fbpx

A reforma da reforma do Ensino Médio

O Conselho Nacional de Educação tem até dezembro para apresentar o texto das diretrizes de aprofundamento nos itinerários formativos ao Ministério da Educação.

Texto: Rubem Barros

O Ensino Médio foi objeto de mais uma reforma, homologada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 31 de julho de 2024. A Lei no 14.945/2024 alterou artigos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei no 9394/96) e dispositivos que haviam sido implementados pela Lei no 13.415/2017, até então conhecida como do Novo Ensino Médio. Afora a confusão da nomenclatura – muita gente já batizou as modificações com a mesma alcunha ou algo próximo (Novo Novo Ensino Médio, Nova Lei do Novo Ensino Médio) –, será preciso, nos próximos meses, definir e regulamentar aspectos relativos à Política Nacional do Ensino Médio, que é como o Governo nomeou o tema. 

Num primeiro momento, as principais questões dizem respeito à aprovação, pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), das diretrizes nacionais de aprofundamento de cada uma das áreas do conhecimento contempladas pela Lei – Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas – e ao estabelecimento de regras de transição para o processo de mudança. Com relação às diretrizes curriculares nacionais de educação profissional e tecnológica, o seu resultado está contemplado no Catálogo Nacional de Cursos Técnicos, não sendo foco de preocupação. O CNE tem até dezembro para apresentar o texto das diretrizes de aprofundamento ao Ministério da Educação. A implementação do formato com os novos componentes curriculares deve ocorrer em 2025.  

Esse momento de acomodação à nova política reflete a diversidade que tanto caracteriza as escolas e as populações do Brasil. Em geral, redes e escolas mais bem equipadas em termos de infraestrutura estavam mais satisfeitas com o formato aprovado em 2017 e introduzido em 2022; já os diretores de escolas com menos recursos e com corpo docente carente de alternativas, muitas delas públicas, revelam-se aliviados pela ampliação dos componentes curriculares. Relatam dificuldade em cumprir a lei antiga e atender ao desejo de muitos estudantes e comunidades de prestar o Enem. 

O senão: a carga horária do Ensino Técnico 

Apesar de apontar um risco de evasão dos alunos do Ensino Técnico Profissional neste ano e no próximo, Hélio Daher, vice-presidente do Consed (Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Educação) e coordenador de Ensino Médio da instituição, diz que a maioria dos estados aprovou a ampliação da carga horária da Base Comum Curricular (de 1.800 para 2.400 horas) e dos componentes curriculares que passam a ser obrigatórios nos três anos (antes eram apenas Língua Portuguesa e Matemática). Agora são 12 disciplinas, sete delas concentradas nas áreas de Ciências da Natureza e Ciências Humanas. 

“Do ponto de vista da gestão, não há muitos problemas em relação à aplicabilidade da norma, o retorno de disciplinas nos dá mais possibilidades de trabalhar. O senão é o 5o itinerário, de ETP (Ensino Técnico Profissional), em função dos alunos que foram pegos no meio do trajeto. Aqueles cursos que têm entre 600 e 800 horas são passíveis de ser adaptados. Já outros, em especial da área de saúde, como enfermagem, tinham carga horária de 1.200 horas.” Com isso, há risco de evasão. “Quem já conseguiu um emprego não vai dar conta da carga horária adicional da Base Comum”, acrescenta Daher.  

Além disso, os estudantes que hoje cursam o 1o ano, de acordo com a lei de 2017, terminarão o Ensino Médio em 2025, sob novo currículo, a não ser que a implementação seja gradual, o que faria com fosse finalizada apenas em 2027. No entanto, esses alunos ficariam com um gap de aprendizagem segundo as novas diretrizes. O mais provável é que esses casos sejam revistos estado a estado, pelos respectivos Conselhos de Educação. 

Do ponto de vista da logística, há uma questão com a qual estados e municípios deverão se preocupar: as mudanças também alteram as operações relativas à alimentação (merenda escolar) e ao transporte, este último oferecido pelo município. Com mais aulas, os horários terão de ser revistos e a oferta reprogramada. 

ENEM e livros didáticos 

Outros pontos que estão sendo cozinhados em fogo brando são o Enem e os livros didáticos. No caso dos livros, o MEC publicou no final do junho o edital 2/2024, correspondente ao PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) para o Ensino Médio. Os livros serão utilizados de 2026 a 2029. Quando soltou o edital, a coordenadora-geral do PNLD, Nadja Cézar, enfatizou que se trata de um material de transição, pois a proposta de mudança do Ensino Médio estava então no Congresso. 

Basicamente, o MEC voltou atrás na proposta adotada no PNLD de 2021, quando as editoras tiveram de apresentar livros que contemplassem as quatro áreas do conhecimento em um único volume anual. Agora, os livros voltarão a ser desmembrados por disciplinas, mas as escolhas se darão pelas coleções, não por volumes individuais. As adequações ocorrem em função da manifestação de docentes que não se adaptaram ao formato proposto no edital anterior. Um novo edital para o Ensino Médio só será lançado em 2028, para que os livros sejam utilizados a partir de 2030. 

“Essas mudanças têm grande impacto no campo editorial, e nós vivemos sob a égide do livro didático, que demanda um grande investimento”, diz Daher. Por esse motivo, os livros contratados em 2025 terão duração de quatro anos, seguindo acordo entre MEC e editoras. 

Se os livros didáticos são um dos principais ingredientes do currículo, o outro grande fator de influência é o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). E é também o que se mantém distante dos dois ciclos de mudança. Sua alteração deveria se dar neste ano, que corresponderia à implementação da Lei de 2017 no 3o ano do EM. Com a mudança, o Enem permanece como quando foi implantado, em 2009. 

Um dos mais ativos participantes da proposta aprovada em 2017, Mozart Neves Ramos, na época membro do CNE, vê como um erro a mudança curricular de agora. “Estávamos estagnados há muito tempo, enquanto o mundo vive transições agudas que exigem um novo repertório de habilidades dos jovens. Era preciso que oferecêssemos uma base comum para a formação, mas uma base mais diversificada”, defende. 

O que mudou com a Política Nacional do Ensino Médio?

TópicoComo era
(com a Lei no 13.415/2017)
Como ficou 
(com a Lei no 14.945/2024)
Carga horária obrigatória
(ensino regular)
1.800 horas para Formação Geral Básica (BNCC)2.400 horas de componentes curriculares (BNCC)
Itinerários Formativos1.200 horas600 horas
Componentes curriculares
obrigatórios 
Língua Portuguesa e MatemáticaL. Portuguesa, Inglês, Arte,
Ed. Física, Matemática, Ciências da Natureza** e Ciências Humanas***
Componente OpcionalLíngua Espanhola
Itinerários FormativosRedes de ensino determinavam variedade e natureza de sua ofertaCada escola tem de ofertar ao menos dois itinerários complementares à Formação Geral Básica nas quatro áreas 
Ensino Técnico1.800 horas de Formação Geral Básica; 1.200 horas de Ensino Técnico2.100 horas de componentes curriculares, 300 horas podendo ser destinadas a conteúdos da BNCC relacionados à formação técnica; até 1.200 horas para o itinerário técnico

*Fonte: Assessoria de Comunicação/MEC
**Com as disciplinas Física, Química e Biologia
***Com as disciplinas História, Geografia, Filosofia e Sociologia

Na opinião do ex-secretário de Educação de Pernambuco, se a parte diversificada do currículo não entrar no Enem, ela tende a ser deixada de lado por redes e escolas. “Assim, quem fizer vai fazer maquiagem, olhando para o Enem. Tanto as escolas particulares quanto as públicas valorizam muito o Saeb e o Enem. Deveria haver dois dias de prova, um para a Base Comum e outro para a Base Diversificada, com provas específicas por áreas”, sugere. 

Seja a proposta que for, Neves identifica fatores cruciais para o sucesso de uma mudança efetiva no Ensino Médio. Eles incluem novos moldes de formação docente e de diretores escolares, o estabelecimento de uma agenda positiva, a comparação com mudanças de outros países, a adoção de um plano de médio prazo que transcenda um mandato governamental, a utilização de indicadores que tragam sinais positivos para que a sociedade encampe a proposta e a presença de uma liderança com força de ação e interlocução. 

“Não precisa ser o ministro, quando o PAR [Plano de Ações Articuladas] foi implementado, o Henrique Paim assumiu essa liderança [na gestão Haddad]. Não se faz mudança estrutural sem coragem, capacidade e empoderamento. Quando começamos a implantar as escolas de tempo integral em Pernambuco, fui enterrado vivo três vezes. Hoje, 65% das escolas de Ensino Médio lá são de tempo integral. É um planejamento de médio e longo prazos”, conclui. 

Empossada no dia 13 de agosto entre os oito novos conselheiros do CNE, Maria do Pilar Lacerda, ex-secretária de Educação Básica do MEC nos dois primeiros governos Lula, acredita que o maior problema da versão anterior do Ensino Médio tenha sido a desarticulação no lançamento. “O que se tem de fazer agora é corrigir a desorganização da implementação anterior. Participei de uma pesquisa realizada pela FGV e pelo Movimento pela Base em que ouvimos 22 estados e visitamos presencialmente duas escolas de cinco capitais. Muitas não sabiam nem o que fazer nem como fazer. Havia escolas com dez aulas semanais de Matemática e nenhuma de História.”

A principal consequência desse desarranjo, alerta a nova conselheira do CNE, é o aumento da desigualdade entre escolas públicas e privadas. Isso porque muitas particulares aumentaram a carga horária para incorporar os itinerários formativos e mantiveram a grade com as disciplinas tradicionais, ainda que divididas pelas quatro áreas do conhecimento. Por isso, crê Pilar Lacerda, o fato de os itinerários agora estarem mais claramente atrelados à Base Nacional Comum Curricular dará mais segurança aos estudantes. A partir de agora, eles passam a ser um aprofundamento desses conteúdos. “Muitas propostas não tinham nenhuma relação com as competências gerais ou com a Base Geral”, diz. 

O aumento da carga horária e a maior presença de disciplinas que haviam restado com poucas horas no currículo devem ajudar os alunos no objetivo de fazer o Enem e ter chances de se habilitar a ingressar no ensino superior. Para Daher, do Consed, é boa a estruturação dos itinerários como aprofundamento da Formação Geral Básica, atrelando disciplinas como Língua Portuguesa e Literatura, por exemplo. “Essa flexibilidade é nova para estudantes e estados, e na gestão passada não houve orientação geral, ficou tudo solto. E há também as escolas privadas, que acabam acompanhando as editoras se não há um trabalho comum”, diz o secretário de Educação de Mato Grosso do Sul. 

Essas mudanças têm grande impacto no campo editorial, e nós vivemos
sob a égide do livro didático
, que demanda um grande investimento 

 Hélio Daher, vice-presidente do Consed 

Pilar Lacerda e Mozart Ramos convergem em alguns pontos. O primeiro é a necessidade de os itinerários formativos – em especial aqueles da área técnica – serem pensados a partir da realidade dos territórios, pensando na interlocução com o setor produtivo local e na qualificação dos estudantes para futura inserção no mercado de trabalho. 

Outras duas questões de consenso para a iniciativa dar certo são uma formação docente mais robusta e baseada na divisão em áreas do conhecimento e um maior envolvimento das universidades e da sociedade em geral. 

Realidades contrastantes 

Além da questão curricular, um fator de dissenso desde a aprovação de 2017, a infraestrutura física e a disponibilidade docente nas escolas prenunciavam um processo de implantação não só difícil, mas também muito desigual entre os estados e as redes pública e privada. Essa bola cantada se concretizou. 

Colégio de alto padrão num bairro nobre de São Paulo, o Rio Branco começou, já em 2018, a trabalhar com professores e alunos do 6o ao 8o ano mudanças preparatórias para o modelo que deveria ser implementado em 2022. “Introduzimos módulos interdisciplinares e começamos a trabalhar Ciências da Natureza, Ciências Humanas, Tecnologia e cultura maker, na lógica de projetos nas diferentes áreas e conteúdos não tradicionais. Assim, os professores foram aprendendo a ensinar dessa forma”, conta Esther Carvalho, diretora-geral das duas unidades da escola. 

Nesse processo, o Rio Branco passou a dividir o ano em quatro partes: três ciclos fundamentais, com 11 a 12 semanas cada, e um ciclo de projetos, de cinco semanas. O estudante que atingisse a média nos três primeiros ciclos iria aprimorar-se com os projetos; os outros fariam uma consolidação das aprendizagens. Tudo isso pensando no Ensino Médio. “Queríamos algo a partir das escolhas dos alunos, um currículo construído pelos professores da escola, de forma autoral, sem saber o impacto nos processos seletivos. Construímos um currículo no qual acreditamos ser contemporâneo. Mas o aluno vai fazer o Enem de acordo com a matriz anterior, então no 3o ano previmos uma revisão dos conteúdos essenciais”, relembra a diretora. 

A escola desenhou três itinerários formativos, com uma parte estrutural, cursada por todos os alunos, e uma parte específica, em que cada um escolhe sua área de interesse. A escolha dos professores para ministrar esse currículo buscou perfis que se encaixassem na proposta. Além disso, houve reuniões com pais para explicar o projeto e lidar com certo espanto numa escola tradicional. 

Agora sem saber o que acontecerá com os alunos hoje nos 1o e 2o anos, o Rio Branco espera por orientações do Conselho Estadual de Educação para essa transição. Depois de estudar referências internacionais (Finlândia e Ontário, no Canadá) para a construção de seu projeto, quer manter o espírito de inovação que conseguiu cultivar nos últimos anos. Para isso, há um elemento que auxilia o propósito: o total de 4.560 horas anuais com que a escola trabalha. 

Bem diferente foi a situação de Cocal dos Alves (PI), município de 6,4 mil habitantes com apenas uma escola pública de Ensino Médio, o CEETI Augustinho Brandão, conhecida pelo bom desempenho dos alunos em olimpíadas de matemática. O diretor, Darkson Machado, desde 2001 no cargo, conta que a secretaria estadual ofereceu um cardápio com dois itinerários que a escola poderia escolher: Matemática e Ciências da Natureza. No geral, o estado mapeou as regiões por áreas de desenvolvimento e pautou suas ofertas de acordo com os perfis encontrados. 

“Achei que em cidades com três ou quatro escolas, cada uma ofereceria um itinerário. Aqui, organizamos para os alunos terem todas as áreas do conhecimento e não perderem essa formação. Geografia, por exemplo, tinham reduzido de duas para uma aula por semana. Aí deslocamos a outra para as eletivas, nas disciplinas de aprofundamento”, explica. 

A cidade tem histórico de alta aprovação no Enem em áreas como Matemática, Ciências da Natureza e Saúde. Por isso o foco na Base Geral. Hoje, são duas classes de 1o ano: uma, com ensino regular em tempo integral; a outra, com um curso técnico integrado, de análise e desenvolvimento de sistemas. “Trabalhamos ouvindo o que a comunidade quer. Hoje, é curso superior. ETP [Ensino Técnico Profissionalizante], por ser novidade, teve demanda um pouco maior. Mesmo assim, querem fazer curso superior”, diz Machado. 

Percepção similar tem Jayse Ferreira, vice-diretor da Escola de Referência de Ensino Médio Frei Orlando, em Itambé (PE), uma instituição estadual em tempo integral. Ferreira conta que, para atender ao cardápio de eletivas, os docentes estavam ensinando disciplinas para as quais não tinham formação. A alternativa foi “burlar o sistema”. “A maioria das redes estava dando oficinas das matérias [da Base Geral]. Estávamos fazendo isso escondido. Houve debandada de alunos para escolas regulares. Diziam: ‘Vou estudar de manhã e faço um cursinho à tarde’”, conta Ferreira. 

O gestor gostou das últimas mudanças. Ele diz que falaram muito das escolhas que seriam possíveis, mas faltam laboratórios, a internet é ruim, ou seja, falta infraestrutura em grande parte das unidades. Itambé tem cerca de 33 mil habitantes. A escola tem 30 professores que atendem a 533 estudantes, apenas de Ensino Médio.  

Compartilhe!
Site Protection is enabled by using WP Site Protector from Exattosoft.com