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A pedagogia do tento

O ensino fragmentado e técnico, baseado em exercícios, não permite aos alunos ver sentido na matemática. Para a pesquisadora argentina Patricia Sadovsky, a pergunta a se fazer é como se constroem as referências e os pontos de apoio que permitam aos alunos estabelecer relações, ensaiar, explorar e tentar. 

Texto: Paulo de Camargo

A pesquisadora e professora argentina Patricia Sadovsky conhece bem o Brasil – atuou por bastante tempo com organizações sociais, como o Cedac (hoje Roda Educativa), colaborando com as equipes de formação que atuavam em diferentes estados. Participou de cursos e seminários em diversos centros de estudo e hoje assessora, com muito envolvimento, o Instituto Acaia, que atende a 250 crianças que vivem nas favelas em torno do Ceagesp, em São Paulo. 

Sua experiência com o país permite avaliar que as dificuldades brasileiras no ensino da Matemática não são exclusivas do Brasil, mas têm a ver com a própria transformação da sociedade e da relação dos alunos com o conhecimento e com a escola, em todo o mundo ocidental. Patricia defende, em sua atuação, o trabalho coletivo dos professores e a formação baseada em suas práticas, analisando as aulas que já foram dadas para preparar as próximas.

Da mesma forma, mostra como os professores precisam encontrar pontes com as crianças para estimulá-las a mostrar suas ideias e a tentar, e não se restringir a apontar acertos e erros. Nesta entrevista à Educatrix, a pesquisadora Patricia fala sobre sua visão do ensino da matemática e dos caminhos necessários para mudar a cultura de ensino dessa disciplina.

Educatrix | Professora Patricia, você pode falar um pouco sobre sua área de atuação, suas pesquisas e sua experiência com outros países?

Patricia Sadovsky | Originalmente sou professora de Matemática. Há muitos anos, comecei a estudar didática, ou seja, tomar o ensino de matemática como tema de estudo, e nesse caminho fiz meu doutorado em Educação, na Universidade de Buenos Aires. Paralelamente, trabalhei bastante no desenvolvimento curricular em diferentes jurisdições do nosso país e na formação docente, sobretudo em formações dirigidas a professores que já estão em atividade. Na universidade, como parte de uma equipe, desenvolvi um trabalho de investigação em didática e matemática, focado inicialmente a escola secundária (Ensino Médio). Depois, eu me interessei, com a pesquisadora Delia Lerner, pelas aprendizagens do sistema de numeração com crianças pequenas – do que decorreram muitos desdobramentos. Mas eu diria que, desde há muito tempo, minha preocupação é investigar como o que se vai produzindo no campo da didática da matemática pode ser retomado pelos professores e pelas professoras nas escolas. 

Educatrix | Em outras palavras, como a formação, de fato, produz mudanças no ensino real e cotidiano dos professores em sala de aula, certo?

Patricia | Não é um tema simples ou óbvio. O que alguém produz em didática não pode ser diretamente aplicado em sala de aula, porque as condições reais de ensino não são as mesmas em todas as escolas. É preciso considerar a grande complexidade que há nas instituições e entre as pessoas. Por essa razão, eu me interesso pelo trabalho colaborativo com professores, isto é, sobre como abordar de forma conjunta com os professores as problemáticas do ensino da matemática, estudar com eles, buscar articular uma visão que parte da didática, que foca os temas a ser ensinados, em direção a uma visão das diferentes práticas, trazida pelos professores a partir de seu contexto real de trabalho. Na classe, os docentes têm de assumir o desafio do ensino, juntamente com muitos outros problemas, e isso lhes coloca uma quantidade de condicionamentos e restrições que não se veem, a partir de um lugar mais protegido.

Educatrix | O tema da colaboração entre professores é importante não apenas para a área da Matemática, mas para todos os campos do ensino, não é?

Patricia | Totalmente. É justamente porque eu penso que os professores têm de ter um lugar de produção dentro do que se considera como a sua prática. Não se trata de um especialista em didática vir à escola dizer como fazer as coisas, como ensinar melhor. Isso já se demonstrou bastante ineficaz ao longo do tempo. E é ineficaz porque não se leva em conta a perspectiva do professor, que é o profissional que sustenta o processo de ensino na ação. Então, é preciso considerar que existe uma visão do ensino, mas também existem as famílias, os colegas, os gestores, as demandas da sociedade, as expectativas das crianças e dos jovens, ou seja, há toda uma complexidade que, se estamos focados apenas no ensino, acabamos por não ver.

Educatrix | No Brasil, as avaliações mostram que uma grande parte dos alunos sai da escola sem conhecimentos adequados em Matemática. Os desafios vividos aqui também existem em outros países, em relação ao ensino da Matemática?

Patricia | Bem, é verdade que existem dificuldades, e eu as reconheço, mas isso não significa que compartilho de uma leitura linear do resultado das avaliações. Esses resultados se inscrevem em um momento crítico para a escola, em todos os países ocidentais. Há uma sociedade que vem se transformando drasticamente, mudando também o lugar da escola como instituição de prestígio e de reconhecimento social. Assim como não é a mesma a expectativa dos jovens em relação à oportunidade que significava a escola como forma de ascensão social. Todo esse conjunto entrou em crise. Ou seja, a crise dos resultados está inserida em um declínio da instituição escolar na sociedade. Quando se olha os resultados, por exemplo, da Coreia do Sul ou de Singapura, vemos que são, antes de tudo, sociedades que estão dedicadas ao tema do estudo dos jovens, com muita disciplina, sim, mas também com muita intenção.

Educatrix | Isso se expressa de forma particular na matemática? Qual é o aspecto central do ensino desse componente?

Patricia | O ensino de Matemática tem sua complexidade, sem dúvida. Para os professores, muitas vezes é difícil discernir o que é o mais relevante, ou seja, quais são os temas que a matemática oferece como disciplina, qual é o sentido formativo pelo qual continuaríamos sustentando o ensino na escola. A matemática representa uma certa forma de pensar e produzir conhecimento. Ou seja, chegar a uma conclusão por meio de um pensamento dedutivo não é o mesmo que chegar a uma conclusão ensinando muitos casos e fazendo uma indução empírica com respeito à validade de um pressuposto. Em outras palavras, um modo de chegar à verdade é provar muitas vezes algo, ver que funciona e dar por válido. Um outro é fazer um encadeamento dedutivo de relações e chegar a uma conclusão sem a necessidade de apelar à experiência. A matemática oferece a possibilidade de olhar o mundo por esse modo, não é? De ir encadeando relações dedutivamente e avançar estabelecendo conclusões sobre uma parte do mundo. Ou seja, trata-se de uma forma de estudar o mundo. Esse foco, muitas vezes, não está tão presente, e o ensino acaba por ficar focado nos aspectos técnicos.

Patricia | O foco nos aspectos técnicos prejudica o interesse dos jovens?

Patricia | Esses aspectos técnicos, muitas vezes, não são os mais desafiantes para os estudantes. Eu diria que o objetivo principal diz respeito a como desafiar os jovens a partir de problemas que podemos lhes propor. Tem a ver com lhes mostrar que podem mobilizar seus próprios recursos para abordar os problemas, e que a sala de aula é um ambiente onde se discute, onde se analisa formas de resolução, onde se pode discriminar entre quais suposições são ou não válidas. Ou seja, podemos mostrar que pode haver um entramado de discussões a partir dos problemas, e que os professores estão em condições de mostrar como, com o uso de certas ferramentas da matemática, há elementos para abordá-los.

Educatrix | Esse é, em sua visão, um dos desafios a ser superados no ensino da matemática?

Patricia | Se me perguntam: para que ensinar matemática? Eu diria que é para isso. Não é que não se necessitem de técnicas, procedimentos, mas é preciso conhecer formas de representação, é necessário abordar as relações e ver como se vinculam entre si. Ou seja, há toda uma complexidade que, às vezes, o modo de segmentar os programas curriculares impede de ver a trama de que falei. Impede de ver o foco, o núcleo, o problema que estou resolvendo, a forma como o estou abordando, quais são as ferramentas que me permitem resolver isso, que explicações me traz o professor para enxergar, para mobilizar certas ferramentas. Não é uma questão apenas do Brasil, mas de como, historicamente, organizou-se o conhecimento na escola. É uma marca de origem da escola fragmentar por temas, de isolar os conteúdos sem que se chegue a ver quais são as razões de ser de um conhecimento; ver por que isso é interessante, por que é necessário, por que é preciso essa ou outra ferramenta para resolver o problema posto.

Educatrix | A fragmentação impede o aluno de ver o sentido completo do conhecimento?

Patricia | Muitas vezes, o recorte pode estar tão segmentado que os alunos não chegam a ter elementos para encontrar um sentido em tudo isso. Então, há uma falta de compreensão muito grande pelas crianças e pelos jovens, há uma ideia de que é tudo arbitrário. A disciplina da Matemática tem sua complexidade, e o modo histórico de segmentá-la não produziu uma abordagem que permita aos alunos ver o sentido dos problemas em relação ao tipo de respostas que a matemática oferece com respeito à realidade. 

Educatrix | Ainda existe o mito de que aprender matemática é para uns, e não para outros. Na sua opinião, quando e onde se produz e se reproduz essa ideia na cabeça das crianças? 

Patricia | Na escola, com os pais, os avós… a sociedade toda tem essa ideia de que há mentes específicas para a matemática. A ideia de que “não é para mim” é uma concepção construída socialmente. Obviamente, também dentro da escola, que é parte da sociedade. Mas não só. Nós não compartilhamos dessa ideia, há muitas pesquisas e muitas experiências que desmentem essa premissa. Sim, é verdade que há alunos que gostam mais de matemática, assim como há pessoas que gostam mais da literatura ou da história, ou seja, há afinidades, e isso não pode ser negado. Mas não quer dizer que há uma impossibilidade de compreender, são duas coisas totalmente diferentes. De modo geral, nossa experiência demonstra que, ao propor um desafio, fomentamos a atenção e o interesse. Desse interesse, nasce o esforço para compreender e para persistir até o entendimento. E, quando se chega a tal compreensão, há muita satisfação para quem aprende. 

Educatrix | E como reverter a situação com aqueles que não se permitem sequer tentar entender, por medo da matemática?

Patricia | Quando, na sala de aula, há alunos que chegam com essa certeza tão pronta – isso não é para mim… –, não é uma tarefa fácil, mas é frutífero quando se consegue estabelecer um diálogo. Nesse caso, uma tarefa fundamental do professor é entender o que o aluno está pensando. A questão não é declarar que não entende, mas se perguntar o que se entende. Esse é um posicionamento fundamental do professor para se entrar em diálogo. Quando há uma intenção, dentro da instituição escolar, de que todos os alunos aprendam, há uma disposição também do coletivo dos professores para buscar o que o aluno está pensando, como pensa, qual é a sua reação, e há um tempo para se trabalhar sobre isso. O que quero dizer é que, mais do que uma questão de entender ou não entender, importa o modo como os alunos se vinculam com o conhecimento. E o que a escola tenta fazer, quando tem a intenção, para transformar o modo pelo qual os alunos se relacionam com o conhecimento. Dizer: “Eu não posso, estou fora”, é um modo de se relacionar com o conhecimento. Agora, mudar essa posição para: “Ah, vou tentar, vou explorar, vou ensaiar uma resposta, e como o professor me ajuda a entender”, é possível.

Educatrix | Como esse tema se relaciona com o do sentido do que aprendemos?

Patricia | Quando o conhecimento parece muito segmentado, o que há para entender é um mecanismo muito isolado, em relação a possíveis referências nas quais o aluno pode se apoiar. Dessa forma, a pergunta a se fazer é como se vão construindo, na escola, as referências com relação ao conhecimento, aqueles pontos de apoio para os alunos que lhes permitem ensaiar, explorar, tentar. Por isso, ultimamente, estou falando da “pedagogia do tento”. A questão é: como conseguimos que eles tentem? Os alunos precisam ter algum ponto de apoio. Como podemos dar tais pontos de apoio, na perspectiva do conhecimento? Essa é uma busca coletiva, não de um professor sozinho. A busca do coletivo docente é uma exploração. Não há respostas pré-determinadas, não há pacotes à prova de crianças, no qual eu as coloco em um tubo e eles saem aprendendo.

Educatrix | Podemos afirmar que não há um caminho único para a formação docente, que também não incorporou esse princípio, nos cursos de pedagogia?

Patricia | Há um caminho de exploração, que não é igual para todos. Claro, há certas condições que as pesquisas vão mostrando, mas não há uma padronização que permita assegurar algo que para todo mundo funciona sempre. O trabalho de ensinar é mais do que estar diante dos alunos, preparar a aula, corrigir os erros. É pensar, com o conjunto dos professores, sobre o que já aconteceu, interpretar o que os alunos fizeram. Esse trabalho reflexivo sobre o que já foi realizado permite repensar as interações com os alunos, e, por isso, deve ser parte essencial do ato de ensinar. 

Educatrix | Daí a importância da educação continuada, durante a prática docente?

Patricia | Eu foco o trabalho formativo dentro das instituições. É sobre como ajudar o professor a interpretar as aulas já dadas, quando se desenvolve. Como analisamos essas aulas, por que esse aluno disse isso e como podemos desafiá-lo e fazê-lo se mover a partir do que falou. Que ferramentas ofereço, como o ajudo? Há um fenômeno que não é apenas do Brasil, uma certa ideia de que uma aula de matemática consiste em que os alunos façam exercícios, e ponto. Os professores quase não explicam. O professor é portador de uma cultura, de um conhecimento, de uma certa estruturação da disciplina que ensina, mas como se modifica a cultura do que se considera ensinar e aprender matemática dentro de uma escola? Daí a importância da construção coletiva das aulas. Quando alguém propõe uma situação didática, está supondo que, fazendo isso, os alunos vão aprender. Mas não deixa de ser uma suposição. Não é uma certeza, é uma hipótese. Então, como exploro essa hipótese? Analisando o que passou e ajustando a próxima aula em função dessa análise. Quando alguém consegue fazer a ponte entre o que se quer ensinar e as ideias das crianças, modifica-se o posicionamento dos alunos. Isso requer mais tempo de trabalho do professor, e, por isso, também é mais caro.

Educatrix | Em um mundo tão atingido pela desinformação, pelas teorias conspiratórias, pela recusa da ciência, a Matemática também é uma ferramenta que ensina a pensar melhor?

Patricia | Vivemos a era da pós-verdade, em que qualquer um afirma qualquer coisa, sem nenhum tipo de verificação. Eu creio que sim. Não quero dizer que exista hierarquia com as disciplinas, mas sim que a matemática é um modo muito específico de chegar a uma conclusão e argumentar com base no conhecimento já produzido. Se isso me permite deduzir de uma relação a outra, e a outra, essa experiência de certo modo é formativa para todos. A matemática oferece condições para a construção social da verdade, uma verdade que se apoia no conhecimento, e não na crença ou na opinião. Isso certamente é importante neste momento em que o conhecimento aparece debilitado na sociedade – e por isso é urgente que os alunos apreciem a matemática. O recorte que se faz hoje do que ensinar não chega a levá-los a apreciar, e isso é um problema. Eu buscaria por aí. O ensino é uma questão de busca, sempre.  

Patricia Sadovsky 
é matemática, professora e pesquisadora argentina, especialista em didática da matemática. Formada pelo Instituto Superior del Profesorado Joaquín V. González, é autora de diversos livros e artigos acadêmicos e participa ativamente de eventos e estudo da educação brasileira. Atualmente, é docente na Universidade Pedagógica Nacional.
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