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Comitê de convívio escolar: estratégia de gestão democrática

Instância representativa e parceira da gestão escolar pode ajudar no fortalecimento de um ambiente de convivência saudável e de respeito.

texto  Roberta Panico

Nos últimos anos vimos cenas muito graves e preocupantes de violência nas escolas no Brasil. O ataque ocorrido em São Paulo no final de março de 2023, que deixou uma professora morta, quatro feridos e toda uma comunidade escolar perplexa e assustada, e o assassinato de quatro crianças em um atentado a uma creche em Blumenau se somam a uma série de episódios de violência extrema que resultaram em mortes desde 2002, e que a partir de 2022 passaram a ocorrer com mais frequência.  

O que vem acontecendo nas escolas brasileiras? O que essa escalada na violência pode nos dizer sobre a escola e a nossa sociedade? Sob o choque de eventos como esses, nos perguntamos sobre as razões, as motivações do ato, como um adolescente chegou ao ponto de assassinar a professora em sala, e ficamos ansiosos por encontrar formas de evitar que mais tragédias aconteçam. 

Basta refletir sobre a sociedade em que vivemos hoje e sobre os desafios enfrentados por todos nós para saber que as respostas não são simples. No entanto, esses episódios invariavelmente nos remetem às microviolências na escola, às incivilidades que ocorrem no cotidiano escolar, o que convencionamos chamar de bullying. É importante lembrar que, embora tenha um funcionamento próprio, a escola se configura como microcosmo da sociedade contemporânea e, portanto, as intolerâncias e as atitudes violentas também são nela reproduzidas. 

O bullying, que ocorre por meio do xingamento, do constrangimento a um colega, da risadinha, de uma piada ou uma “brincadeirinha” de mau gosto, é uma primeira manifestação de hostilidade com a diferença que, banalizada e não combatida, é normalizada. Não olhar para essas incivilidades não só nos embrutece como nos faz passar por cima da necessidade de trazer à tona questões que podem ser educativas.

O ambiente escolar deve ser um espaço seguro, de proteção e acolhimento, com o objetivo de responder à sua missão constitucional, inscrita no art. 205 da Constituição Federal: 

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. 

Para que o acesso à escola seja um direito de todos, ela precisa ser democrática e garantir que todos possam conviver bem e aprender em segurança. Considerando que somos um país que carrega diferenças de todas as ordens — social, econômica, racial, de gênero e de oportunidades —, a gestão da escola precisa se comprometer com valores democráticos e de equidade. 

É evidente que isso traz uma complexidade enorme para a gestão escolar, que precisa colocar todas as questões das relações humanas, incluindo conflitos e violência, nas suas mais diferentes formas, como conteúdos de ensino e aprendizagem. A escola é uma organização humana e sua função é principalmente ensinar valores democráticos para a vida em sociedade. As famílias têm valores próprios, algumas são racistas, machistas, homofóbicas, gordofóbicas, não necessariamente explicitam esses valores no discurso, mas pelas atitudes e vivências, e a escola é o espaço de convívio entre diferentes.  

Sendo assim, os conflitos são inerentes à convivência escolar e precisam ser considerados e trabalhados. Não basta reprimi-los por meio de uma gestão autoritária, repressora ou menosprezá-los, tratando-os como brincadeirinhas. A partir dos conflitos, é importante reconhecer as tensões, conversar sobre elas e refletir sobre como se pode melhorar a convivência e o respeito mútuo entre as pessoas. 

Muitas vezes repreendemos um chute raivoso de um aluno no portão, mas deixamos passar um comentário sobre a altura de um colega “que parece uma girafa”. Como educadores, não podemos naturalizar nenhum tipo de violência, é preciso ter uma escuta atenta e sensível para capturar esses desrespeitos. Não colocar os conflitos e as situações de ofensa em discussão transforma a violência na escola em violência da escola. Afinal, a invisibilidade e o descaso com tais situações acabam gerando sofrimento para os estudantes, que podem se sentir cada vez isolados e, em casos extremos, ir se desconectando dos estudos até abandonar a escola, ou ainda, quando há associação com fatores psiquiátricos e/ou de envolvimento com grupos extremistas que pregam o ódio, fazer da própria escola um alvo de violência.  

Tsunami de violências

Um tsunami se constitui a partir de movimentos geológicos que provocam pequenas ondas em alto-mar que, ao se aproximarem das regiões costeiras, se transformam em uma onda gigante, ou seja, é preciso cuidar das pequenas violências na escola para que elas não se transformem em situações de maior gravidade.

Por isso, o bullying precisa ter uma atenção especial. A palavra bullying, que curiosamente só é usada no contexto da escola, na tradução do inglês para o português significa:

Bully sem o ing significa valentão.

Bully significa intimidar. 

Bullying significa assédio moral, ou seja, uso de poder para oprimir o outro. 

Mas as situações que levam ao bullying não se constituem somente como ofensas de um indivíduo para outro, estão amparadas por uma atmosfera coletiva que permite que aconteçam, daí a importância de cuidar da qualidade da convivência escolar. Além de nomear as situações, é importante identificar e compreender o que está por trás desses comportamentos — preconceitos como o capacitismo, a homofobia, a xenofobia, o racismo, intolerâncias políticas religiosas e todos os demais desrespeitos pelas diferenças humanas precisam ser analisados e se transformar em material de discussão.

“[…] temos o direito a ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza”

(SANTOS, 2006, p. 316)

No livro Direção para novos espaços e tempos da escola, destacamos que “um dos maiores desafios que o Brasil enfrenta atualmente é o fato de que os direitos fundamentais dos estudantes marcados pela diferença têm sido encarados pelas escolas como um trabalho a mais e não como parte das atribuições de uma gestão que visa à garantia da qualidade da Educação para todos e cada um”. 

Desde 2015, a Lei n. 13.185 prevê que as instituições de ensino têm o dever de desenvolver ações e campanhas para combater intimidações no ambiente escolar. Para colocar em prática essa lei, a escola precisa se responsabilizar por ofertar aos estudantes condições para que aprendam e se desenvolvam na sua integralidade: cognitiva, social, física, emocional. 

Todas as experiências escolares ensinam alguma coisa e as intencionalidades educativas precisam estar bem-estabelecidas. Uma simples regra de tolerância com atrasos de entrada na escola pode gerar problemas, se, por exemplo, só valer para estudantes e não para professores. São decisões que ensinam valores e atitudes sobre o que são regras e para que e para quem servem, se são justas ou injustas, se servem para todos ou apenas para alguns etc. Por isso a pergunta, sobre o que estamos ensinando em cada situação vivida na escola, precisa ser uma reflexão constante de toda a equipe e do projeto político pedagógico (PPP). 

Então como lidar pedagogicamente com as incivilidades e violências que permeiam o espaço escolar? O que a escola pode (deve) fazer? Uma estratégia que pode ajudar a garantir um espaço para que sejam olhadas e encaminhadas é um comitê de convivência escolar. Pode ter outro nome, o que vale aqui é criar uma instância que preze pelas boas relações entre todos e pela coibição de práticas violentas contra estudantes, educadores e/ou funcionários. O comitê pode ser uma instância de participação de toda a comunidade escolar representada por alunos, professores, funcionários, gestores, pais e/ou responsáveis pelos estudantes e até da vizinhança escolar para que todos juntos identifiquem, cuidem, proponham soluções e tomem decisões para prevenir situações de bullying

Como criar um comitê de convivência escolar: passo a passo

Uma gestão escolar democrática implica viabilizar a vivência da democracia no espaço da escola, e a instituição de comitês representativos para encaminhar a questão da violência, fundamental para o bem-estar de toda a comunidade, é excelente para isso, porque as decisões e proposições não estarão centralizadas na equipe gestora e/ou dos professores. É importante que seja um projeto permanente da instituição. A seguir apresentamos uma sugestão de passo a passo para a criação de um comitê na escola onde você trabalha:

1. Definir composição e função. A equipe gestora poderá levar a ideia da constituição de um comitê para o conselho de escola e juntos poderão organizar um grupo de trabalho para definir seu propósito, sua função e suas atribuições. É fundamental estabelecer se será apenas uma instância de votação de ideias da gestão da escola ou se também terá função propositiva. Com base nisso, poderá se pensar na proposta de funcionamento e composição do comitê, passando pela quantidade de representantes e a representatividade: funcionários, professores, gestores, estudantes de diferentes idades, familiares/responsáveis etc. 

Será necessário constituir um regimento específico para esse funcionamento que seja público e acessível para todos. Algumas definições que podem ser importantes: forma de eleição, tempo de mandato (anual, bienal); procedimento para substituições de membros; encaminhamento de reclamações sobre o próprio comitê, além de outras situações que possam ser levantadas pelo grupo.

2. Divulgar e sensibilizar toda a comunidade escolar. Nesta etapa, precisamos garantir que todos tomem conhecimento da proposta e ainda possam colaborar. Os gestores da escola, ou os próprios estudantes que participaram da sua definição preliminar, podem apresentar a proposta em cada turma, para todos os funcionários, professores e nas reuniões de pais e deixar um canal aberto para sugestões. Uma vez revista a proposta à luz dessas contribuições, será necessário divulgar as atribuições do comitê. Uma forma de dar visibilidade é elaborar cartazes a serem colocados na escola, e o processo de produção pode envolver alunos. 

3. Escolha dos representantes. Esta etapa poderá ser realizada de muitas formas, pela eleição de cada membro, ou por representantes de cada segmento — por exemplo, os estudantes se candidatam ou são indicados — e os demais estudantes votam em seus representantes. É importante haver representantes de estudantes de diferentes etapas e anos de ensino, pois os interesses e as ideias de uma criança de 9 anos são bem diferentes de um adolescente de 15 anos. No caso dos professores e funcionários, a ideia pode ser a mesma. No caso dos familiares, o conselho da escola pode indicar a melhor forma para essa escolha. É importante cuidar também da representatividade de meninos e meninas e étnico-racial. Feita a eleição e anunciada a composição, é hora de colocar o comitê em funcionamento.

4. Definir um cronograma de reuniões do comitê e deste com a gestão da escola.

5. Estudar a legislação e os documentos que orientam as práticas contra a violência no ambiente escolar e colocá-los em discussão com a comunidade. É importante que esses conteúdos sejam discutidos sempre em diálogo com o PPP da escola. Vale conversar com a Secretaria de Educação e verificar se há políticas públicas locais para esse tema. 

6. Mapeamento da situação da comunidade escolar. É pertinente que o comitê analise e reflita sobre as ocorrências e queixas de convivência na escola. Identificar, por exemplo, em que situações os estudantes são encaminhados para a diretoria, em que situações são suspensos. Quais as justificativas para evadirem ou abandonarem? Analisar o desempenho dos estudantes da escola é importante, já que as situações de bullying e de evasão podem ser mais críticas quando os estudantes não se sentem aprendendo. Tais dados são preciosos para ampliar o repertório de análise e de possíveis proposições. 

7. Elaboração e revisão do regimento do comitê e organização e divulgação do plano de trabalho. Com um cronograma estabelecido, o aprofundamento na legislação e o mapeamento das situações de conflito e violência na escola, pode-se avançar na sistematização de respostas a ocorrências cotidianas na escola e na identificação de casos que extrapolam a sua competência e precisam ser encaminhados a outras instâncias (família, conselho tutelar). Com base nisso, é possível construir um plano de trabalho com uma abordagem preventiva e construtiva que passe pela formação dos educadores (sempre em diálogo com a coordenação pedagógica e o PPP) e pela promoção de palestras e rodas de conversas.

8. Formação na escola. É necessário assegurar formação à equipe escolar, estudantes e seus familiares/responsáveis. Os temas podem ser variados e levantados pela escola. Por exemplo: mediação de conflitos, uso de redes sociais, intolerâncias políticas e religiosas, comunicação não violenta, racismos e preconceitos, além de outras temáticas. 

9. Promover ações em que as práticas e o respeito às diversidades étnico-raciais sejam vivenciados. Isso pode ser promovido com atividades culturais e artísticas em que as diferentes culturas estejam presentes e sejam valorizadas. Os materiais e recursos pedagógicos da escola e sua ambientação também precisam expressar essa concepção e esse valor social de respeito às diversidades.

O que não pode faltar no plano de trabalho do comitê

Práticas e mecanismos de denúncia e protocolos de combate cotidiano a situações não violentas e discriminatórias na escola.  As situações de bullying e de discriminação geralmente são encaminhadas para a gestão da escola, que precisa ter um canal aberto de escuta e tomar decisões em relação às medidas e aos cuidados a serem tomados. As queixas podem chegar diretamente aos gestores, mas também podem chegar pelo comitê. O denunciante deve se sentir seguro e confiante em comunicar sua queixa. As decisões são sempre da gestão escolar respaldada pelo regimento da escola e da legislação vigente, mas ela poderá fazer consultas aos membros do comitê. As assembleias escolares poderão ficar sob a responsabilidade do comitê, que pode, considerando a escuta atenta da comunidade escolar, coordenar e promover debates sobre as práticas e os conflitos do cotidiano escolar. 

Roberta Panico 

Diretora executiva da Comunidade Educativa Cedac e coorganizadora da publicação Direção para os novos tempos e espaços da escola (Editora Moderna, 2022). Mestre em Educação e pedagoga por formação, com experiência na docência e na coordenação pedagógica, atuou como formadora do programa Parâmetros em Ação e assessorou a Coordenação de EJA do MEC. 

Para saber mais

  • CARA, D. (Org.). (2022). O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental. Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Disponível em: mod.lk/ed24_cx1. Acesso em: 12 abr. 2023.
  • PANICO, R.; PEREZ, T. (2022). Direção para os novos espaços e tempo da escola. Editora Moderna, Fundação Santillana e Cedac. Disponível em: mod.lk/ed24_cx2. Acesso em: 12 abr. 2023.
  • VINHA, T. P.; DE MORAIS, A.; MORO, A. (2017). Manual de orientação para a aplicação dos questionários que avaliam o clima escolar. Fapesp, Fundação Lemann, Itaú BBA, Cedac. Disponível em: mod.lk/ed24_cx3. Acesso em: 12 abr. 2023.
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