Conta que não fecha
Dados das avaliações nacionais e de exames internacionais mostram que o ensino da Matemática precisa de um salto de qualidade, para que indicadores possam atingir patamares adequados de aprendizagem.
Texto: Paulo de Camargo
Entre as muitas frentes de desafios da Educação, está na Matemática a mais contundente expressão da incapacidade do sistema escolar brasileiro de garantir direitos de aprendizagem. Os dados mais recentes do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) mostram que não mais do que 3,7% dos alunos do Ensino Médio apresentam uma aprendizagem considerada adequada nessa disciplina. Em outras palavras, menos de quatro a cada cem jovens brasileiros terminam a Educação Básica com conhecimentos suficientes nessa área considerada fundamental para o exercício da cidadania e o progresso científico.
É um dado preocupante, não somente pelo retrato pontual, mas pela sua permanência no tempo. Desde 1990, quando se iniciaram as avaliações do Saeb, o índice se mantém em patamar muito baixo, e sempre inferior ao resultado de Língua Portuguesa.
O estudo “O cenário do ensino de matemática no Brasil: o que dizem os indicadores nacionais e internacionais”, publicado pelo Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional (Iede), em 2024, traz um painel amplo sobre o tema e mostra que os alunos brasileiros com idade entre 15 e 16 anos estão, em média, com três anos de defasagem em relação ao aprendizado dos alunos de países desenvolvidos. O estudo do Iede foi feito em parceria técnica com o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Educação e Economia Social da USP, com o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa) e o apoio da organização B3 Social.
O desafio do ensino da Matemática pode ser analisado em múltiplas dimensões, retratadas nas reportagens desta edição – como a pedagógica, referente às metodologias, ou do ponto de vista da formação dos professores. Mas, sobretudo, é necessário questionar a falta de prioridade dada ao tema nas políticas públicas: enquanto o tema da alfabetização (merecidamente) é alvo de iniciativas como os pactos nacionais, a literacia em Matemática ainda ocupa um plano secundário – com menor visibilidade social e política.
É um descaso que custa caro, não apenas ao país, que terá menores chances de inserção no cenário internacional como um país desenvolvido, mas principalmente aos jovens, que deixam de ter assegurado um direito, e, assim, ficando alijados de plenas condições de participação na vida produtiva.
Comparações internacionais
É verdade: todas as observações que relativizam os dados de exames internacionais são importantes e devem ser levadas em conta. Mas, da mesma forma, não é possível fechar os olhos para a grande distância entre os resultados brasileiros e o de outros países, inclusive os vizinhos da América do Sul.
A última edição do exame internacional Pisa, divulgada em fevereiro deste ano, focou a Matemática, e reafirmou os grandes desafios brasileiros na área. Criado e realizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Pisa avalia a cada três anos os resultados de aprendizagem dos alunos de 15 e 16 anos em Matemática, Linguagem e Ciências, alternando a ênfase nessas áreas. No exame aplicado em 2022 e divulgado em 2024, o tema central foi a Matemática.
Alguém poderia perguntar qual é o currículo considerado e se não vêm daí as diferenças de performance. Mas ocorre que o Pisa foca as competências, mais do que os conteúdos, e considera em seu escopo a alfabetização matemática, definida como “a capacidade de um indivíduo de raciocinar matematicamente, formular, empregar e interpretar a Matemática para resolver problemas do mundo real em variados contextos. Isso inclui o domínio de conceitos, procedimentos, fatos e ferramentas para descrever, explicar e prever fenômenos”.
O Brasil manteve-se estagnado, com uma pontuação de 379 pontos, enquanto a média dos países da OCDE é de 472 pontos. Segundo a Pisa, o nível 2 é considerado o mínimo esperado para a etapa. Os resultados mostram que somente 26,7% dos estudantes brasileiros atingiram ao menos o nível 2, enquanto 68,9% dos jovens dos países da OCDE ficaram nesse patamar.
Dessa forma, 30,3% dos alunos brasileiros ficaram no patamar 1 e 43,1% num nível ainda inferior, proporção quatro vezes mais do que a verificada nos países da OCDE. Na prática, isso significa que os alunos podem responder apenas a questões que envolvem contextos simples, nas quais todas as informações necessárias estão presentes e as questões são claramente definidas, mas não são capazes de fazer interpretações dos resultados. Podem realizar ações que são óbvias ou que exigem uma síntese mínima de informações, mas, em todos os casos, as ações decorrem claramente dos estímulos dados.
Quando são considerados os recortes socioeconômicos, a leitura das informações fica ainda mais dramática: somente 3,1% dos estudantes mais pobres têm aprendizado adequado em Matemática. “Entre os mais ricos, este são 33,9% — um cenário mais positivo, mas, evidentemente, distante do desejável”, escreve o pesquisador Ernesto Faria, diretor do Iede e um dos autores do estudo.
É preciso reconhecer que o país avançou mais em Matemática do que nas demais áreas avaliadas. Em 2003, a pontuação do Brasil estava em 356 pontos, ou seja, houve um incremento de 27,6 pontos. Contudo, o indicador ainda fica inferior do alcançado em Linguagem e em Ciências.
Como resultado geral, o país ocupa a 64a posição, entre os 83 países que fizeram parte da avaliação, em 2022, enquanto 10% dos alunos brasileiros atingiram a aprendizagem adequada, cerca de metade do índice alcançado pelos alunos do Uruguai. Em Singapura, primeiro colocado, 80,8% dos jovens chegam a esse patamar.
Problema de origem
Embora o Ensino Médio seja um exemplo eloquente das dificuldades de aprendizagem de Matemática, trata-se de um problema que se acumula desde o início da escolaridade. Na verdade, sua origem vem da própria história do Brasil, país que arrasta um século de atraso no início da escolarização de sua população. Mas é preciso olhar para o futuro.
Hoje, os dados disponíveis referem-se, principalmente, aos produzidos pelo Saeb. Mostram, por exemplo, diferenças importantes quando se consideram os indicadores de Língua Portuguesa. Em proporção crescente, a curva de aprendizagem em Língua Portuguesa se distancia daquela vista em Matemática. Em 2021, 36,7% dos alunos apresentavam resultados suficientes em Matemática, no 5o ano do Ensino Fundamental, contra 50,9%, em Língua Portuguesa. Já no 9o ano, os alunos com aprendizagem suficiente são 15,3%, em Matemática, e 34,9%, em Língua Portuguesa.
Internacionalmente, os indicadores demonstram que houve uma queda na aprendizagem causada pelo impacto da pandemia de covid-19. Mesmo na OCDE, o Pisa 2022 indicou uma diminuição relevante, que chegou a 15 pontos em Matemática. No caso brasileiro, houve uma estabilidade – que os especialistas não atribuem a uma boa razão, mas ao nível historicamente baixo de aprendizado nesse campo.
Por isso, é importante aprofundar os estudos para dimensionar melhor esse impacto – e novos estudos virão. O Brasil aderiu, em 2022, pela primeira vez, a um estudo internacional específico sobre a Matemática, denominado Trends In International Mathematics and Science Study (Tendências em estudos internacionais de Matemática em Ciências), cujos resultados deverão ser publicados nos próximos anos.
Retrato da desigualdade
Por mais que as médias gerais estejam abaixo do esperado, a análise do contexto brasileiro só se torna mais concreta quando vista pelo prisma das desigualdades. Apenas esse recorte permite compreender a real gravidade dos indicadores educacionais.
“É raríssimo um aluno de baixo nível socioeconômico (NSE) com aprendizado adequado na Matemática”, diz o pesquisador Faria. Apenas 4,4% desses alunos chegam a esse patamar, conforme os microdados do Pisa 2018. Pior: a análise por níveis indica também que 0,1% dos jovens de famílias de baixa renda atingem o nível avançado. No Saeb, nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, as crianças com aprendizado adequado representam 55,2% no total, quando se leva em conta o nível socioeconômico alto, e 22,5%, entre os 20% mais pobres.
Conforme o estudo do Iede, as desigualdades não se limitam ao nível socioeconômico dos estudantes, mas se agravam quando considerado o critério de cor/raça. “Mesmo quando são analisados estudantes pertencentes a um mesmo grupo de renda, há diferenças significativas, com desvantagem para os estudantes pretos”, mostra o estudo.
Nos dados do Saeb 2019, no 5o ano do Ensino Fundamental, o nível que confere um aprendizado adequado, entre alunos de família de nível socioeconômico alto, é de 67%. Já entre os pretos, o índice cai para 40,1%. Se o critério da renda baixa for levado em conta, os percentuais são 41,6% versus 23,9%, respectivamente.
Seja quando são considerados os avanços, seja quando se olha para as baixas performances, o critério regional também importa. No Pisa, enquanto os 12% dos alunos do Sul atingem o aprendizado considerado adequado, apenas 4,4% dos jovens do Norte atingem o mesmo resultado. Ou seja, enquanto o Brasil está na 64a posição, os alunos mais ricos do Sudeste elevam o Brasil oito posições acima. Se apenas a região Norte for considerada, o país cairia para o 70o lugar.
Expressão evidente das desigualdades brasileiras, o desempenho das escolas privadas brasileiras no Pisa também está bastante acima do das escolas públicas. Se o Brasil fosse representado por suas escolas privadas – que atendem, em média, a um quinto dos alunos da Educação Básica –, o país pularia mais de 20 posições no Pisa, ficando à frente de Japão, Portugal e Espanha, por exemplo. Assim, ficam claros os mecanismos de reprodução da desigualdade no contexto social brasileiro.
Não é possível separar também o tema da aprendizagem em Matemática da formação de professores. Um estudo realizado pelo Sindicato das Entidades Mantenedoras do Ensino Superior mostrou que um dos principais gargalos está na própria formação inicial dos professores.
A licenciatura de Matemática, por exemplo, tem uma desistência em torno de 70%, índice superior à das demais licenciaturas. Em meio a uma previsão de falta de professores, justamente a carreira dos que ensinam a Matemática está entre as mais afetadas. Nas escolas, um número expressivo de docentes ensina a disciplina sem formação adequada para tal. Perto de 37% dos professores de Matemática em atuação não são formados em sua própria área, segundo dados do Inep tabulados pelo movimento Todos pela Educação.
Onde estão os bons resultados
Para compreender os desafios do ensino de Matemática, não basta olhar para o que falta, mas deve-se tentar entender como trabalham as escolas com os melhores indicadores. Isso é o que fez o Iede, incluindo na análise os resultados de escolas que participam da Olimpíada Brasileira de Matemática da Escola Pública (Obmep). Organizada pelo Impa e com 19 edições, a Obmep frequentemente é citada como uma das boas iniciativas públicas para estimular a aprendizagem de Matemática. Participaram da última edição alunos de 56,5 mil escolas públicas.
De forma geral, há uma correspondência entre bons resultados no Enem, no Saeb e nas olimpíadas de matemática, quando consideradas as escolas que receberam pelo menos menção honrosa. Essas escolas também apresentam melhores taxas de rendimento, ou seja, taxas de aprovação mais elevadas e índices de abandono e reprovação reduzidos. Do mesmo modo, são escolas com menos distorção idade-série e com mais professores com formação adequada para a disciplina que lecionam.
Segundo os autores do estudo, não é possível ainda estabelecer com certeza as correlações – por exemplo, se os índices melhores estão relacionados à preparação para a Obmep ou se devem a características já presentes nas instituições. Por isso, as causas ainda serão investigadas, inclusive para permitir o compartilhamento de boas práticas.
No estudo do Iede, foram consideradas as escolas em que pelo menos 65% dos estudantes classificados participaram da segunda fase das Olimpíadas. Isso indica que, quanto mais o engajamento das turmas, mais os benefícios são generalizados. Por outro lado, quando há bons resultados, mas pouca participação, as desigualdades internas das escolas ficam em relevo — ou seja, os efeitos ficam restritos a pequenos grupos.
No Ensino Médio, também foi verificada uma correlação entre a média no Enem e a conquista de medalhas na Obmep. Entre aquelas cujos alunos foram premiados, a nota média no Enem é de 516,1. No caso das que não participaram ou não receberam prêmios, cai para 488,5. Isso vale também quando se consideram as pontuações obtidas no Saeb.
Além da seleção amostral pelas escolas participantes da Obmep, o estudo buscou identificar as escolas com melhores índices de aprendizagem, mesmo com alunos de famílias de renda baixa e média. Assim, os pesquisadores chegaram a 71 escolas de Ensino Fundamental e 80 de Ensino Médio e visitaram um conjunto de instituições.
Entre outros fatores, foram identificados quatro aspectos importantes: a boa relação entre corpo docente e alunos; uma perspectiva de inclusão, com atenção aos que mais precisam; o interesse por diferentes metodologias; e aulas de aprofundamento.
Na pesquisa qualitativa realizada, a pesquisa reforçou um aspecto universalmente apontado: a importância do professor. Fica evidente, segundo os autores, que a boa relação entre professor e aluno, baseada em respeito, faz diferença. Nas entrevistas feitas com os jovens, sempre aparece um “gostar do professor” como um fator importante. “Já não gostam de Matemática, se não gostar do professor, fica muito complicado”, disse um aluno.
A boa formação dos educadores também se confirmou com um fator que influencia a aprendizagem de Matemática, segundo estudo do Iede. Isso apareceu na diversidade de estratégias e de recursos utilizados pelos docentes das escolas com melhores índices de aprendizagem, como jogos, materiais concretos, jogos construídos pelos próprios alunos, uso de aplicativos, entre outros. Esses recursos permitem que a Matemática se torne mais visual e concreta, ampliando a compreensão dos alunos.
Por outro lado, as escolas com resultados mais baixos tinham em comum a precarização dos contratos de trabalho e o percentual relevante de professores sem formação adequada na área de Matemática. Com menor estabilidade, precisando trabalhar em muitas escolas, há um evidente impacto na qualidade da aula. Sem formação inicial na disciplina, o professor tem pouco acesso também às formações continuadas.
Por isso, na visão de Ernesto Faria, do Iede, o sucesso das escolas não pode se basear apenas em professores que fogem do padrão. São necessárias políticas públicas estruturais e investimento em educação continuada, para que a aprendizagem de todos os alunos, em todas as etapas, possa avançar. “Nesse sentido, o estudo faz um alerta ao evidenciar a escassez de ações sistêmicas nas redes de ensino voltadas à melhoria do ensino de Matemática”, conclui.
Matemática é um desafio global
O último relatório do Pisa, divulgado em 2024, mostra que, se é verdade que o Brasil tem desafios maiores do que a maioria dos países participantes, a Matemática ainda é um desafio global. Segundo o estudo, em média, 31% dos alunos tiveram desempenho abaixo do nível 2 (considerado o mínimo adequado), entre os países que integram a OCDE, na maior parte de nações desenvolvidas.
O estudo mostrou que, em alguns países do mundo, sistemas educacionais têm poucos alunos com baixo desempenho em Matemática: 15% ou menos dos alunos tiveram um desempenho abaixo do nível 2 na Estónia, no Taipé Chinês, em Hong Kong, no Japão, em Macau e em Singapura – o que mostra a prioridade dada ao tema nos países orientais, principalmente. “Isso significa que esses sistemas estão perto de alcançar a proficiência básica universal em matemática”, pontua o relatório.
No extremo oposto, os dados mostram que em 35 países mais de metade dos alunos obtiveram resultados abaixo do nível de proficiência 2 e, em 12 deles, mais de 80% dos alunos obtiveram notas ainda mais inferiores. Em outras 19 nações, um a cada dez jovens ficou no último grau da escala.
No Pisa, os níveis de proficiência 5 e 6 são os mais elevados, nos quais se concentram os melhores desempenhos. Contudo, na maioria dos países, a percentagem de alunos com pontuação no nível de proficiência 5 é inferior a 5%. Em 30 países e economias que integram o Pisa, apenas 1% ou menos dos jovens de 15 anos obteve pontuação no nível de proficiência 5.
A percentagem de alunos com pontuação no nível 6 é superior a 10% apenas em Hong Kong (China), Macau (China), Singapura e no Taipé Chinês. Em 46 países ou economias, apenas 1% ou menos dos alunos obteve resultados nesse nível em matemática.
Para saber mais:
- Portal Iede (2023). O cenário do ensino de matemática no Brasil: o que dizem os indicadores nacionais e internacionais. Disponível em: https://mod.lk/ed26_fc1. Acesso em: 12 set. 2024.