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Elos: a Comunicação Não Violenta na educação

A abordagem da Comunicação Não Violenta pode colaborar no desenvolvimento de habilidades fundamentais, como a cooperação, a empatia e a criticidade. Veja como!

Texto: Sandra Caselato e Yuri Haasz

O psicólogo estadunidense Marshall Rosenberg dedicou sua vida a investigar as raízes da violência e a buscar formas de mitigá-la. Seu principal objetivo foi contribuir para a transformação de sistemas baseados na dominação em sistemas que promovam a cooperação e a parceria, visando à construção de um mundo mais justo e pacífico. 

Seu legado resultou na criação da Comunicação Não Violenta (CNV), uma abordagem versátil utilizada em mais de 60 países para mediação de conflitos em relações familiares e profissionais, e em áreas como educação, psicologia, gestão e governança organizacional, entre outras. 

A prática da CNV, com sua flexibilidade e amplitude, desenvolve habilidades que podem ser aplicadas em qualquer contexto em que a comunicação interpessoal assume um papel crucial na busca por soluções construtivas e na promoção da compreensão mútua. 

Na esfera da educação, a CNV oferece uma perspectiva revolucionária que propõe uma transformação profunda nas relações, bem como na forma como lidamos com conflitos. É um convite que demanda coragem, pois vem questionar não apenas a forma como nos comunicamos com os outros, mas nossa maneira de ser conosco mesmos e nossa relação com o mundo que nos rodeia. Desafia nossas crenças e cultura, que enraízam as causas da violência em nossa sociedade. 

Segundo Rosenberg, tanto a violência entre indivíduos quanto a violência social surgem de um padrão específico de pensamento que promove a ideia de controle e punição. Esse modo de pensar se fundamenta em uma visão de mundo que postula a necessidade de vigiar e reprimir as pessoas por meio de recompensas e castigos, a fim de assegurar uma convivência harmoniosa em sociedade. É uma visão de ser humano que pressupõe que somos, por natureza, egoístas e agressivos, preocupados apenas com a própria autopreservação. Portanto, faz parte deste paradigma a ideia de que certos indivíduos ou grupos, que são de alguma forma superiores, merecem privilégios e poder de controle sobre os outros, para que o caos não se instale. 

Essa mentalidade permeia nossa subjetividade e está bastante presente em todos os aspectos das sociedades ocidentais, desde a família até as instituições culturais. Adultos frequentemente assumem uma posição superior em relação às crianças, fazendo imposições, castigando e premiando. Isso se reflete também em escolas, empresas e níveis de autoridade nacional e internacional, em que líderes controlam subordinados, julgam e decidem sobre recompensas e sanções. 

Culturalmente, somos treinados para adotar esse modo de pensar baseado em julgamentos que categorizam pessoas como certas ou erradas, boas ou más. Isso justifica e legitima a violência: os “maus” merecem receber punição, enquanto os “bons” são recompensados. 

Essa mesma lógica está por trás da concepção de justiça prevalente em nossa cultura, que é intrinsecamente retributiva, não apenas no sistema judiciário, mas também nas relações em geral. O resultado é uma cultura baseada no medo, na vergonha e na culpa. Acompanhando essa visão de mundo e maneira de entender o ser humano, a linguagem que utilizamos — cheia de julgamento, culpabilização (ou merecimento), imposição e negação de responsabilidade – nos desconecta de nós mesmos e também uns dos outros. 

Em muitos modelos convencionais de educação, esse paradigma se manifesta no sistema meritocrático de notas, pontuações e provas, resultando em um modelo educacional passivo, em que o professor detém o conhecimento e os estudantes desempenham um papel secundário, centrado na memorização e na repetição, com poucas oportunidades de questionar, explorar ou aplicar o conhecimento na prática. Ademais, a competitividade, a comparação e o individualismo acabam sendo elementos decorrentes dessa mentalidade. 

A obediência é valorizada e prevalece a crença de que o saber se encontra fora do indivíduo. As crianças são socializadas de maneira que deixem de lado a conexão consigo mesmas, que reneguem as informações valiosas trazidas por seu próprio corpo, seus sentimentos e suas necessidades, essenciais para sua saúde física e psicológica. A educação tradicional transforma muitos de nós em “analfabetos emocionais” ao focar na acumulação de conhecimento em detrimento do desenvolvimento emocional. 

Nesse tipo de educação, somos condicionados a agir com base em motivações externas, buscando recompensas e aprovação social ou evitando punições e críticas, o que nos afasta de nossos sentimentos e nos leva a acreditar que o conhecimento está nas mãos das figuras de autoridade, que detêm o poder. Esse fenômeno resulta na autodúvida e na obediência, e na formação de pessoas submissas, predispostas a serem manipuladas ou dominadas facilmente. 

A que a CNV nos convida? 

A Comunicação Não Violenta emerge como uma alternativa viável e transformadora, fundamentada em um paradigma que confia na natureza compassiva do ser humano e em sua inclinação inata para a conexão e a cooperação. Dentro desse modelo de pensamento, somos levados a perceber que existe outra maneira de nos relacionarmos com todo o ecossistema, incluindo nós mesmos. 

A chave para essa transformação reside em aprendermos a identificar, nomear e nos conectar com os sentimentos e as necessidades que fluem em nós mesmos e em todas as pessoas. 

A CNV se alinha a uma abordagem mais holística da educação, que leva em consideração o pleno potencial humano, indo além do aspecto intelectual e abordando também a inteligência emocional e corporal. Ela surge como um guia para aprimorar nossa habilidade inata de conexão profunda com a vida, dentro de nós mesmos, com as outras pessoas e com o planeta como um todo.  

Rosenberg utilizava a palavra “vida” para se referir àquilo que se manifesta naturalmente como motivação mais densa e universal nos seres humanos e que se torna acessível na linguagem quando utilizamos um vocabulário de sentimentos e necessidades. Esse vocabulário nos ajuda a entender e expressar essa parte intangível da experiência humana, gerando um fluxo de empatia entre as pessoas e uma compreensão mais intensa sobre nossa experiência comum. 

Quando os indivíduos conseguem se conectar uns com os outros de maneira mais profunda e autêntica são capazes de enxergar suas semelhanças e os pontos de convergência, transcendendo as diferenças e divergências, e tendem a almejar o bem-estar mútuo e a criar soluções que atendam às necessidades de todos. 

Na educação, esse paradigma enfatiza o autoconhecimento, o desenvolvimento da inteligência emocional e relacional e da capacidade de tomada de decisões conscientes. Ao favorecer o desenvolvimento de habilidades de empatia e expressão autêntica, a CNV nos capacita a lidar cada vez melhor com conflitos de maneira construtiva e produtiva. 

Essa pedagogia se manifesta em uma abordagem educacional mais ativa, na qual os estudantes ocupam posição central no processo de aprendizado, tornando-se protagonistas engajados, incentivados a explorar, questionar, colaborar e aplicar o conhecimento no mundo real. Os professores desempenham o papel de facilitadores e orientadores, fornecendo recursos, direcionamento e apoio conforme as turmas assumem uma participação cada vez mais ativa na busca pelo conhecimento. Esse processo propicia mais compreensão e criticidade, preparando pessoas para gerir os desafios complexos e se adaptar a um mundo em constante transformação. Trata-se de um convite a uma educação que favorece a conexão e a presença do indivíduo consigo mesmo em vez da ausência, que valoriza o processo em vez do objetivo, e o momento presente em vez do programa predefinido.  

À medida que reconhecemos e expressamos nossos sentimentos de alegria, celebração e amor de forma mais profunda, aumentamos nossa capacidade de expressar raiva, mágoa e aversões, assim como pensamentos e sentimentos desenfreados, que podem se transformar em impulsos criativos. Isso nos leva a uma conexão mais profunda com a vida e a uma transição de desajustamento psicológico para relacionamentos mais saudáveis com os outros e com a realidade. Passamos a tomar decisões e a agir a partir de motivações intrínsecas, baseadas em interesses e valores internos, que trazem satisfação pessoal e sentido para a vida e tendem a ser mais sustentáveis e gratificantes do que as motivações extrínsecas. 

A conexão interior e o foco em sentimentos e necessidades geram espaços educativos psicologicamente seguros, fundamentados numa cultura de empatia e cooperação para se cuidar conjuntamente das necessidades de todos, sem deixar ninguém para trás.  

Em ambientes assim os sistemas nervosos das pessoas recebem a informação de que não há perigo para a sobrevivência e é criada uma cultura de regulação e corregulação do sistema nervoso que permite otimizar as capacidades de engajamento social, criatividade e raciocínio lógico-matemático. 

Infelizmente, esta não é a experiência da maioria dos ambientes regidos pela matriz binária de premiação ou sanção, em que, em algum nível, os sistemas nervosos estão sempre em alerta de perigo, constantemente recebendo a mensagem de que sua sobrevivência está ameaçada. O estresse, o medo, a culpa e a vergonha são sentimentos prevalentes, e a criatividade, o engajamento social e o raciocínio ficam comprometidos. Essa realidade não se limita apenas aos estudantes, mas também aos professores, tendo que cumprir expectativas internas e externas que reproduzem e mantêm muito desse sofrimento.  

O convite da CNV é que todas as pessoas possam ser vistas, escutadas e respeitadas em seus sentimentos e suas necessidades. Assim, o olhar empático e humanizador tem a função de libertar a todos de sua experiência desumanizada. É importante ressaltar que a CNV e as práticas de educação mais engajadas e centradas na pessoa não defendem a permissividade nem o caos. Limites e estrutura trazem segurança, e os educadores desempenham um papel fundamental na orientação e no suporte aos alunos durante sua jornada de aprendizado ativo. 

A CNV nos convida a repensar a maneira como nos relacionamos com os outros e com o mundo, e a nos lembrar que a transformação pessoal e social começa com a forma como nos conectamos e nos comunicamos conosco mesmos e uns com os outros. A abordagem oferece as ferramentas e a perspectiva para criar um mundo mais harmonioso e compassivo, que torne a empatia e a compreensão alicerces de nossas interações cotidianas. 

Com ênfase na conexão e na compreensão mútua, a CNV representa um sopro de ar fresco em um mundo frequentemente marcado por culpa, medo e punições. Ao experimentar essa forma alternativa de perceber e viver a vida, que desafia o status quo, podemos contribuir para a construção de um mundo em que as relações humanas floresçam em um espírito de cooperação e parceria. 

As implicações dessa abordagem transcendem os limites da comunicação e se estendem ao papel fundamental da educação na formação de cidadãos capazes de pensamento independente e crítico, bem como na capacidade de tomar decisões que promovam o bem-estar tanto individual quanto coletivo. Ao capacitar pessoas a estarem mais presentes consigo mesmas e a se relacionarem mais autenticamente, estamos criando as condições para que possam escolher o que melhor atenda às suas necessidades, tanto individuais quanto coletivas, assumindo responsabilidade por suas vidas com confiança em suas próprias experiências e em sua capacidade de discernimento. 

Marshall Rosenberg nos deixou um legado valioso, uma visão que nos incentiva a transcender as barreiras da violência e da dominação, e nos convoca a abraçar a empatia, a compreensão e a conexão como forças motrizes de uma sociedade mais justa e pacífica. À medida que incorporamos a CNV em nossas vidas e na educação de crianças e adolescentes, estamos construindo esse ideal, que honra nossa humanidade e a capacidade de vivermos em harmonia uns com os outros e com o mundo que compartilhamos.  

Sandra Caselato e Yuri Haasz 

São parceiros de vida e trabalho há 24 anos, oferecem treinamentos em Comunicação Não Violenta no Brasil e internacionalmente. Yuri é o primeiro instrutor brasileiro certificado pelo Centro de Comunicação Não Violenta (CNVC) e Sandra é psicóloga. Atuam em empresas, universidades, governos, ONGs, movimentos sociais e nos Territórios Palestinos Ocupados (zona de conflito armado), trazendo esta diversa experiência para seu trabalho. 

Para saber mais

  • ROSENBERG, M. B. Comunicação não violenta. São Paulo: Ágora, 2021. 
  • Sinergia comunicativa. Disponível em: www.sinergiacomunicativa.com.br. Acesso em: 30 set. 2023. 
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