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Diálogos particulares com a BNCC

Escolas privadas interpretam a Base à luz dos contextos em que estão inseridas e criam estratégias para implementá-la a partir de seus respectivos projetos educativos.

Texto: Lara Silbiger

No exato momento em que a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) foi aprovada, em 17 de dezembro do ano passado, foi dada também a largada para que cada rede e escola do país (públicas e privadas) se alinhe às novas diretrizes obrigatórias. O prazo para implantação termina em 2020, quando as referências que definem os direitos de aprendizagem devem enfim permear os mais diversos aspectos da vida escolar — do projeto pedagógico e currículo à formação de professores, materiais didáticos e instrumentos de avaliação. 

Nessa corrida, além de fôlego, as escolas precisam de um bom planejamento para cruzar a linha de chegada. Os primeiros passos se resumem a entender o que é a BNCC, fazer uma revisão dos respectivos currículos e PPP (Projetos Políticos Pedagógicos) e criar um sistema de governança que envolva os professores nos eventuais ajustes e transformações. 

Nas escolas públicas, esse processo é liderado pelas redes, muitas das quais têm unido esforços para (re)elaborar seus currículos. Já as privadas gozam de autonomia para dialogar com a Base e promover as mudanças que julguem necessárias para aproximá-las do norte traçado pelo documento oficial. “Embora a BNCC dite as habilidades e competências que o aluno precisa desenvolver, ela não diz como isso deve ser feito. Portanto, quem vai determinar a estratégia, a carga horária e as disciplinas é a própria instituição, a partir do seu projeto educativo”, explica Solange Petrosino, gerente de Serviços Educacionais da Editora Moderna. 

Dessa forma, o processo de implementação vai ganhando seus próprios contornos em cada uma das 71,4 mil escolas de Educação Básica espalhadas pelo Brasil. “Na prática, a BNCC será observada de acordo com a interpretação dos colégios e sua forma de fazer Educação”, conclui Ademar Batista Pereira, presidente da Fenep (Federação Nacional das Escolas Particulares).

Ainda assim, colocar as diretrizes nacionais em prática, em menos de dois anos, não será uma tarefa simples. “O grande desafio do gestor da escola particular é concretizar as referências da Base no dia a dia dos alunos”, afirma Esther Carvalho, diretora-geral do Colégio Rio Branco, de São Paulo (SP). Tende a levar vantagem, porém, quem já estava de olho nas tendências mundiais da Educação. “As escolas que já se preocupavam com a inovação e com os pressupostos globais que a Base trouxe – como formação integral, cidadania global, regionalização e competências socioemocionais – certamente terão mais facilidade de se ajustar”, afirma Solange, da Moderna. 

Para acompanhar esse processo na rede privada, a Educatrix entrevistou os gestores de quatro escolas que já estão a todo vapor com a implementação da BNCC. Confira os depoimentos a seguir.  

COMPREENSÃO DA BASE NA PRÁTICA

“O primeiro passo para a implementação é fazer uma interpretação correta da BNCC, que não é uma meta e muito menos um currículo. Entender sua potência e abrangência enquanto política pública é o primeiro grande desafio. Depois, é preciso compreender que não se trata de uma lista de conteúdos. O que o documento prevê é o que a criança deve aprender, sob a perspectiva dos direitos de aprendizagem. 

Nesse contexto, é imperativo também entender o que é competência – capacidade de mobilizar conhecimentos escolares e intervir na realidade – e definir os conhecimentos com os quais instrumentalizar o aluno. Em suma, não são conceitos simples de ser assimilados. Muito menos quando se tem em conta que, até pouco tempo, o currículo era tido como uma mera lista de conteúdos. Hoje, porém, sabemos que ele é um instrumento que traduz o conjunto de experiências intencionalmente delineadas pela escola para concretizar as referências estabelecidas no PPP (Projeto Político Pedagógico), bem como as orientações da BNCC.

Outro aspecto fundamental é desmentir o mito de que a Base exige que todos aprendam a mesma coisa. A implementação é muito mais complexa e demandou traduzir a Base para o projeto pedagógico de cada escola.

No Colégio Rio Branco, a primeira etapa desse processo exigiu uma análise profunda da BNCC. Para começar, colocamos lado a lado os princípios que ela traz com o nosso PPP e o planejamento do Colégio. Desse pareamento, resultaram as diretrizes da nova versão do projeto pedagógico, que refinará aspectos ligados aos direitos de aprendizagem e ao trabalho baseado em competências. É possível também que haja mudanças no regimento escolar a partir de 2019, com uma nova organização didática dos períodos letivos. 

Além disso, dissecamos a BNCC para entender como ela se encaixa no nosso currículo, onde se adequa e que novidades traz para o colégio. Com isso, foi possível constatar que os alvos que perseguimos há anos – desenvolvimento de competências e visão interdisciplinar – estão de fato alinhados à Base. 

Não estamos falando de conceitos novos, mas sem dúvida de difícil implementação. Por mais que falemos em metodologias ativas, mudar o mindset dos professores em uma escola de 150 anos, como a nossa, é um processo longo. Para isso, investimos em formações continuadas que abordam o ensino investigativo, ampliam o repertório de ferramentas pedagógicas que favorecem as metodologias ativas e incentivam a aprendizagem colaborativa. Além disso, estruturamos um processo de apoio aos professores e acompanhamento. 

Quanto aos currículos do Ensino Fundamental, que ainda estão em análise, podemos apenas adiantar que teremos ajustes de localização das expectativas de aprendizagem. Já na Educação Infantil, o que mudará no currículo serão as nomenclaturas. A concepção em si deve manter-se muito próxima à que já tínhamos – calcada no uso de múltiplas linguagens, brincadeiras e na ideia da ‘criança potente’.

Em linhas gerais, esses são os ajustes nos quais estamos trabalhando enquanto aguardamos as publicações oficiais da Diretoria de Ensino do estado, a quem respondemos.” 

Esther Carvalho, diretora-geral.

ESTRUTURA DE GOVERNANÇA

“No Colégio São Luís, entendemos a implantação da BNCC como um movimento de mão dupla. De um lado, a escola deve analisar sua proposta pedagógica e matriz curricular à luz do que a Base propõe. De outro, também precisa contextualizá-la no âmbito de sua própria proposta pedagógica. Sob essa lógica, estamos trabalhando na revisão curricular desde 2017. Esse processo é liderado pela direção-geral e levado a cabo pelo chamado GT (Grupo de Trabalho) de Currículo, formado por educadores – docentes e não docentes – de todos os segmentos. 

Sob a coordenação da direção acadêmica, o GT se reúne uma vez por semana. Suas reflexões sobre a BNCC e encaminhamentos são socializados mensalmente com todo o corpo docente, que tem papel consultivo. Em paralelo, uma assessoria externa dialoga periodicamente com os professores e com o próprio GT. Já as aprovações finais ficam por conta do Conselho Diretor da Escola. 

A BNCC, porém, não impõe grandes desafios para o colégio. Já tínhamos um currículo bastante abrangente em termos de conteúdo. O que vemos agora são oportunidades de enriquecer o que já fazíamos e oferecer aos estudantes mais alternativas de acesso ao conhecimento. Para isso, temos ampliado nossos horizontes e nos debruçado sobre currículos – inclusive internacionais – de filosofia humanista, cuja foco é a formação integral da pessoa. A partir desse benchmark, passamos a organizar nossos conteúdos de maneira mais integrada e a incorporar à matriz de competências gerais e habilidades em todas as dimensões, não apenas na intelectual. Nosso prazo para terminar a elaboração da nova matriz (até o 9o ano do Ensino Fundamental) é outubro de 2018. Para o Ensino Médio, é junho de 2019. 

Na mesma direção, caminha a formação continuada dos professores. Com foco na epistemologia e na didática, as metodologias ativas, que favorecem todas as dimensões da aprendizagem, são a tônica dos encontros, organizados a partir de reflexões individuais e coletivas sobre a prática. Quanto aos materiais didáticos que o Colégio adota, ainda vamos avaliar se há necessidade de mudanças para o próximo ano letivo. Cabe ressaltar que a análise da adequação das obras à nossa proposta pedagógica e aos documentos oficiais de Educação já faz parte da rotina anual. Neste ano, em especial, vamos atentar para o alinhamento dos conteúdos didáticos às exigências da BNCC.”

Sônia Magalhães, diretora-geral

FORMAÇÃO DE PROFESSORES

“Graças ao fato de termos acompanhado a construção da Base desde o princípio, com participação ativa nas reflexões junto a sindicatos e outras organizações educacionais, nosso trabalho pedagógico já estava voltado para os direitos de aprendizagem e o desenvolvimento de habilidades e competências. 

Na Educação Infantil, por exemplo, a BNCC legitimou nosso olhar diferenciado para o binômio Cuidar e Educar, que sempre privilegiou os processos de alfabetização e letramento desde os estágios iniciais do desenvolvimento cognitivo. Além disso, o documento veio ao encontro da forma como exploramos os direitos de aprendizagem: com práticas pedagógicas que imprimem intencionalidade ao conviver, brincar, participar, explorar, conhecer e expressar-se. 

Ainda assim, temos alguns desafios pela frente. O maior de todos é garantir que os professores e as equipes pedagógicas tenham pleno entendimento da BNCC e das mudanças que se fazem necessárias para implementá-la na Rede. Uma delas é a atualização do PPP, com um olhar renovado para a identidade do Sagrado frente às demandas de um ensino progressista. A nova versão da proposta pedagógica, que será finalizada até 2019, deve fortalecer a gestão democrática e envolver toda a comunidade educativa nas transformações que estão por vir. 

Para um futuro próximo, vemos também oportunidades na construção de práticas mais inovadoras de ensino. Para promover a autonomia dos educandos, vamos privilegiar o conceito de Aprender a Aprender e o Ensino Híbrido. Os primeiros passos nessa direção já foram dados na Rede por meio da apresentação geral da Base, com momentos especialmente dedicados a esse propósito durante a formação continuada. Agora, a próxima etapa é discutir formas de colocar o aluno no centro da aprendizagem, bem como refletir sobre novas práticas metodológicas e tecnologias educacionais que contribuam para esse fim. 

Quanto ao currículo do Ensino Fundamental, este deve sofrer ajustes para minimizar a fragmentação do conhecimento entre um ciclo e outro. Para isso, pretendemos ampliar – de forma orgânica e progressiva – a inserção de situações complexas no dia a dia do educando.  Outro aspecto que merece atenção é o aprofundamento das práticas de leitura, escrita e oralidade. 

No Infantil, por sua vez, os currículos tendem a ser tornar mais consistentes tanto na organização quanto na proposição de experiências. Estas, segundo a própria Base, deverão contribuir para a criança conhecer a si mesma e ao outro e compreender suas relações com a natureza, com a cultura e com a produção científica.   

Já em relação aos materiais didáticos, o que deve mudar são os nossos critérios de seleção. Vamos visar ao alinhamento dos conteúdos com a BNCC e também às novidades metodológicas voltadas ao ensino progressista. Os ajustes, porém, só serão feitos na medida em que a Rede identificar reais necessidades. 

Por fim, novos indicadores de aprendizagem passarão a fazer parte do sistema avaliativo do Sagrado, que já preza pela observação das habilidades adquiridas pelos educandos.”

Rafael Lima, gestor pedagógico

AJUSTES NO CURRÍCULO

“O primeiro passo para lidar com a BNCC é desmitificar a ideia de que ela será implementada nas escolas. É um erro que nos induz a pensar em uma suposta massificação, que sequer tem como acontecer. A Educação não se faz assim. A proposta consiste em dialogar com a Base, identificar pontos de atrito com o projeto pedagógico e com o currículo e avaliar como ela pode contribuir para a melhoria da aprendizagem. 

Cabe destacar que todas essas interpretações e análises sempre vão partir dos pressupostos e premissas de cada escola. Não dá para fugir da própria história, da cultura e das relações que se formam em torno da instituição. É por isso que a leitura da Base em uma escola mais tradicional pode acabar sendo completamente diferente da leitura que fazemos no Vera Cruz, cuja abordagem é construtivista.

Por aqui, as discussões estão a todo vapor. Desde fevereiro deste ano, equipes técnicas formadas por coordenadores, orientadores, assessores de área e professores da Educação Infantil e do Ensino Fundamental se debruçam sobre a Base para fazer uma leitura crítica do documento e uma autorreflexão sobre nossas práticas pedagógicas.  

Em julho, as equipes tiveram a oportunidade de apresentar para todo o corpo pedagógico do Colégio um primeiro diagnóstico das consonâncias e dissonâncias com a Base, bem como a necessidade de incorporar certos objetivos e aprofundar competências específicas. Ainda durante o encontro, cada pessoa pôde contribuir com ideias e apresentar suas demandas de formação continuada, material didático, ajustes no currículo e revisão do projeto pedagógico. Com esse raio-x de cada área e segmento, agora temos condições de traçar os próximos passos de alinhamento com a Base. 

Alguns ajustes, porém, já estão previstos. Em Matemática, vamos antecipar o desenvolvimento do pensamento computacional para o currículo do Ensino Fundamental. Até então, apresentávamos a Matemática Computacional apenas no início do Ensino Médio e não necessariamente com o mesmo rigor no desenvolvimento das competências que a Base agora determina. 

Em outros casos, porém, as diretrizes do documento já começam a ser incorporados no dia a dia. Por exemplo, se o assessor de Língua Portuguesa está falando de ortografia com os professores, ele já aproveita para abordar o tema sob o ponto de vista do desenvolvimento das competências definidas pela BNCC. 

Para o Infantil, não haverá grandes novidades. A Base traz apenas um outro jeito de organizar o trabalho pedagógico, com base nos campos de experiência. Dessa forma, o documento ratifica o que o Vera Cruz já segue: valorizar a experiência da criança e respeitar sua forma de aprender e pensar. 

No Ensino Fundamental, o planejamento das aulas também não será muito impactado. Definir objetivos com base no desenvolvimento de competências tem tudo a ver com nosso jeito de ensinar. Menos cognitivistas e mais direcionados para a experiência da vida escolar, acreditamos que o aprendizado se dá na relação com o conhecimento, com os professores e colegas e com a experiência vivida no coletivo. 

Ainda temos muito por mapear e planejar pela frente. Mas é com serenidade que vamos tomando consciência das nossas necessidades e priorizando o que precisa ser feito até 2020.”

Regina Scarpa, diretora pedagógica
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