos, sem as telas para mediar o ensino e a aprendizagem. Quem está de fora pode até pensar que tudo voltou ao normal. Um olhar mais atento, porém, revela as perdas inerentes ao período em que a comunidade escolar se viu privada do convívio presencial, o que impõe o desafio de proporcionar experiências que deem conta dos traumas, da reintegração e da socialização. 

O primeiro passo é entender o conceito de experiência. “De vasta tradição na Filosofia, em especial, no Idealismo Alemão, a experiência remete à viagem, à andança para fora de si”, afirma Christian Dunker, psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP. Mas a jornada não para por aí. “Implica também o retorno. É a história que a gente conta daquilo que aconteceu. É como voltar para casa, depois de um passeio, rever as fotos e narrar os acontecimentos. Às vezes, o que parecia tão intenso acaba ficando empobrecido, e o trivial, ganhando intensidade no relato”, diz ele. 

Por isso, a experiência não deve ser entendida apenas como um conjunto de acontecimentos. Ela é também repleta de contradições e contratempos. Por exemplo, a prova em que o estudante foi mal, a pessoa que ele admirou e que não correspondeu ao seu sentimento e outras tantas frustrações e superações. “É desse emaranhado que se extrai outro conceito, o de formação, que só existe se houver a experiência de conflitos”, explica Christian. 

Não por acaso, a escola deve ser — por excelência — uma promotora e aceleradora de momentos formativos. “É papel dela ser um ambiente protegido, um palco de encontros e compartilhamentos de experiências, permeados por diferenças, diversidade, negociação e pelo reacender do desejo de viver junto. É nesse espaço que se dá o aprendizado”, afirma Ana Cristina Dunker, diretora-geral e mantenedora da Escola Carandá Vivavida, situada em São Paulo (SP).

A realidade, entretanto, está longe do ideal. “Ainda se pensa na escola como colecionadora de práticas e aprendizagens e repetidora de valores, relações de poder e visões de mundo”, lamenta Christian. Como resultado, colhem-se apatia, tédio, dificuldade de envolvimento com a aprendizagem, angústia, solidão e fragmentação da experiência, com alunos achando que nunca usarão determinado saber ao longo da vida. 

É desse emaranhado que se extrai outro conceito, o de formação, que só existe se houver a experiência de conflitos.”

Christian Dunker

Para promover experiência

Mais que pensar no quê, a orientação é pensar no porquê. “A escola precisa respeitar as singularidades para que o aluno se sinta incluído na atividade. Daí a importância de lhe perguntar o que gostaria de fazer e viver no ambiente escolar”, destaca Eny Muniz, diretora acadêmica da Santillana Educação. 

Confira, a seguir, algumas dicas de experiências para aplicar no retorno presencial: 

  • Escuta ativa Aliada no processo de retomada, envolve práticas de retórica e conversação, além de um espaço dedicado, seguro e reservado para isso. 
  • Aprendizado para a cidadania  Fundamental para que a comunidade escolar reconheça as dificuldades da vida em sociedade. A pandemia evidenciou a importância de cuidar do meio ambiente e reafirmar o lugar da ciência, a fim de garantir a nossa existência. “Precisamos fazer novos acordos e repensar a convivência em grupo na escola, na cidade, no país e no planeta”, afirma Ana Cristina Dunker, diretora-geral e mantenedora da Escola Carandá Vivavida. 
  • Metodologias ativas Ensino por pares, rotação por estações, saídas a campo, entre outras que permitam ao aluno experimentar novas sensações e atividades, bem como ocupar seu lugar de fala. Além disso, a retomada das atividades em grupo, com a escola proporcionando mais oportunidades para os alunos passarem tempo no ambiente escolar, fazer o trabalho juntos e se reapropiarem do espaço.  
  • Cultura maker (mão na massa) Ativa, na prática, verbos ligados às habilidades do pensamento — imaginar, conectar, errar e construir/criar —, em busca de novas soluções durante a experiência. “Isso não significa que precisamos ignorar os processos de aprendizagem passiva, como leitura e aula expositiva. O desafio é remodelar as aulas para se chegar ao momento de criação — seja de objetivo, seja de uma linha de pensamento ou objetos”, explica Eny. Segundo Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da USP, evitar que a escola reduza seus processos a ensino e aprendizagem passa necessariamente por fugir da imagem de banco distribuidor de saberes e assumir-se como escola aprendente. “Para isso, vale aumentar a proximidade da instituição com centros de pesquisa e universidades e garantir tempo hábil para que os professores desenvolvam sua pesquisa e a própria experiência com o saber”, diz ele.

Participação das famílias na experiência

Resgatar a escola como espaço de experiência demanda também um novo olhar em relação às famílias e seu anseio por participar da educação dos filhos. É preciso questionar como anda a relação com os pais ou responsáveis, sobretudo nos quesitos vínculo de confiança e interação com as práticas escolares. Afinal, são atores de suma importância para o conjunto de experiências da criança. 

Como sugestão prática, Christian Dunker indica a implantação de escolas para pais, a fim de inseri-los na comunidade escolar e na educação formal dos filhos. “Vale, por exemplo, montar grupos de estudo, discutir os conceitos de comunidade e de processo ético na tomada de decisões na escola, oferecer palestras e articular a criação e a manutenção de uma associação de pais e mestres.” 

Outro aspecto que o professor do Instituto de Psicologia da USP destaca é a urgência de dar visibilidade ao Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola, em uma mediação constante com as famílias. É essencial colocar na equação que estamos diante de um momento de luto, mas também de uma oportunidade de rediscutir a escola, elaborar o trauma e buscar, em comunidade, caminhos para fazer isso. 

“Depois de mais de dois anos de pandemia, o que espero da escola do meu filho — hoje com seis anos — é uma experiência de socialização. Com as outras crianças, com os professores, com os funcionários e — por que não — também com outros pais”, diz William Katayama, pai do João, que estuda na escola Alecrim Dourado em São Paulo (SP). O responsável conta que, no seu entorno, já começam a surgir famílias mobilizadas para promover encontros em praças públicas com o intuito de interagir, discutir pontos sobre cuidados dos filhos e produzir sugestões para a escola. 

Outro aspecto que o pai enfatiza é a importância de a experiência na escola ser permeada de afetividade e humanismo. “Não pode faltar respeito ao tempo da criança, dos pais e do outro – do porteiro que nos recebe na frente da escola à professora que espera o aluno na porta da sala. O conteúdo é apenas um dos elementos desse processo, cujo objetivo deve ser atribuir sentido à formação, promover vínculos e gerar momentos de felicidade.”

Para que isso se concretize no dia a dia do filho, William optou por dar tempo ao tempo e prezar pelo que realmente importa. “Não quero nada a toque de caixa. Prefiro paciência, calma e zelo nesta volta ao presencial ainda em plena pandemia. Quero que a escola privilegie o cuidado, designando alguém para pensar nisso, focar nas crianças, em como elas estão chegando, como reconstruir o que ficou para trás e como se comunicar com as famílias, considerando as especificidades afetivas e emocionais de cada uma.” 

Ponto de virada 

Para virar esse jogo, a escola precisa cuidar da experiência da sua comunidade — estudantes, professores, famílias, colaboradores, vizinhos, ex-alunos, entre outros —, de forma que ela se torne formativa para o indivíduo e para a relação com o outro. 

Isso ganha ainda mais força no retorno presencial. “Mesmo que a escola tenha mantido suas atividades no ensino a distância, é consenso que houve traumas e perdas de experiência”, comenta Christian. A boa notícia, segundo ele, é que nada disso é irrecuperável. Os traumas têm valor formativo quando se transformam em experiência, algo passível de ser transformado em narrativas significativas e transmitido no encontro com o outro. 

Para isso, o reconhecimento da perda em si é fundamental. “Não dá para simplesmente passar a borracha na pandemia. O padrão de estrutura de pensamento e o comportamento dos estudantes mudaram completamente. É preciso olhar para o grupo com carinho e maior profundidade e verificar o impacto desse período sobre ele”, afirma Eny Muniz, diretora acadêmica da Santillana Educação. 

Segundo Eny, a escola deve “mapear o conjunto de experiências que os estudantes não viveram e resgatá-las para que se construam novas memórias afetivas”. Como exemplo, a diretora acadêmica traz a possibilidade de celebrar o encerramento do ciclo dos Anos Finais do Fundamental com os estudantes que não tiveram a formatura em 2020. “Quando você perde algo lá atrás não significa que precisa perder também aqui no presente. Sonhos foram adiados, mas não estamos diante de vidas que passaram em branco”, completa.   

O objetivo não é propor uma volta ao passado, mas reconhecer o que se perdeu e promover a regeneração. “Tal como uma ferida, a recomposição se dá de dentro para fora até se transformar em pele de novo. Antes, porém, é preciso aceitar que ela está lá”, ilustra Ana Cristina, diretora-geral da Carandá Vivavida.

Espaço de (re)encontros 

Para Vitor Miranda, professor de Ciências dos Anos Finais do Ensino Fundamental no Colégio Stockler, na capital paulista, a pandemia escancarou a escola como espaço de convívio não só entre educadores e educandos, mas também com as famílias, diferentes culturas e formas de ser. “Todo o processo nos fez repensar a importância de compreender o outro e nos posicionar perante ele, considerando onde começa o espaço de um e termina o do outro.”  

Essa era uma reflexão que ele já provocava em sala de aula havia quatro anos, desde que iniciou o projeto Ágora com as turmas de 6o a 8o ano. No início de cada ciclo trimestral, a turma se reúne para levantar problemas que perpassam a convivência e o aprendizado, pensar em como solucioná-los e definir entre eles eventuais consequências para quem não cumprir os combinados. “Às vezes, a Ágora vira uma lavagem de roupa suja
— com temas que podem fugir à minha alçada. Como mediador, fomento a reflexão e a discussão sobre atitudes que os ajudem a melhorar a si próprios e a comunidade”, explica o professor.

Éramos pessoas diferentes, buscando o melhor para si. Fomos aprendendo a ceder, dos dois lados, para chegar a um resultado bom para todos.

Sophie Curros, 9o ano

Na prática, é um espaço de escuta, de fala e de posicionamentos, em uma experiência na qual o aluno faz parte da construção de caminhos. “Em vez de ver o problema e não fazer nada ou ficar reclamando, a turma entende que as pessoas podem sentar e conversar para resolvê-los”, conta Vitor. O professor ainda destaca a gestão em espiral do projeto. “A cada vez que a Ágora é aplicada, menos temas precisam ser atacados de novo, pois as questões já vêm se resolvendo — de forma intencional — ao longo do tempo.”

No retorno às aulas presenciais, o professor de Ciências conta que a Ágora passou por novidades. A autogestão ganhou força, com os alunos podendo se candidatar a guardiões dos combinados e votar uns nos outros. O envolvimento dos estudantes nesse processo surpreendeu. “Em algumas turmas, é nítida a ansiedade de participar, de se envolver em discussões coletivas. Em outras, a necessidade de ressocializar, olhar nos olhos e não apenas ver nucas enfileiradas na sala de aula. Em comum, saltam aos olhos o medo do adolescente de ter sido esquecido ou não mais ser aceito, bem como a necessidade de recuperar o tempo perdido no distanciamento social e (re)conhecer os colegas.”    

Tudo isso fortaleceu o que Vitor já valorizava: a experiência do encontro, das relações. “Já não me frustro com um aluno que está desatento à aula, querendo conversar. Passei a entender que nem tudo precisa girar ao redor de mim e que esse estudante pode ter outra demanda para além da aula naquele momento. Cabe a mim garantir a oportunidade de ele recuperar isso depois”, comenta. 

Para embasar sua reflexão sobre a experiência do aprendizado mediada pela interação, com pitadas de sofrimento, empatia e orientação, o professor cita o psicólogo Lev Vygotsky, pai do sociointeracionismo. E o que isso tem a ver com Ciências? Tudo. “Sem conversar, articular possibilidades, ouvir a crítica e recebê-la de forma construtiva não se faz ciência”, garante Vitor. 

Para Sophie Curros, que foi aluna do Vitor nos últimos três anos, um dos grandes aprendizados das atividades em grupo nas aulas de Ciências foi a tolerância. “O processo em si, por vezes, foi difícil: éramos pessoas diferentes, buscando o que entendiam ser melhor para si. Com o tempo, fomos aprendendo a ceder um pouco, dos dois lados, para chegar a um resultado bom para todos”, explica a estudante, hoje no 9º ano. 

De acordo a jovem, mais significativo que o benefício de trabalhar com os colegas foi conviver com eles, entender como pensam e se abrir para outros pontos de vista. “Foi uma experiência que transcendeu o conteúdo e que vou levar para a vida”, assegura Sophie. Como prova, ela conta sobre o melhor amigo, que herdou de seu primeiro grupo nas aulas de Ciências no 6º ano e cujos laços se fortaleceram na pandemia. “Éramos muito diferentes, e cheguei a pedir ao professor que tirasse ele do grupo. Isso não foi feito, claro, o que me deu a oportunidade de aprender a ler seu jeito de ser e conhecer diferentes formas e linguagens que as pessoas usam para se comunicar e se relacionar.” 

Espaço de (con)vivência

Os ambientes em que as relações acontecem e os atores que delas participam também devem ser levados em conta na construção da experiência. “Desde a calçada e a portaria da escola até os corredores e a fila da cantina, tudo e todos perpassam a experiência da criança e contribuem para determinado padrão comportamental”, revela Eny Muniz, diretora acadêmica da Santillana Educação. 

O risco de não avaliar se esse processo está sendo significativo para o aluno é impor um padrão de comportamento baseado apenas no olhar da escola, deixando de lado as emoções que movem a experiência. Tomar decisões de acordo com a experiência de cada indivíduo da comunidade escolar é levar em conta aspectos socioemocionais (suas dores, preferências e expectativas), aspectos cognitivos e espaços de construção do saber. 

Essa é uma forma de a escola conduzir uma autorreflexão sobre suas práticas. “A aluna que não quis abrir a câmera no ensino a distância já o fazia antes ou ela estava fechada para qualquer tipo de interação mesmo antes da pandemia e você sequer percebeu? Por que os pais que antes estavam satisfeitos agora reclamam: será desconfiança porque passaram a acompanhar as aulas em casa ou sempre se sentiram inseguros?”, questiona Eny. 

Em busca de respostas, a recomendação para a escola é aplicar pesquisas de clima junto a alunos, funcionários, professores e pais. “O conhecimento empírico não exime os gestores de contemplar esses múltiplos olhares para questionar seu próprio comportamento, além de práticas e padrões que deseja oferecer.”


Para saber mais

  • BIESTA, G. Para além da aprendizagem — Educação democrática para um futuro humano. Tradução de: Rosaura Eichenberg. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
  • BONDÍA, J. L. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rio de Janeiro, ANPEd. Revista Brasileira de Educação, n. 19, jan.-abr. 2002, p. 20-28. Disponível em mod.lk/con22_1. Acesso em: 20 fev. 2022. 
  • KASTRUP, V. A invenção de si e do mundo — Uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

 

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